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Fernandes (FC:10-12) – o sábio "é"

quarta-feira 24 de abril de 2024, por Cardoso de Castro

  

Stone, no seu livro extraordinário — politicamente correto, mas filosoficamente míope, tão revelador da dimensão política do julgamento de Sócrates ((STONE, 1988; refs. à trad. bras., STONE, I.F. 1993: O Julgamento de Sócrates. Comp. das Letras.)), propõe três motivos para o paradoxo de que o filósofo, professor a vida inteira, tenha sempre negado este fato ((Op.cit.,76-78.)): se a sabedoria (ele prefere “virtude”, ou “conhecimento”) pudesse ser ensinada, seria abalada a doutrina de que “cabe ao governante dar ordens e cabe aos governados obedecer”((XENOFONTE  , Memoráveis. 3.8.10-11 apud STONE 1993)); se pudesse ser ensinada, seria abalada a doutrina de que é absoluta; e, finalmente, se pudesse ser ensinada, as desastrosas carreiras de seus discípulos mais amados e famosos poderiam incriminar pessoalmente Sócrates. Seria preciso que figuras trágicas como Crítias, Alcebíades e Cármides fossem condenados, não pela sabedoria que lhes teria sido ensinada por Sócrates, mas pelo destino, ou seja, pelo caráter, Ethos ((STONE, 1993, 77-78.)). Era preciso, portanto, que esses discípulos não soubessem o que faziam.

Ora, Stone não se deu conta de que só um sábio poderia reconhecer outro sábio. Os ignorantes julgam, estão sujeitos à ilusão de que conhecem o bem e o mal. O sábio, por definição está além do bem e do mal, absolutamente indiferente ao moralismo das estereotipias. Mas se só um sábio pode reconhecer outro sábio, não podemos reconhecer o sábio em Sócrates, e Sócrates não pode reconhecer a si mesmo como tal. Mesmo que pudesse fazê-lo, não teria nisso nenhum interesse. Além disso, é justamente no caso do sábio que aparece com nitidez um dos maiores problemas da Ética: pode um ladrão ser o autor de teses corretas sobre a honestidade? Pela tradição que distingue o que se diz do que se faz, as teses devem ser avaliadas pelos seus “méritos intrínsecos”, de modo que argumentar ad hominem, a favor ou contra elas, é falacioso; por outro lado, também tradicionalmente se condena aquele que parece desmentir-se com os próprios atos (“Façam o que eu digo, não o que eu faço.”). Ainda que consideremos que nossas ações mudas também “falam” por si mesmas e, portanto, podem “desdizer” o que afirmamos, toda linguagem, verbal ou não, é interpretável. Logo, os hermeneutas que respondam: distinguem-se ou não, por um lado, a interpretação e, por outro, a própria vida? E, se elas se distinguem, como é que se relacionam? Supondo que o que [10] Sócrates faz desfaz o que ele diz, não teríamos que admitir, simetricamente, que o que ele diz reconstitui o sentido do que ele faz?

O Sábio não existe, se “existir”, como veremos no Segundo Capítulo, é “estar fora do ser”. O sábio é. Do ponto de vista da exterioridade, ou da exterioridade do ponto de vista, ele ocuparia o lugar vazio, o lugar do vazio, o “lugar nenhum” (Não é este o lugar do herói?). Ele é “ninguém em particular”, por isso pode existir como “qualquer um”. Mais precisamente, ele é o que em cada um de nós é o “ninguém em particular” de cada um de nós. Por isso, o Mestre é todo aquele, tudo aquilo, ou toda situação que nos reflete, que faz “cair em si”. E o espelho perfeito só pode ser o vazio. Na medida em que ali, no Mestre, ou no Sábio, somos levados a ver “alguém”, no sentido de uma persona, o reflexo não será perfeito, não “cairemos” em nós mesmos, mas, talvez, na dialética: então teremos a Filosofia, como apenas amizade à Sabedoria.

Com efeito, é a Filosofia que pode ser ensinada, não a Sabedoria. Mas a amizade à Sabedoria só poderá ser fiel ao Ser (como Odisseu, fiel à Penélope), se compreendermos que a elaboração conceptual, o treinamento em rigor argumentativo, e a erudição são como o carro, que não deve ser colocado adiante dos bois. Se o discípulo é desperto para a amizade fiel, o resto pode tornar-se, naturalmente, necessário, e o carro pode vir a ser puxado pelo boi. Mas é uma ilusão acreditar que o aprendizado das infidelidades, nossas “ligações perigosas”, ou o que se chama, vulgarmente, de “educação”, por si só, despertará em alguém a fidelidade ao Ser. Quando o carro é colocado à frente dos bois, a Filosofia se torna um passatempo acadêmico, ou uma atividade profissional.((A respeito do carro de boi, remeto o leitor à simbologia das dez etapas da iluminação, evocadas pelas imagens do Pastoreio do Boi  ))

Os motivos de Sócrates não poderiam ser, portanto, descobertos pelas conjecturas de Stone. Em primeiro lugar, porque a ideia de que o que fazemos tem “um verdadeiro motivo” é, em si, enganadora.6 Em segundo lugar, porque Sócrates não pode ser professor de Sabedoria; e, se o fosse de Filosofia, não poderia ensinar a fidelidade que anima essa amizade. Há coisas que não se cultivam: elas é que nos visitam. Vêm e vão-se, não se sabendo de onde, nem para onde. O Espírito sopra onde quer. E a Filosofia não tem, como as religiões, uma dimensão “profética”, na qual a gnose pudesse [11] “precipitar-se” em Escrituras. Sendo assim, em Filosofia, o que pode ser ensinado é como sermos infiéis. O ensinar alguma coisa como se a acrescentássemos a alguém, é uma infidelidade ao Ser, sempre em nome da amizade. Examinemos, contudo, a maneira que Stone tem de intrigar Sócrates, pois pode ser muito instrutiva a respeito do que é, ou não é a Filosofia.

A primeira intriga de Stone pretende fazer o que tantos fazem, irresponsavelmente: situar a Filosofia na história. Stone é erudito. Comparou no original as fontes primárias do “Sócrates” xenofôntico, platônico, aristofânico e aristotélico ((Sua pesquisa começou em 1971 e o livro levou quase duas décadas sendo escrito.)). Ele tem razão quando compara sua busca do “Sócrates histórico” com a atual literatura especulativa, polêmica e erudita sobre o “Jesus histórico”.


Ver online : Sergio L. C. Fernandes