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Nietzsche (VP:§579): sofrimento

domingo 5 de julho de 2020, por Cardoso de Castro

  

Para a psicologia da metafísica. — Este mundo é aparente — consequentemente, há um mundo verdadeiro. Este mundo é condicionado — consequentemente, há um mundo incondicionado. Este mundo é contraditório — consequentemente, há um mundo sem contradição. Este mundo está em devir — consequentemente, há um mundo que é. Meras conclusões falsas (confiança cega na razão: se A é, então também o seu conceito-oposição B há de ser). O sofrimento inspira essas conclusões: no fundo, são desejos de que pudesse haver um tal mundo; do mesmo modo, no simples fato de que um outro mundo seja imaginado, um mundo mais valioso, exprime-se o ódio contra um mundo que faz sofrer: aqui, o ressentimento dos metafísicos contra o real [Wirkliche] é criativo.

Segunda série de questões: para que sofrer?... e aqui se dá uma conclusão quanto à relação do mundo verdadeiro com respeito ao nosso mundo aparente, mutável, sofredor e contraditório: 1. Sofrimento como consequência do erro: como o erro é possível? 2. Sofrimento como consequência da culpa: como a culpa é possível? (- meras experiências da esfera da natureza ou da sociedade, universalizadas e projetadas no “em-si”). Se, porém, o mundo [300] condicionado é condicionado causalmente pelo incondicionado, então há de ser também condicionada por ele a liberdade para o erro e para a culpa: de novo pergunta-se, para quê?... O mundo da aparência, do devir, da contradição, do sofrimento é, portanto, querido: para quê?

O erro dessas conclusões: dois conceitos opostos foram formados — porque a um deles corresponde uma realidade [Realität], “há” também de corresponder uma realidade [Realität] ao outro. “De onde mais se poderia tirar, por acaso, o seu conceito contrário?” — Razão, portanto, como uma fonte-de-revelação sobre o-que-é-em-si.

Mas a proveniência daquelas oposições não precisa necessariamente remontar a uma fonte sobrenatural da razão: basta contrapor a verdadeira gênese do conceito — este se origina na esfera prática, na esfera da utilidade, e tem, justamente por isso, sua forte crença (sucumbe-se pelo fato de não se concluir conforme essa razão: mas, com isso, o que ela afirma não é “provado”).

A preocupação com o sofrimento nos metafísicos: é inteiramente ingênua. “Eterna bem-aventurança”: contrassenso psicológico. Homens corajosos e criativos não concebem jamais prazer e dor como as últimas questões de valor — são estados acompanhantes: há de querer-se ambos se se quer alcançar algo. — Nisto se exprime algo de cansado e de doente nos metafísicos e religiosos: no fato de que veem em primeiro plano o problema do prazer e da dor. Também a moral tem, só por causa disso, tal importância para eles: pois ela passa por condição essencial na supressão da dor.

Do mesmo modo, a preocupação com aparência e erro: causa de sofrimento: a superstição de que a felicidade esteja ligada à verdade (confusão: a felicidade na “certeza”, na “crença”).


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