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Nietzsche (Obra) – Aparência

segunda-feira 11 de setembro de 2023, por Cardoso de Castro

  

5. Já no prefácio a Richard Wagner é a arte — e não a moral — apresentada como a atividade propriamente metafísica do homem; no próprio livro retorna múltiplas vezes a sugestiva proposição de que a existência do mundo só se justifica como fenômeno estético. De fato, o livro todo conhece apenas um sentido de artista e um retro-sentido [Hintersinn] de artista por trás de todo acontecer — um “deus”, se assim se deseja, mas decerto só um deus-artista completamente inconsiderado e amoral, que no construir como no destruir, no bom como no ruim, quer aperceber-se de seu idêntico prazer e autocracia, que, criando mundos, se desembaraça da necessidade [Not] da abundância e superabundância, do sofrimento das contraposições nele apinhadas. O mundo, em cada instante a alcançada redenção de deus, o mundo como a eternamente cambiante, eternamente nova visão do ser mais sofredor, mais antitético, mais contraditório, que só na APARÊNCIA [Schein] sabe redimir-se: toda essa metafísica do artista pode-se denominar arbitrária, ociosa, fantástica — o essencial nisso é que ela já denuncia um espírito que um dia, qualquer que seja o perigo, se porá contra a interpretação e a significação morais da existência. Aqui se anuncia, quiçá pela primeira vez, um pessimismo “além do bem e do mal”, aqui recebe palavra e fórmula aquela “perversidade do modo de pensar” contra a qual Schopenhauer   não se cansa de arremessar de antemão as suas mais furiosas maldições e relâmpagos — uma filosofia que ousa colocar, rebaixar a própria moral ao mundo da APARÊNCIA e não apenas entre as “aparências” ou fenômenos [Erscheinungen] (na acepção do terminus technicus idealista), mas entre os “enganos”, como APARÊNCIA, ilusão, erro, interpretação, acomodamento, arte. Talvez onde se possa medir melhor a profundidade desse pendor antimoral seja no precavido e hostil silêncio com que no livro inteiro se trata o cristianismo — o cristianismo como a mais extravagante figuração do tema moral que a humanidade chegou até agora a escutar. Na verdade, não existe contraposição maior à exegese e justificação puramente estética do mundo, tal como é ensinada neste livro, do que a doutrina cristã, a qual é e quer ser somente moral, e com seus padrões absolutos, já com sua veracidade de Deus, por exemplo, desterra a arte, toda arte, ao reino da mentira — isto é, nega-a, reprova-a, condena-a. Por trás de semelhante modo de pensar e valorar, o qual tem de ser adverso à arte, enquanto ela for de alguma maneira autêntica, sentia eu também desde sempre a hostilidade à vida, a rancorosa, vingativa aversão contra a própria vida: pois toda a vida repousa sobre a APARÊNCIA, a arte, a ilusão, a óptica, a necessidade do perspectivístico e do erro. O cristianismo foi desde o início, essencial e basicamente, asco e fastio da vida na vida, que apenas se disfarçava, apenas se ocultava, apenas se enfeitava sob a crença em “outra” ou “melhor” vida. O ódio ao “mundo”, a maldição dos afetos, o medo à beleza e à sensualidade, um lado-de-lá inventado para difamar melhor o lado-de-cá, no fundo um anseio pelo nada, pelo fim, pelo repouso, para chegar ao “sabá dos sabás” — tudo isso, não menos do que a vontade incondicional do cristianismo de deixar valer somente valores morais, se me afigurou sempre como a mais perigosa e sinistra de todas as formas possíveis de uma “vontade de declínio”, pelo menos um sinal da mais profunda doença, cansaço, desânimo, exaustão, empobrecimento da vida — pois perante a moral (especialmente a cristã, quer dizer, incondicional), a vida tem que carecer de razão de maneira constante e inevitável, porque é algo essencialmente amoral — a vida, opressa sob o peso do desdém e do eterno não, tem que ser sentida afinal como indigna de ser desejada, como não válida em si. A moral mesma — como? A moral não seria uma “vontade de negação da vida”, um instinto secreto de aniquilamento, um princípio de decadência, apequenamento, difamação, um começo do fim? E, em consequência, o perigo dos perigos?… Contra a moral, portanto, voltou-se então, com este livro problemático, o meu instinto, como um instinto em prol da vida, e inventou para si, fundamentalmente, uma contradoutrina e uma contra-valoração da vida, puramente artística, anticristã. Como denominá-la? Na qualidade de filólogo e homem das palavras eu a batizei, não sem alguma liberdade — pois quem conheceria o verdadeiro nome do Anticristo? — com o nome de um deus grego: eu a chamei dionisíaca. Nascimento da Tragédia TENTATIVA DE AUTOCRÍTICA 5

A bela APARÊNCIA do mundo do sonho, em cuja produção cada ser humano é um artista consumado, constitui a precondição de toda arte plástica, mas também, como veremos, de uma importante metade da poesia. Nós desfrutamos de uma compreensão imediata da figuração, todas as formas nos falam, não há nada que seja indiferente e inútil. Na mais elevada existência dessa realidade onírica temos ainda, todavia, a transluzente sensação de sua APARÊNCIA: pelo menos tal é a minha experiência, em cujo favor poderia aduzir alguns testemunhos e passagens de poetas. O homem de propensão filosófica tem mesmo a premonição de que também sob essa realidade, na qual vivemos e somos, se encontra oculta uma outra, inteiramente diversa, que portanto também é uma APARÊNCIA: e Schopenhauer assinalou sem rodeios, como característica da aptidão filosófica, o dom de em certas ocasiões considerar os homens e todas as coisas como puros fantasmas ou imagens oníricas. Assim como o filósofo procede para com a realidade da existência [Dasein], do mesmo modo se comporta a pessoa suscetível ao artístico, em face da realidade do sonho; observa-o precisa e prazerosamente, pois a partir dessas imagens interpreta a vida e com base nessas ocorrências exercita-se para a vida. As imagens agradáveis e amistosas não são as únicas que o sujeito experimenta dentro de si com aquela onicompreensão, mas outrossim as sérias, sombrias, tristes, escuras, as súbitas inibições, as zombarias do acaso, as inquietas expectativas, em suma, toda a “divina comédia  ” da vida, com o seu Inferno, desfila à sua frente, não só como um jogo de sombras — pois a pessoa vive e sofre com tais cenas — mas tampouco sem aquela fugaz sensação da APARÊNCIA; e talvez alguns, como eu, se lembrem de que, em meio aos perigos e sobressaltos dos sonhos, por vezes tomaram-se de coragem e conseguiram exclamar: “É um sonho! Quero continuar a sonhá-lo!”. Assim como também me contaram a respeito de pessoas que foram capazes de levar adiante a trama causal de um e mesmo sonho durante três ou mais noites consecutivas: são fatos que prestam testemunho preciso de que o nosso ser mais íntimo, o fundo comum a todos nós, colhe no sonho uma experiência de profundo prazer e jubilosa necessidade. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 1

Essa alegre necessidade da experência onírica foi do mesmo modo expressa pelos gregos em Apolo: Apolo, na qualidade de deus dos poderes configuradores, é ao mesmo tempo o deus divinatório. Ele, segundo a raiz do nome o “resplendente”, a divindade da luz, reina também sobre a bela APARÊNCIA do mundo interior da fantasia. A verdade superior, a perfeição desses estados, na sua contraposição com a realidade cotidiana tão lacunarmente inteligível, seguida da profunda consciência da natureza reparadora e sanadora do sono e do sonho, é simultaneamente o análogo simbólico da aptidão divinatória e mesmo das artes, mercê das quais a vida se torna possível e digna de ser vivida. Mas tampouco deve faltar à imagem de Apolo aquela linha delicada que a imagem onírica não pode ultrapassar, a fim de não atuar de um modo patológico, pois do contrário a APARÊNCIA nos enganaria como realidade grosseira: isto é, aquela limitação mensurada, aquela liberdade em face das emoções mais selvagens, aquela sapiente tranquilidade do deus plasmador. Seu olho deve ser “solar”, em conformidade com a sua origem; mesmo quando mira colérico e mal-humorado, paira sobre ele a consagração da bela APARÊNCIA. E assim poderia valer em relação a Apolo, em um sentido excêntrico, aquilo que Schopenhauer observou a respeito do homem colhido no véu de Maia, na primeira parte de O mundo como vontade e representação: “Tal como, em meio ao mar enfurecido que, ilimitado em todos os quadrantes, ergue e afunda vagalhões bramantes, um barqueiro está sentado em seu bote, confiando na frágil embarcação; da mesma maneira, em meio a um mundo de tormentos, o homem individual permanece calmamente sentado, apoiado e confiante no principium individuationis [princípio de individuação]”. Sim, poder-se-ia dizer de Apolo que nele obtiveram a mais sublime expressão a inabalável confiança nesse principium e o tranquilo ficar aí sentado de quem nele está preso, e poder-se-ia inclusive caracterizar Apolo com a esplêndida imagem divina do principium individuationis, a partir de cujos gestos e olhares nos falam todo o prazer e toda a sabedoria da “APARÊNCIA”, juntamente com a sua beleza. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 1

Na mesma passagem Schopenhauer nos descreveu o imenso terror que se apodera do ser humano quando, de repente, é transviado pelas formas cognitivas da APARÊNCIA fenomenal, na medida em que o princípio da razão, em algumas de suas configurações, parece sofrer uma exceção. Se a esse terror acrescentarmos o delicioso êxtase que, à ruptura do principium individuationis, ascende do fundo mais íntimo do homem, sim, da natureza, ser-nos-á dado lançar um olhar à essência do dionisíaco, que é trazido a nós, o mais de perto possível, pela analogia da embriaguez. Seja por influência da beberagem narcótica, da qual todos os povos e homens primitivos falam em seus hinos, ou com a poderosa aproximação da primavera a impregnar toda a natureza de alegria, despertam aqueles transportes dionisíacos, por cuja intensificação o subjetivo se esvanece em completo auto-esquecimento. Também no Medievo alemão contorciam-se sob o poder da mesma violência dionisíaca multidões sempre crescentes, cantando e dançando, de lugar em lugar: nesses dançarinos de São João e São Guido reconhecemos de novo os coros báquicos dos gregos, com sua pré-história na Ásia Menor, até a Babilônia e as sáceas orgiásticas. Há pessoas que, por falta de experiência ou por embotamento de espírito, se desviam de semelhantes fenômenos como de “moléstias populares” e, apoiados no sentimento de sua própria saúde, fazem-se sarcásticas ou compassivas diante de tais fenômenos: essas pobres criaturas não têm, na verdade, ideia de quão cadavérica e espectral fica essa sua “sanidade”, quando diante delas passa bramando a vida candente do entusiasta dionisíaco. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 1

Aqui é preciso declarar que essa harmonia contemplada tão nostalgicamente pelos homens modernos, sim, essa unidade do ser humano com a natureza, para a qual Schiller cunhou o termo artístico naïf [ingênuo], não é de modo algum um estado tão simples, resultante de si mesmo, por assim dizer inevitável, que tenhamos de encontrar à porta de cada cultura, qual um paraíso da humanidade: nisso só podia crer uma época que procurava pensar o Emílio de Rousseau   também como artista e julgava haver achado em Homero   semelhante Emílio artista, educado no coração da natureza. Onde quer que deparemos com o “ingênuo” na arte, cumpre-nos reconhecer o supremo efeito da cultura apolínea: a qual precisa sempre derrubar primeiro um reino de Titãs, matar monstros e, mediante poderosas alucinações e jubilosas ilusões, fazer-se vitoriosa sobre uma horrível profundeza da consideração do mundo [Weltbetrachtung] e sobre a mais excitável aptidão para o sofrimento. Mas quão raramente o naïf, esse total engolfamento na beleza da APARÊNCIA, é alcançado! Quão indizivelmente sublime é por isso HOMERO, o qual, como indivíduo, está para aquela cultura apolínea do povo como o artista individual do sonho está para a aptidão onírica do povo e da natureza em geral. A “ingenuidade” homérica só se compreende como o triunfo completo da ilusão apolínea: é essa uma ilusão tal como a que a natureza, para atingir os seus propósitos, tão frequentemente emprega. A verdadeira meta é encoberta por uma imagem ilusória: em direção a esta estendemos as mãos e a natureza alcança aquela através de nosso engano. Nos gregos a “vontade” queria, na transfiguração do gênio e do mundo artístico, contemplar-se a si mesma: para glorificar-se, suas criaturas precisavam sentir-se dignas de glorificação, precisavam rever-se numa esfera superior, sem que esse mundo perfeito da introvisão atuasse como imperativo ou como censura. Tal é a esfera da beleza, em que eles viam as suas imagens especulares, os Olímpicos. Com esse espelhamento da beleza, a “vontade” helênica lutou contra o talento, correlato ao artístico, em prol do sofrer e da sabedoria do sofrer: e como monumento de sua vitória, ergue-se diante de nós Homero, o artista ingênuo. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 3

4. Acerca desse artista ingênuo, a analogia do sonho nos dá alguns ensinamentos. Se imaginarmos o sonhador quando ele, em meio à ilusão do mundo onírico e sem perturbá-la, se põe a clamar: “Isto é um sonho, mas quero continuar sonhando!”, se daí tivermos de concluir que há um profundo prazer interior na contemplação do sonho, se, de outro lado, para podermos sonhar com esse prazer íntimo diante da visão, tivermos de esquecer inteiramente o dia e suas terríveis importunações, poderemos então interpretar todos esses fenômenos, sob a direção de Apolo oniromante, mais ou menos da seguinte maneira: Tão certamente quanto das duas metades da vida, a desperta e a sonhadora, a primeira se nos afigura incomparavelmente mais preferível, mais importante, mais digna de ser vivida, sim, a única vivida, do mesmo modo, por mais que pareça um paradoxo, eu gostaria de sustentar, em relação àquele fundo misterioso de nosso ser, do qual nós somos a APARÊNCIA, precisamente a valoração oposta no tocante ao sonho. Com efeito, quanto mais percebo na natureza aqueles onipotentes impulsos artísticos e neles um poderoso anelo pela APARÊNCIA [Schein], pela redenção através da APARÊNCIA, tanto mais me sinto impelido à suposição metafísica de que o verdadeiramente-existente [Wahrhaft-Seiende] e Uno-primordial, enquanto o eterno-padecente e pleno de contradição necessita, para a sua constante redenção, também da visão extasiante, da APARÊNCIA prazerosa — APARÊNCIA esta que nós, inteiramente envolvidos nela e dela consistentes, somos obrigados a sentir como o verdadeiramente não existente [Nichtseiende], isto é, como um ininterrupto vir-a-ser no tempo, espaço e causalidade, em outros termos, como realidade empírica. Se portanto nos abstrairmos por um instante de nossa própria “realidade”, se concebermos a nossa existência empírica, do mesmo modo que a do mundo em geral, como uma representação do Uno-primordial gerada em cada momento, neste caso o sonho deve agora valer para nós como a APARÊNCIA da APARÊNCIA; por conseguinte, como uma satisfação mais elevada do apetite primevo pela APARÊNCIA. É pelo mesmo motivo que o cerne mais íntimo da natureza sente aquele prazer indescritível no artista ingênuo e na obra de arte ingênua, que é similarmente apenas “APARÊNCIA da APARÊNCIA”. RAFAEL, ele próprio um desses imortais “ingênuos”, representou-nos em sua pintura simbólica essa despotenciação da APARÊNCIA na APARÊNCIA, que é o processo primordial do artista ingênuo e simultaneamente da cultura apolínea. Em sua Transfiguração, na metade inferior, com o rapazinho possesso, os seus carregadores desesperados, os discípulos desamparados, aterrorizados, ele nos mostra a reverberação da eterna dor primordial, o único fundamento do mundo: a “APARÊNCIA” [Schein] é aqui reflexo [Widerschein] do eterno contraditório, pai de todas as coisas. Dessa APARÊNCIA eleva-se agora, qual aroma de ambrosia, um novo mundo como que visional de aparências, do qual nada veem os que ficaram enleados na primeira APARÊNCIA — um luminoso pairar no mais puro deleite e um indorido contemplar radiante de olhos bem abertos. Aqui temos, diante de nossos olhares, no mais elevado simbolismo da arte, aquele mundo apolíneo da beleza e seu substrato, a terrível sabedoria do Sileno, e percebemos, pela intuição [Intuition], sua recíproca necessidade. Apolo, porém, mais uma vez se nos apresenta como o endeusamento do principium individuationis, no qual se realiza, e somente nele, o alvo eternamente visado pelo Uno-primordial, sua libertação através da APARÊNCIA: ele nos mostra, com gestos sublimes, quão necessário é o inteiro mundo do tormento, a fim de que, por seu intermédio, seja o individual forçado a engendrar a visão redentora e então, submerso em sua contemplação, remanesça tranquilamente sentado em sua canoa balouçante, em meio ao mar. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 4

“Titânico” e “bárbaro” pareciam também ao grego apolíneo o efeito que o dionisíaco provoca: sem com isso poder dissimular a si mesmo que ele próprio, apesar de tudo, era ao mesmo tempo aparentado interiormente àqueles Titãs e heróis abatidos. Sim, ele devia sentir mais ainda: toda a sua existência, com toda beleza e comedimento, repousava sobre um encoberto substrato de sofrimento e conhecimento, que lhe era de novo revelado através daquele elemento dionisíaco. E vede! Apolo não podia viver sem Dionísio! O “titânico” e o “bárbaro” eram, no fim de contas, precisamente uma necessidade tal como o apolíneo! E agora imaginemos como nesse mundo construído sobre a APARÊNCIA e o comedimento, e artificialmente represado, irrompeu o tom extático do festejo dionisíaco em sonâncias mágicas cada vez mais fascinantes, como nestas todo o desmesurado da natureza em prazer, dor e conhecimento, até o grito estridente, devia tornar-se sonoro; imaginemos o que podia significar esse demoníaco cantar do povo em face dos artistas salmodiantes de Apolo, com os fantasmais arpejos de harpa! As musas das artes da “APARÊNCIA” empalideciam diante de uma arte que em sua embriaguez falava a verdade, a sabedoria do Sileno a bradar “Ai deles! Ai deles!”, contra os serenojoviais Olímpicos. O indivíduo, com todos os seus limites e medidas, afundava aqui no auto-esquecimento do estado dionisíaco e esquecia os preceitos apolíneos. O desmedido revelava-se como a verdade, a contradição, o deleite nascido das dores, falava por si desde o coração da natureza. E foi assim que, em toda parte onde o dionisíaco penetrou, o apolíneo foi suspenso e aniquilado. Mas é igualmente certo que lá onde o primeiro assalto foi suportado, o prestígio e a majestade do deus délfico se externaram de maneira mais rígida e ameaçadora do que nunca. Só consigo pois explicar o Estado dórico e a arte dórica como um contínuo acampamento de guerra da força apolínea: só em uma incessante resistência contra o caráter titânico-barbaresco do dionisíaco podia perdurar uma arte tão desafiadoramente austera, circundada de baluartes, uma educação tão belicosa e áspera, um Estado de natureza tão cruel e brutal. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 4

Acerca do processo de seu poetar, SCHILLER ofereceu-nos alguma luz através de uma observação psicológica, que se afigurava a ele próprio inexplicável, mas não problemática; ele confessou efetivamente ter tido ante si e em si, como condição preparatória do ato de poetar, não uma série de imagens, com ordenada causalidade dos pensamentos, mas antes um estado de ânimo musical (“O sentimento se me apresenta no começo sem um objeto claro e determinado; este só se forma mais tarde. Uma certa disposição musical de espírito vem primeiro e somente depois é que se segue em mim a ideia poética”). Se a isso juntarmos, agora, o mais importante fenômeno de toda a lírica antiga, a união, sim, a identidade, em toda a parte considerada natural, do lírico com o músico — diante da qual a nossa lírica moderna parece a estátua de um deus sem cabeça —, poderemos então, com base em nossa metafísica estética anteriormente exposta, explicar da seguinte maneira o caso do poeta lírico. Ele se fez primeiro, enquanto artista dionisíaco, totalmente um só com o Uno-primordial, com sua dor e contradição, e produz a réplica desse Uno-primordial em forma de música, ainda que esta seja, de outro modo, denominada com justiça de repetição do mundo e de segunda moldagem deste: agora porém esta música se lhe torna visível, como numa imagem similiforme do sonho, sob a influência apolínea do sonho. Aquele reflexo afigural e aconceitual da dor primordial na música, com sua redenção na APARÊNCIA, gera agora um segundo espelhamento, como símile ou exemplo isolado. O artista já renunciou à sua subjetividade no processo dionisíaco: a imagem, que lhe mostra a sua unidade com o coração do mundo, é uma cena de sonho, que torna sensível aquela contradição e aquela dor primordiais, juntamente com o prazer primigênio da APARÊNCIA. O “eu” do lírico soa portanto a partir do abismo do ser: sua “subjetividade”, no sentido dos estetas modernos, é uma ilusão. Quando Arquíloco, o primeiro lírico dos gregos, manifesta o seu amor furioso e, ao mesmo tempo, o seu desprezo pelas filhas de Licambes, não é a sua paixão que dança diante de nós em torvelinho orgiástico: vemos Dionísio e as Mênades, vemos o embriagado entusiasta Arquíloco imerso em sono profundo — tal como Eurípides no-lo descreve em As bacantes, em alto prado alpestre, ao sol do meio-dia —: e então Apolo se aproxima dele e o toca com o seu laurel. O encantamento dionisíaco-musical do dormente lança agora à sua volta como que centelhas de imagens, poemas líricos, que em seu mais elevado desdobramento se chamam tragédias e ditirambos dramáticos. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 5

O artista plástico, e simultaneamente o épico, seu parente, está mergulhado na pura contemplação das imagens. O músico dionisíaco, inteiramente isento de toda imagem, é ele próprio dor primordial e eco primordial desta. O gênio lírico sente brotar, da mística auto-alienação e estado de unidade, um mundo de imagens e de símiles, que tem coloração, causalidade e velocidade completamente diversas do mundo do artista plástico e do épico. Enquanto este último vive no meio dessas imagens, e somente nelas, com jubilosa satisfação e não se cansa de contemplá-las amorosamente em seus menores traços, enquanto até mesmo a imagem de Aquiles enraivecido é para ele apenas uma imagem cuja raivosa expressão desfruta com aquele seu prazer onírico na APARÊNCIA — de tal modo que, graças a esse espelho da APARÊNCIA, fica protegido da unificação e da fusão com suas figuras —, as imagens do poeta lírico, ao contrário, nada são exceto ele mesmo e como que tão-somente objetivações diversas de si próprio. Por essa razão, ele, como centro motor daquele mundo, precisa dizer “eu”: só que essa “eudade” [Ichheit] não é a mesma que a do homem empírico-real, desperto, mas sim a única “eudade” verdadeiramente existente [seiende] e eterna, em repouso no fundo das coisas, mediante cujas imagens refletidas o gênio lírico penetra com o olhar até o cerne do ser. Pensemos agora como ele, entre essas reproduções, avista também a si mesmo como não-gênio, isto é, seu “sujeito” [Subjekt], todo o tumulto de suas paixões e aspirações subjetivas dirigidas para uma determinada coisa que lhe parece real; se agora se nos afigurasse como se o gênio lírico e o não-gênio a ele vinculados fossem um só e como se o primeiro proferisse por si só aquela palavrinha “eu”, então essa APARÊNCIA não poderia mais nos transviar, como sem dúvida transviou àqueles que tacharam de lírico o poeta subjetivo. Na verdade, Arquíloco, o homem apaixonadamente ardoroso, no amor e no ódio, é apenas uma visão do gênio, que já não é Arquíloco, porém o gênio universal, e exprime simbolicamente seu sofrimento primigênio naquele símile do homem Arquíloco: ao passo que aquele homem Arquíloco que deseja e quer subjetivamente não pode jamais e em parte alguma ser poeta. Mas nem é de modo algum necessário que o lírico veja diante de si apenas o fenômeno do homem Arquíloco como reflexo do eterno Ser; e a tragédia demonstra até que ponto o universo visionário do poeta lírico pode distanciar-se desse fenômeno que é de fato o que lhe está mais próximo. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 5

Quem poderá deixar de reconhecer nessa descrição que a lírica é aí caracterizada como uma arte jamais perfeitamente realizada, como que sempre em salto e raramente chegando à meta, sim, como uma semi-arte, cuja essência consistiria em que o querer e a pura contemplação, isto é, o estado inestético e o estético, estivessem estranhamente misturados? Nós, de nossa parte, afirmamos antes que toda essa contraposição do subjetivo e do objetivo, segundo a qual, como se fora uma medida de valor, mesmo Schopenhauer ainda divide as artes, é em geral inadequada em estética, uma vez que o sujeito, o indivíduo que quer e que promove os seus escopos egoísticos, só pode ser pensado como adversário e não como origem da arte. Mas na medida em que o sujeito é um artista, ele já está liberto de sua vontade individual e tornou-se, por assim dizer, um medium através do qual o único Sujeito verdadeiramente existente celebra a sua redenção na APARÊNCIA. Pois, acima de tudo, para a nossa degradação e exaltação, uma coisa nos deve ficar clara, a de que toda a comédia da arte não é absolutamente representada por nossa causa, para a nossa melhoria e educação, tampouco que somos os efetivos criadores desse mundo da arte: mas devemos sim, por nós mesmos, aceitar que nós já somos, para o verdadeiro criador desse mundo, imagens e projeções artísticas, e que a nossa suprema dignidade temo-la no nosso significado de obras de arte — pois só como fenômeno estético podem a existência e o mundo justificar-se eternamente —, enquanto, sem dúvida, a nossa consciência a respeito dessa nossa significação mal se distingue da consciência que têm, quanto à batalha representada, os guerreiros pintados em uma tela. Portanto, todo o nosso saber artístico é no fundo inteiramente ilusório, porque nós, como sabedores, não formamos uma só e idêntica coisa com aquele ser que, na qualidade de único criador e espectador dessa comédia da arte, prepara para si mesmo um eterno desfrute. Somente na medida em que o gênio, no ato da procriação artística, se funde com o artista primordial do mundo, é que ele sabe algo a respeito da perene essência da arte; pois naquele estado assemelha-se, miraculosamente, à estranha imagem do conto de fadas, que é capaz de revirar os olhos e contemplar-se a si mesma; agora ele é ao mesmo tempo sujeito e objeto, ao mesmo tempo poeta, ator e espectador. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 5

A canção popular, porém, se nos apresenta, antes de mais nada, como espelho musical do mundo, como melodia primigênia, que procura agora uma APARÊNCIA onírica paralela e a exprime na poesia. A melodia é portanto o que há de primeiro e mais universal, podendo por isso suportar múltiplas objetivações, em múltiplos textos. Ela é também de longe o que há de mais importante e necessário na apreciação ingênua do povo. De si mesma, a melodia dá à luz a poesia e volta a fazê-lo sempre de novo; é isso e nada mais que a forma estrófica da canção popular nos quer dizer: fenômeno que sempre considerei com assombro, até que finalmente achei esta explicação. Quem examinar à luz de tal teoria uma coletânea de canções populares, Des Knaben Wunderhorn [A corneta mágica do menino], por exemplo, descobrirá incontáveis exemplos de como a melodia incessantemente geradora lança à sua volta centelhas de imagens, as quais, em sua policromia, em sua abrupta mudança, em sua turbulenta precipitação, revelam uma força selvagemente estranha à APARÊNCIA épica e ao seu tranquilo fluir. Do ponto de vista do epos, esse mundo desigual e irregular da lírica deve simplesmente ser condenado: e foi o que, no tempo de Terpandro, os solenes rapsodos épicos das festas apolíneas fizeram. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 6

Na poesia da canção popular vemos, portanto, a linguagem empenhada ao máximo em imitar a música: daí começar com Arquíloco um novo universo da poesia, que contradiz o homérico em sua raiz mais profunda. Com isso assinalamos a única relação possível entre poesia e música, palavra e som: a palavra, a imagem, o conceito buscam uma expressão análoga à música e sofrem agora em si mesmos o poder da música. Nesse sentido nos é dado distinguir na história linguística do povo grego duas correntes principais, conforme a linguagem imite o mundo da APARÊNCIA e da imagem ou o da música. Basta refletir mais profundamente sobre a diferença linguística da cor, da construção sintática, do material verbal em Homero e Píndaro  , para se compreender a importância desse contraste: sim, com isso se torna palpavelmente claro que entre Homero e Píndaro por certo sempre soaram os orgiásticos flauteios de Olimpo, os quais, ainda à época de Aristóteles  , em meio a uma música infinitamente mais desenvolvida, arrastavam a um entusiasmo embriagado e que seguramente, em seu efeito primordial, incitaram à imitação todos os meios expressivos dos homens contemporâneos. Quero lembrar aqui um conhecido fenômeno de nossos dias, que só parece chocante à nossa estética. Uma experiência pela qual passamos sempre de novo é a de como uma sinfonia de Beethoven obriga os ouvintes individualmente a um discurso imagístico, o que talvez ocorra também porque uma combinação dos vários universos de imagens, engendrada através de uma peça de música, produz um efeito fantasticamente variegado, deveras, e até mesmo contraditório: exercer contra tais combinações a sua pobre espirituosidade e deixar de ver o fenômeno verdadeiramente digno de explicação está no caráter dessa estética. Mas até mesmo no caso em que o poeta do som tenha falado de uma composição em imagens figuradas, como ao atribuir a uma sinfonia a designação de “pastoral” e chamar a uma frase de “cena junto ao arroio”, a uma outra de “alegre reunião de camponeses”, também se trata apenas de representações similiformes, nascidas da música — e não porventura dos objetos imitados pela música —, representações que não nos podem instruir em aspecto nenhum sobre o conteúdo dionisíaco da música, sim, que não têm qualquer valor exclusivo em face de outras figurações. Devemos agora transportar esse processo de uma descarga da música em imagens para uma massa popular no vigor da juventude, linguisticamente criativa, a fim de chegarmos a uma ideia de como se origina a canção estrófica popular e de como todo o tesouro verbal é excitado pelo novo princípio de imitação da música. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 6

Se nos é lícito, portanto, considerar a poesia lírica como a fulguração imitadora da música em imagens e conceitos, neste caso podemos agora perguntar: como é que aparece a música no espelho da imagística e do conceito? Ela aparece como vontade, tomando-se a palavra no sentido de Schopenhauer, isto é, como contraposição ao estado de ânimo estético, puramente contemplativo, destituído de vontade. Aqui se distingue agora, tão incisivamente quanto possível, o conceito da essência do da APARÊNCIA; pois é impossível que a música, segundo a sua essência, seja vontade, já que ela, como tal, deveria ser completamente banida do domínio da arte — porquanto a vontade é em si o inestético; porém aparece como vontade. Com efeito, a fim de exprimir a sua APARÊNCIA em imagens, o lírico precisa de todos os transportes da paixão, desde o sussurrar da propensão até o trovejar do delírio; sob esse impulso, para falar da música em símiles apolíneos, ele passa a compreender a natureza toda e a si próprio no seio desta apenas como o eterno querente, cobiçante, andante. Mas, na medida em que interpreta a música em termos de imagens, ele mesmo já repousa na silenciosa calmaria da contemplação apolínea, por mais que tudo quanto contemple à sua volta, pelo medium da música, esteja em movimento impetuoso e arrebatador. Sim, quando ele mesmo divisa a si próprio através do mesmo medium, a sua própria imagem se lhe apresenta em estado de sentimento insatisfeito: o seu próprio querer, anelar, gemer, exultar é para ele como um símile com o qual interpreta para si mesmo a música. Tal é o fenômeno do lírico: como gênio apolíneo, interpreta a música através da imagem do querer, enquanto ele próprio, totalmente liberto da avidez da vontade, é puro e imaculado olho solar. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 6

Toda essa discussão se prende firmemente ao fato de que a lírica depende tanto do espírito da música, quanto a própria música, em sua completa ilimitação, não precisa da imagem e do conceito, mas apenas os tolera junto de si. A poesia do lírico não pode exprimir nada que já não se encontre, com a mais prodigiosa generalidade e onivalidade, na música que o obrigou ao discurso imagístico. Justamente por isso é impossível, com a linguagem, alcançar por completo o simbolismo universal da música, porque ela se refere simbolicamente à contradição e à dor primordiais no coração do Uno-primigênio, simbolizando em consequência uma esfera que está acima e antes de toda APARÊNCIA. Diante dela, toda APARÊNCIA é antes meramente símile: daí por que a linguagem, como órgão e símbolo das aparências, nunca e em parte nenhuma é capaz de volver para fora o imo da música, mas permanece sempre, tão logo se põe a imitá-la, apenas em contato externo com ela, enquanto o sentido mais profundo da música não pode, mesmo com a maior eloquência lírica, ser aproximado de nós um passo sequer. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 6

Nos termos desse entendimento devemos compreender a tragédia grega como sendo o coro dionisíaco a descarregar-se sempre de novo em um mundo de imagens apolíneo. Aquelas partes corais com que a tragédia está entrançada são, em certa medida, o seio materno de todo assim chamado diálogo, quer dizer, do mundo cênico inteiro, do verdadeiro drama. Esse substrato da tragédia irradia, em várias descargas consecutivas, a visão do drama, que é no todo uma aparição de sonho e, nessa medida, uma natureza épica, mas que, de outro lado, como objetivação de estados dionisíacos, representa não a redenção apolínea na APARÊNCIA, porém, ao contrário, o quebrantamento do indivíduo e sua unificação com o Ser primordial. Por conseguinte, o drama é a encarnação apolínea de cognições e efeitos dionisíacos, estando dessa maneira separado do epos por um enorme abismo. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 8

9. Tudo o que na parte apolínea da tragédia grega chega à superfície, no diálogo, parece simples, transparente, belo. Nesse sentido, o diálogo é a imagem e o reflexo dos helenos, cuja natureza se revela na dança, porque na dança a força máxima é apenas potencial, traindo-se porém na flexibilidade e na exuberância do movimento. Assim, a linguagem dos heróis sofoclianos nos surpreende tanto por sua apolínea precisão e clareza, que temos a impressão de mirar o fundo mais íntimo de seu ser, com certo espanto pelo fato de ser tão curto o caminho até esse fundo. Se abstrairmos, todavia, do caráter do herói, tal como aparece à superfície e se torna visível — o qual no fundo nada mais é senão uma imagem luminosa lançada sobre uma parede escura, isto é, uma APARÊNCIA de uma ponta a outra —, se penetrarmos bem mais no mito que se projeta nesses espelhamentos luminescentes, perceberemos então, de repente, um fenômeno que tem uma relação inversa com um conhecido fenômeno óptico. Quando, numa tentativa enérgica de fitar de frente o Sol, nos desviamos ofuscados, surgem diante dos olhos, como uma espécie de remédio, manchas escuras: inversamente, as luminosas aparições dos heróis de Sófocles, em suma, o apolíneo da máscara, são produtos necessários de um olhar no que há de mais íntimo e horroroso na natureza, como que manchas luminosas para curar a vista ferida pela noite medonha. Só nesse sentido devemos acreditar que compreendemos corretamente o sério e importante conceito da “serenojovialidade grega”; ao passo que, na realidade, em todos os caminhos e sendas do presente, encontramo-nos com o conceito falsamente entendido dessa serenojovialidade, como se fosse um bem-estar não ameaçado. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 9

10. É uma tradição incontestável que a tragédia grega, em sua mais vetusta configuração, tinha por objeto apenas os sofrimentos de Dionísio, e que por longo tempo o único herói cênico aí existente foi exatamente Dionísio. Mas com a mesma certeza cumpre afirmar que jamais, até Eurípides, deixou Dionísio de ser o herói trágico, mas que, ao contrário, todas as figuras afamadas do palco grego, Prometeu, Édipo e assim por diante, são tão-somente máscaras daquele proto-herói, Dionísio. Que por trás de todas essas máscaras se esconde uma divindade, eis o único fundamento essencial para a tão amiúde admirada “idealidade” típica daquelas célebres figuras. Não sei quem asseverou que todos os indivíduos enquanto indivíduos são cômicos e, portanto, não trágicos: de onde se deduz que os gregos não podiam suportar em absoluto indivíduos na cena trágica. De fato, eles parecem ter sentido assim; como, aliás, aquela distinção e avaliação platônica da “ideia” em contraposição ao “ídolo”, à reprodução, estava profundamente radicada na natureza helênica. Para que possamos, porém, nos servir da terminologia de Platão, dever-se-ia falar mais ou menos do seguinte modo das figuras trágicas do palco helênico: o único Dionísio verdadeiramente real aparece numa pluralidade de configurações, na máscara de um herói lutador e como que enredado nas malhas da vontade individual. Pela maneira como o deus aparecente fala e atua, ele se assemelha a um indivíduo que erra, anela e sofre: e o fato de ele aparecer com tanta precisão e nitidez épicas é efeito do Apolo oniromante que interpreta para o coro o seu estado dionisíaco, através daquela APARÊNCIA similiforme. Na verdade, porém, aquele herói é o Dionísio sofredor, dos Mistérios, aquele deus que experimenta em si os padecimentos da individuação, a cujo respeito mitos maravilhosos contam que ele, sendo criança, foi despedaçado pelos Titãs e que agora, nesse estado, é adorado como Zagreus: com isso se indica que tal despedaçamento, o verdadeiro sofrimento dionisíaco, é como uma transformação em ar, água, terra e fogo, que devemos considerar, portanto, o estado da individuação, enquanto fonte e causa primordial de todo sofrer, como algo em si rejeitável. Do sorriso desse Dionísio surgiram os deuses olímpicos; de suas lágrimas, os homens. Nessa existência de deus despedaçado tem Dionísio a dupla natureza de um cruel demônio embrutecido e de um brando e meigo soberano. A esperança dos epoptas dirigia-se, porém, para um renascimento de Dionísio, que devemos agora conceber, apreensivos, como o fim da individuação: em honra desse terceiro Dionísio vindouro ressoava o bramante hino de júbilo dos epoptas. E por essa simples esperança espalha-se um raio de alegria pelo semblante do mundo dilacerado, destroçado em indivíduos: como no-lo afigura o mito através da imagem de Deméter imersa em eterna tristeza, que volta a alegrar-se pela primeira vez quando lhe dizem que poderá dar à luz de novo a Dionísio. Nos pontos de vista aduzidos temos já todas as partes componentes de uma profunda e pessimista consideração do mundo e ao mesmo tempo a doutrina misteriosófica da tragédia: o conhecimento básico da unidade de tudo o que existe, a consideração da individuação como causa primeira do mal, a arte como a esperança jubilosa de que possa ser rompido o feitiço da individuação, como pressentimento de uma unidade restabelecida. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 10

A uma multidão desse modo preparada e esclarecida podia agora dirigir-se a nova comédia, para a qual Eurípides se tornou em certa medida o maestro do coro; só que dessa vez era o coro de espectadores que precisava ser ensaiado. Tão logo ele foi ensaiado a cantar na tonalidade euripidiana, surgiu aquele gênero de espetáculo de tipo enxadrístico, a comédia nova, com o seu constante triunfo da esperteza e da malícia. Eurípides porém — o maestro do coro — era incessantemente louvado: sim, as pessoas teriam se matado só para aprender dele mais ainda, se não se soubesse que os poetas trágicos estavam tão mortos quanto a tragédia. Com ela, entretanto, o heleno havia renunciado à crença em sua própria imortalidade, não só à crença em um passado ideal, como à crença em um futuro ideal. A frase do conhecido epitáfio, “quando velho, leviano e excêntrico”, aplica-se outrossim à helenidade senil. O instante, o chiste, a irreflexão, o capricho são suas deidades supremas; o quinto estado, o do escravo ou, pelo menos, a sua mentalidade, chega agora ao poder; e se em geral ainda se pode falar da “serenojovialidade grega”, trata-se da serenojovialidade do escravo, que não sabe responsabilizar-se por nada de grave, nem aspirar a nada de grande nem valorizar nada do passado e do futuro mais do que do presente. Essa APARÊNCIA da “serenojovialidade grega” foi o que antes revoltou as naturezas profundas e terríveis dos primeiros quatrocentos anos do cristianismo: a elas, essa fuga mulheril diante do que é sério e assustador, esse covarde deixar-se contentar com o gozo confortável, parecia-lhes não somente desprezível, mas a própria disposição anticristã. E cabe atribuir à sua influência o fato de a visão da Antiguidade grega subsistente durante séculos reter com tenacidade quase invencível aquela cor rosada da serenojovialidade — como se nunca tivesse existido o século VI, com o seu nascimento da tragédia, com os seus Mistérios, com o seu Pitágoras e com Heráclito  , sim, como se nunca tivessem existido as obras de arte da grande época, as quais no entanto — cada uma por si — não podem explicar-se de modo algum como se brotadas do solo de uma tal serenojovialidade e de um tal prazer de viver senis e de natureza servil, apontando para uma consideração do mundo inteiramente outra como seu fundamento de existência. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 11

Aproximemo-nos agora dessa tendência socrática com a qual Eurípides combateu e venceu a tragédia esquiliana. Que objetivo — devemos agora perguntar-nos — poderia em geral, na mais alta idealidade de sua execução, ter o propósito euripidiano de basear o drama tão-somente sobre o não dionisíaco? Que forma do drama ainda restava, se este não deveria nascer do regaço da música naquele misterioso lusco-fusco do dionisíaco? Unicamente o epos dramatizado: mas neste domínio apolíneo da arte o efeito trágico é agora, por certo, inalcançável. Não importa no caso o conteúdo dos acontecimentos representados; sim, eu poderia afirmar que teria sido impossível a Goethe  , em sua projetada Nausícaa, tornar tragicamente comovedor o suicídio daquela idílica criatura, que devia preencher o quinto ato; tão incomum é a potência do épico-apolíneo, que as coisas mais terrificantes ela as encanta aos nossos olhos com aquele prazer pela APARÊNCIA e a redenção por meio da APARÊNCIA. O poeta do epos dramático não pode, tão pouco quanto o rapsodo épico, amalgamar-se totalmente com as suas imagens: ele continua sempre sendo tranquila introvisão imóvel a mirar com olhos distantes, que vê diante de si as imagens. O ator, em seu epos dramatizado, permanece no imo um rapsodo; a consagração própria ao sonhar interior paira sobre todas as suas ações, de modo que ele jamais é inteiramente ator. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 12

Como se comporta agora esse ideal do drama apolíneo em face da peça euripidiana? Tal como o rapsodo solene da época antiga para com o rapsodo mais jovem, cujo caráter o Íon   platônico também descreve: “Quando digo algo de triste, os meus olhos se enchem de lágimas; mas se o que digo é horrível e tremendo, então os cabelos de minha cabeça se eriçam de terror e meu coração palpita”. Aqui já não notamos mais nada daquele épico perder-se na APARÊNCIA, da frieza sem afetos do verdadeiro ator, o qual, precisamente em sua suprema atividade, é todo APARÊNCIA e prazer pela APARÊNCIA. Eurípides é o ator com o coração pulsante, com os cabelos arrepiados: como pensador socrático, projeta o plano; como ator apaixonado, executa-o. Artista puro ele não é nem ao projetar nem ao executar. Assim, o drama euripidiano é ao mesmo tempo uma coisa fria e ígnea, capaz de gelar e de queimar; é-lhe impossível atingir o efeito apolíneo do epos, ao passo que, de outro lado, libertou-se o mais possível do elemento dionisíaco e agora, para produzir efeito em geral, precisa de novos meios de excitação, os quais já não podem encontrar-se dentro dos dois únicos impulsos artísticos, o apolíneo e o dionisíaco. Tais excitantes são frios pensamentos paradoxais — em vez das introvisões apolíneas — e afetos ardentes — em lugar dos êxtases dionisíacos — e, na verdade, são pensamentos e afetos imitados em termos altamente realistas e de modo algum imersos no éter da arte. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 12

Um exemplo disso é o acima mencionado Platão: ele que, na condenação da tragédia e da arte em geral, não fica certamente atrás do ingênuo cinismo   de seu mestre, precisou, por necessidades inteiramente artísticas, criar uma forma de arte que tem parentesco interno justamente com as formas de arte vigentes e por ele repelidas. A principal objeção que Platão tinha a fazer contra a arte mais antiga — a de ser imitação de uma imagem da APARÊNCIA, de pertencer, portanto, a uma esfera ainda mais baixa que a do mundo empírico — não poderia ser sobretudo dirigida contra a nova obra de arte — e assim vemos Platão empenhado em ultrapassar a realidade e representar a ideia subjacente àquela pseudo-realidade. Mas com isso o pensador Platão chegou por um desvio até lá onde, como poeta, sempre se sentira em casa, e onde Sófocles e toda a arte mais antiga protestavam solenemente contra semelhante objeção. Se a tragédia havia absorvido em si todos os gêneros de arte anteriores, cabe dizer o mesmo, por sua vez, do diálogo platônico, o qual, nascido, por mistura, de todos os estilos e formas precedentes, paira no meio, entre narrativa, lírica e drama, entre prosa e poesia, e com isso infringe igualmente a severa lei antiga da unidade da forma linguística; caminho esse por onde os escritores cínicos foram ainda mais longe, atingindo, na máxima variegação do estilo, na constante oscilação entre formas métricas e prosaicas, também a figura literária do “Sócrates   furioso”, que eles costumavam representar em vida. O diálogo platônico foi, por assim dizer, o bote em que a velha poesia naufragante se salvou com todos os seus filhos: apinhados em um espaço estreito e medrosamente submissos ao timoneiro Sócrates, conduziam para dentro de um novo mundo que jamais se saciou de contemplar a fantástica imagem daquele cortejo. Na realidade, Platão proporcionou a toda a posteridade o protótipo de uma nova forma de arte, o protótipo do romance, que é mister considerar como a fábula esópica infinitamente intensificada, onde a poesia vive com a filosofia dialética em uma relação hierárquica semelhante à que essa mesma filosofia manteve, durante muitos séculos, com a teologia, isto é, como ancilla [escrava, criada]. Essa foi a nova posição a que Platão, sob a pressão demoníaca de Sócrates, arrastou a poesia. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 14

Em face desse pessimismo prático é Sócrates o protótipo do otimista teórico que, na já assinalada fé na escrutabilidade da natureza das coisas, atribui ao saber e ao conhecimento a força de uma medicina universal e percebe no erro o mal em si mesmo. Penetrar nessas razões e separar da APARÊNCIA e do erro o verdadeiro conhecimento, isso pareceu ser ao homem socrático a mais nobre e mesmo a única ocupação autenticamente humana: tal como aquele mecanismo dos conceitos, juízos e deduções foi considerado, desde Sócrates, como a atividade suprema e o admirável dom da natureza, superior a todas as outras aptidões. Inclusive os atos morais mais sublimes, as emoções da compaixão, do sacrifício, do heroísmo e aquela tranquilidade d’alma, tão difícil de alcançar, que o grego apolíneo chamava sofrosyne, foram derivados, por Sócrates e por seus sequazes simpatizantes até hoje, da dialética do saber e, consequentemente, qualificados como ensináveis. Quem experimentou em si próprio o prazer de um conhecimento socrático e percebe como este procura abarcar, em círculos cada vez mais largos, o mundo inteiro dos fenômenos, não sentirá daí por diante nenhum aguilhão capaz de incitá-lo à existência com maior ímpeto do que o desejo de completar essa conquista e de tecer a rede com firmeza impenetrável. A alguém que esteja com tal disposição de espírito o Sócrates platônico há de aparecer então como mestre de uma forma totalmente nova da “serenojovialidade grega” e felicidade de existir, forma que procura descarregar-se em ações e que vai encontrar tais descargas sobretudo em influências maiêuticas e educativas sobre jovens nobres, com o fito de produzir finalmente o gênio. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 15

Antes de nos precipitarmos no meio desses combates, envolvamo-nos na couraça dos conhecimentos até agora por nós conquistados. Em oposição a todos aqueles que se empenham em derivar as artes de um princípio único, tomado como fonte vital necessária de toda obra de arte, detenho o olhar naquelas duas divindades artísticas dos gregos, Apolo e Dionísio, e reconheço neles os representantes vivos e evidentes de dois mundos artísticos diferentes em sua essência mais funda e em suas metas mais altas. Vejo Apolo diante de mim como o gênio transfigurador do principium individuationis, único através do qual se pode alcançar de verdade a redenção na APARÊNCIA, ao passo que, sob o grito de júbilo místico de Dionísio, é rompido o feitiço da individuação e fica franqueado o caminho para as Mães do Ser, para o cerne mais íntimo das coisas. Essa imensa oposição que se abre abismal entre a arte plástica, como arte apolínea, e a música, como arte dionisíaca, se tornou manifesta a apenas um dos grandes pensadores, na medida em que ele, mesmo sem esse guia do simbolismo dos deuses helênicos, reconheceu à música um caráter e uma origem diversos dos de todas as outras artes, porque ela não é, como todas as demais, reflexo [Abbild] do fenômeno, porém reflexo imediato da vontade mesma e, portanto, representa, para tudo o que é físico no mundo, o metafísico, e para todo o fenômeno, a coisa em si (Schopenhauer, O mundo como vontade e representação, I, p. 310). Sobre esse reconhecimento, o mais importante de toda a estética, com o qual somente ela começa em um sentido mais sério, Richard Wagner, para corroborar-lhe a eterna verdade, imprimiu o seu selo, quando no Beethoven estabelece que a música deve ser medida segundo princípios estéticos completamente diferentes dos de todas as artes figurativas e, desde logo, não segundo a categoria da beleza: ainda que uma estética errônea, pela mão de uma arte extraviada e degenerada, tenha se habituado a exigir da música, a partir daquele conceito de beleza vigente no mundo figurativo, um efeito parecido ao das obras da arte figurativa, a saber, a excitação do agrado pelas belas formas. Após tomar conhecimento dessa enorme contraposição, senti uma forte necessidade de me aproximar da essência da tragédia grega e com isso da mais profunda revelação do gênio helênico; pois só então julguei dominar a magia requerida para, mais além da fraseologia de nossa estética usual, poder colocar-me de maneira viva e concreta o problema primordial da tragédia: com o que me foi dado lançar uma olhada tão estranhamente peculiar no helênico que tinha de me parecer como se a nossa ciência clássico-helênica, tão orgulhosa em seu comportamento, no principal haja sabido apascentar-se até agora somente com jogos de sombras e com exterioridades. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 16

Da essência da arte, tal como ela é concebida comumente, segundo a exclusiva categoria da APARÊNCIA e da beleza, não é possível derivar de maneira alguma, honestamente, o trágico; somente a partir do espírito da música é que compreendemos a alegria pelo aniquilamento do indivíduo. Pois só nos exemplos individuais de tal aniquilamento é que fica claro para nós o eterno fenômeno da arte dionisíaca, a qual leva à expressão a vontade em sua onipotência, por assim dizer, por trás do principium individuationis, a vida eterna para além de toda a APARÊNCIA e apesar de todo o aniquilamento. A alegria metafísica com o trágico é uma transposição da sabedoria dionisíaca instintivamente inconsciente para a linguagem das imagens: o herói, a mais elevada aparição da vontade, é, para o nosso prazer, negado, porque é apenas APARÊNCIA, e a vida eterna da vontade não é tocada de modo nenhum por seu aniquilamento. “Nós acreditamos na vida eterna”, assim exclama a tragédia; enquanto a música é a Ideia imediata dessa vida. Um alvo completamente diverso tem a arte do artista plástico: aqui o sofrimento do indivíduo subjuga Apolo mediante a glorificação luminosa da eternidade da APARÊNCIA, aqui a beleza triunfa sobre o sofrimento inerente à vida, a dor é, em certo sentido, mentirosamente apagada dos traços da natureza. Na arte dionisíaca e no seu simbolismo trágico, a mesma natureza nos interpela com sua voz verdadeira, inalterada: “Sede como eu sou! Sob a troca incessante das aparências, a mãe primordial eternamente criativa, eternamente a obrigar à existência, eternamente a satisfazer-se com essa mudança das aparências!”. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 16

Quem se lembra das consequências imediatas desse espírito da ciência a avançar infatigavelmente há de perceber de imediato como, por seu intermédio, o mito foi aniquilado e como, por esse aniquilamento, a poesia veio a ser expulsa de seu solo natural ideal, tornando-se daí por diante apátrida. Se atribuímos com razão à música a força que lhe faculta fazer nascer de si novamente o mito, também teremos de procurar o espírito da ciência na senda onde ele enfrenta hostilmente essa força criadora de mitos que a música tem. Isso ocorre no desenvolvimento do novo ditirambo ático, cuja música não mais exprimia o ser interno, a vontade mesma, mas só reproduzia a APARÊNCIA de modo insuficiente, em uma imitação mediada por conceitos: música interiormente degenerada da qual se apartavam as naturezas verdadeiramente musicais com aversão igual à que dedicavam à tendência assassina da arte, a Sócrates. O instinto seguro e captante de Aristófanes sem dúvida apreendeu o certo quando conjugou, no mesmo sentimento de ódio, o próprio Sócrates, a tragédia de Eurípides e a música dos novos ditirâmbicos, e farejou em todos esses três fenômenos os signos característicos de uma cultura degenerada. Por meio desse novo ditirambo a música foi convertida, de forma hedionda, em retrato imitativo da APARÊNCIA, por exemplo, de uma batalha, de uma tempestade no mar, e com isso viu-se totalmente despojada de sua força criadora de mitos. Pois se ela procura excitar nosso deleite apenas em nos obrigando a buscar analogias externas entre um acontecimento da vida e da natureza e determinadas figuras rítmicas e determinados sons peculiares da música, se até a nossa inteligência deve contentar-se com o conhecimento de tais analogias, então somos rebaixados a um estado de ânimo em que uma concepção do mítico é impossível; pois o mito quer ser sentido intuitivamente como exemplo único de uma universalidade e veracidade de olhos fitos no infinito adentro. A música verdadeiramente dionisíaca se nos apresenta como um tal espelho geral da vontade do mundo: o evento intuitivo que se refrata nesse espelho amplia-se desde logo para o nosso sentimento, até tornar-se imagem reflexa de uma verdade eterna. Ao contrário, tal evento é imediatamente despido de todo caráter mítico pela pintura sonora [Tonmalerei] do novo ditirambo; agora a música se tornou indigente reflexo da APARÊNCIA e por isso infinitamente mais pobre do que esta: pobreza pela qual a música rebaixa ainda mais, para o nosso sentimento, a APARÊNCIA mesma, de modo que agora, por exemplo, uma batalha imitada musicalmente dessa maneira se esgota em ruído de marchas, toques de trombetas etc., e nossa fantasia fica detida justamente nessas superficialidades. A pintura sonora é, portanto, em todos os sentidos, o inverso da força criadora de mitos, da verdadeira música: por seu intermédio, a APARÊNCIA se faz ainda mais pobre do que é, enquanto, através da música dionisíaca, a APARÊNCIA singular se enriquece e se alarga em imagens do mundo. Constituiu uma grandiosa vitória do espírito não dionisíaco quando ele, no desenvolvimento do novo ditirambo, distanciou a música de si própria e a reduziu à condição de escrava da APARÊNCIA. Eurípides, que, em um nexo superior, deve ser denominado uma natureza inteiramente não musical, é, exatamente por esse motivo, um adepto apaixonado da nova música ditirâmbica e, com a prodigalidade de um larápio, emprega todas os seus truques de efeito e maneirismos. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 17

Por outro lado, vemos em atividade a força desse espírito não dionisíaco, dirigido contra o mito, se voltarmos nossos olhares para a prevalência da representação de caracteres e do refinamento psicológico na tragédia a partir de Sófocles. O caráter não se deixará mais ampliar até o tipo eterno, senão que, ao contrário, através de matizes artificiais e sombreamentos, através da finíssima determinação de todas as linhas, atuará individualmente, de modo que o espectador já não sinta de forma alguma o mito, mas sim a poderosa verdade da natureza e a força instintiva do artista. Também aqui percebemos o triunfo da APARÊNCIA sobre o universal e o prazer no preparado singular, quase anatômico, respiramos já o ar de um mundo teórico, para o qual o conhecimento científico vale mais do que a reverberação artística de uma regra do mundo. O movimento nas linhas do característico avança com rapidez: enquanto Sófocles ainda pinta caracteres inteiros e atrela o mito ao jugo de seu desenvolvimento refinado, Eurípides já não pinta mais do que grandes traços isolados de caráter, que sabem externar-se em paixões veementes; na nova comédia ática há apenas máscaras com uma só expressão, velhos levianos, rufiões enganados, escravos astutos, incansavelmente repetidos. Onde foi parar agora o espírito formador de mitos, que é o da música? O que agora ainda resta da música é ou música de excitação ou de recordação, quer dizer, ou um estimulante para nervos embotados ou desgastados ou uma pintura sonora. Para a primeira, mal importa ainda o texto subjacente: já em Eurípides, quando seus heróis ou coros começam a cantar, as coisas desandam em efetiva desordem; até onde se terá chegado com seus insolentes sucessores? Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 17

Sobre os traços marcantes da ópera não se estende, portanto, de modo algum, aquela dor elegíaca de uma perda eterna, mas antes a serenojovialidade do eterno reencontrar, o cômodo prazer de um mundo idílico afetivo, o qual se pode imaginar a cada momento como efetivamente real: a cuja vista alguma vez se pressente, quiçá, que essa pretensa realidade não é senão um néscio brincar fantástico, a que todo homem capaz de medi-lo com a terrível seriedade da verdadeira natureza e compará-lo com as autênticas cenas primevas dos primórdios da humanidade deveria bradar com asco: Fora com o fantasma! Não obstante, enganar-nos-íamos se acreditássemos que seria possível, simplesmente com um grito enérgico, afugentar, como a um espectro, semelhante ser de brincadeira, que é a ópera. Quem quiser aniquilar a ópera terá de empreender a luta contra aquela serenojovialidade alexandrina que nela se expressa tão ingenuamente acerca de sua ideia favorita, sim, cuja autêntica forma de arte ela é. Mas o que se há de esperar para a própria arte, da atuação de uma forma artística cujas fontes primordiais não residem, de maneira nenhuma, no âmbito do estético, que, a bem dizer, se contrabandeou de uma esfera meio moral para o domínio artístico e que só aqui e acolá pôde alguma vez iludir sobre essa formação híbrida? De que seivas se nutre esse ser parasitário que é a ópera, se não são as da verdadeira arte? Não é de se presumir que, sob suas idílicas seduções, sob suas alexandrinas artes da lisonja, a suprema e, cumpre assim chamá-la, verdadeiramente séria tarefa da arte — livrar a vista de olhar no horror da noite e salvar o sujeito, graças ao bálsamo da APARÊNCIA, do espasmo dos movimentos do querer — degenerará em vazia e dissipadora tendência ao divertimento? O que será das sempiternas verdades do dionisíaco e do apolíneo numa tal mistura de estilos, como eu a expus na essência do stilo rappresentativo, onde a música é considerada como serva, a palavra do texto como senhor, onde a música é comparada ao corpo e a palavra do texto à alma, onde, no melhor dos casos, o mais alto desígnio estará dirigido para uma pintura sonora transcritiva, similarmente ao que ocorreu outrora no novo ditirambo ático, onde a música é inteiramente alheada de sua verdadeira dignidade, a de ser espelho dionisíaco do mundo, de tal modo que só lhe resta, como escrava da APARÊNCIA, arremedar a essência formal desta e, no jogo das linhas e proporções, provocar uma diversão externa? A uma consideração mais severa, essa funesta influência da ópera sobre a música coincide precisamente com o conjunto do desenvolvimento musical moderno; o otimismo espreitante na gênese da ópera e na essência da cultura por ela representada logrou, com angustiante rapidez, despir a música de sua destinação universal dionisíaca e imprimir-lhe um caráter divertidor, de jogo de formas: alteração com a qual só se deveria comparar, porventura, a metamorfose do homem esquiliano no homem serenojovial alexandrino. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 19

A tragédia absorve em seu íntimo o mais alto orgiasmo musical, de modo que é ela que, tanto entre os gregos quanto entre nós, leva diretamente a música à sua perfeição; mas, logo a seguir, coloca a seu lado o mito trágico e o herói trágico, o qual então, como um poderoso Titã, toma sobre o dorso o mundo dionisíaco inteiro e nos alivia dele: enquanto, de outra parte, graças a esse mesmo mito trágico, sabe libertar-nos, na pessoa do herói trágico, da ávida impulsão para esta existência e, com mão admoestadora, nos lembra de um outro ser e de um outro prazer superior, para o qual o herói combatente, cheio de premonições, se prepara com sua derrota e não com suas vitórias. A tragédia interpõe, entre o valimento universal de sua música e o ouvinte dionisiacamente suscetível, um símile sublime, o mito, e desperta naquele a APARÊNCIA, como se a música fosse unicamente o mais elevado meio de representação para vivificar o mundo plástico do mito. Confiando nessa nobre ilusão, ela pode agora agitar seus membros na dança ditirâmbica e entregar-se sem receio a um orgiástico sentimento de liberdade, no qual ela, enquanto música em si, não poderia atrever-se, sem aquele engano, a regalar-se. O mito nos protege da música, assim como, de outro lado, lhe dá a suprema liberdade. Por isso a música, como um presente que é oferecido em contrapartida, confere ao mito trágico uma significatividade metafísica tão impressiva e convincente que a palavra e a imagem, sem aquela ajuda única, jamais conseguiriam atingir: e, em especial, por seu intermédio sobrevém ao espectador trágico justamente aquele seguro pressentimento de um prazer supremo, ao qual conduz o caminho que passa pela derruição e negação, de tal forma que julga ouvir como se o abismo mais íntimo das coisas lhe falasse perceptivelmente. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 21

Mas desse evento descrito seria possível, não obstante, dizer com igual certeza que ele é apenas uma esplêndida APARÊNCIA, ou seja, aquela ilusão apolínea há pouco mencionada, por cujo efeito devemos ficar aliviados do afluxo e da desmedida dionisíacos. No fundo, a relação da música com o drama é precisamente a inversa: a música é a autêntica Ideia do mundo, o drama é somente um reflexo, uma silhueta isolada desta Ideia. Aquela identidade entre a linha melódica e a figura vivente, entre a harmonia e as relações de caráter daquela figura, é, em um sentido oposto ao que poderia parecer-nos ao contemplarmos a tragédia musical, verdadeira. Mesmo se movermos a figura de maneira mais visível, se a vivificarmos e a iluminarmos de dentro para fora, ela continuará sendo sempre tão-somente a APARÊNCIA, de onde não há nenhum ponto que conduza à verdadeira realidade, ao coração do mundo. Porém, é deste coração para fora que o mundo fala; e ainda que incontáveis aparências daquela espécie pudessem desfilar ao som da mesma música, jamais esgotariam a essência desta, mas seriam apenas seus reflexos mais exteriorizados. Com a contraposição popular, e de todo falsa, de alma e corpo, em verdade nada se pode aclarar, e tudo se pode enredar, na difícil relação entre música e drama; entretanto, a crueza afilosófica daquela contraposição parece ter-se tornado, justamente para os nossos estetas, quem sabe por que razões, um artigo de fé professado com gosto, ao passo que eles nada aprenderam sobre a oposição entre a APARÊNCIA e a coisa em si ou, por razões igualmente desconhecidas, nada quiseram aprender. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 21

22. Que o amigo atento se represente, segundo as suas experiências, o efeito de uma verdadeira tragédia musical, pura e sem imisção. Penso ter descrito de tal forma o fenômeno [Phänomen] deste efeito, por ambos os lados, que esse amigo saberá agora explicar-se as suas próprias experiências. Ele há de lembrar-se, efetivamente, de que, à vista do mito movendo-se à sua frente, sentia-se elevado a uma espécie de onisciência, como se agora a força visiva de seus olhos não fosse meramente uma força superficial, porém capaz de penetrar no interior, e como se, agora, as ebulições da vontade, a luta dos motivos e a corrente engrossante das paixões ele as enxergasse diante de si, com a ajuda da música, tangivelmente visíveis, por assim dizer, qual uma profusão de linhas e figuras vivamente movidas, e com isso pudesse mergulhar até os mais delicados mistérios das emoções inconscientes. Enquanto se faz assim consciente de que seus impulsos dirigidos à visibilidade e à transfiguração sofrem suma intensificação, sente todavia com igual precisão que essa longa sequência de efeitos artísticos apolíneos não engendrou, apesar de tudo, aquela ditosa persistência em uma contemplação isenta de vontade, que o criador plástico e o poeta épico, isto é, os artistas genuinamente apolíneos, nele suscitam por meio de suas obras de arte: quer dizer, a justificação do mundo da individuatio alcançada naquela contemplação, justificação que constitui o cimo e a suma da arte apolínea. Ele contempla o mundo transfigurado da cena e, no entanto, o nega. Ele vê diante de si, com nitidez e beleza épicas, o herói trágico e, no entanto, alegra-se com o seu aniquilamento. Ele compreende até o mais íntimo a ocorrência da cena e, no entanto, refugia-se de bom grado no incompreensível. Ele sente que as ações do herói são justificadas e, no entanto, sente-se ainda mais enaltecido quando essas ações destroem o seu autor. Ele estremece ante os sofrimentos que hão de atingir o herói e, no entanto, pressente neles um prazer superior, muito mais preponderante. Ele enxerga mais e com mais profundidade do que nunca e, no entanto, deseja estar cego. De onde havemos de derivar este milagroso autodesdobramento, esta quebra do aguilhão apolíneo, senão da magia dionisíaca, que, excitando aparentemente ao máximo as emoções apolíneas, é capaz, não obstante, de obrigar essa superabundância da força apolínea a ficar a seu serviço? O mito trágico só deve ser entendido como uma afiguração da sabedoria dionisíaca através de meios artísticos apolíneos; ele leva o mundo da APARÊNCIA ao limite em que este se nega a si mesmo e procura refugiar-se de novo no regaço das verdadeiras e únicas realidades, onde então, como Isolda, parece entoar assim o seu canto de cisne metafísico: Na torrente arqueante / Do mar do deleite, / No sonido bramante / Das ondas olorosas, / No todo bafejante / Do alento do universo, / Afogar-se, afundar-se, / Inconsciente — supremo prazer! Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 22

Assim, com o renascimento da tragédia voltou a nascer também o ouvinte estético, em cujo lugar costumava sentar-se até agora, nas salas de teatro, um estranho quidproquo [quiproquó] com pretensões meio morais e meio doutas, o “crítico”. Em sua esfera, tudo era até aqui artificial e estava apenas caiado com uma APARÊNCIA de vida. O artista desempenhante já não sabia de fato por onde começar com um ouvinte assim, que se dava ares de crítico, e por isso espreitava inquieto, junto com o dramaturgo e o compositor de ópera, seus inspiradores, os últimos restos de vida desse ser pretensiosamente árido e incapaz de gozar. Mas é dessa espécie de “críticos” que se compunha até agora o público; o estudante, o escolar e até a mais inofensiva criatura feminina estavam já, sem o saber, preparados pela educação e pelos jornais para uma igual percepção de uma obra de arte. As naturezas mais nobres dentre os artistas contavam, dado um tal público, com a excitação de forças religioso-morais, e o chamado à “ordem moral” do mundo apresentava-se vicariamente lá onde, na realidade, um poderoso feitiço devia extasiar o autêntico ouvinte. Ou então uma tendência grandiosa, ou ao menos excitante, da atualidade política ou social era exposta tão claramente pelo dramaturgo, que o ouvinte podia esquecer a sua exaustão crítica e entregar-se a afetos parecidos, como em momentos patrióticos ou guerreiros, ou perante a tribuna de oradores do Parlamento ou na condenação do crime e do vício: esse estranhamento dos propósitos artísticos genuínos tinha de conduzir cá e lá diretamente a um culto da tendência. Todavia, aqui sobreveio o que desde sempre sobrevinha em todas as artes artificializadas, uma depravação impetuosamente rápida dessas tendências, de modo que, por exemplo, a tendência a empregar o teatro como uma instituição para a formação moral do povo, que no tempo de Schiller foi tomada a sério, já é contada entre as incríveis antiguidades de uma cultura superada. Enquanto a crítica chegava ao domínio no teatro e no concerto, o jornalista na escola, a imprensa na sociedade, a arte degenerava a ponto de tornar-se um objeto de entretenimento da mais baixa espécie, e a crítica estética era utilizada como meio de aglutinação de uma sociabilidade vaidosa, dissipada, egoísta e, ademais, miseravelmente despida de originalidade, cujo sentido nos é dado a entender por aquela parábola schopenhaueriana dos porcos-espinhos; de maneira que em nenhum outro tempo se tagarelou tanto sobre arte e se considerou tão pouco a arte. Pode-se, entretanto, ainda ter trato com uma pessoa capaz de conversar sobre Beethoven e Shakespeare  ? Que cada um responda à pergunta segundo o seu próprio sentimento: em todo caso demonstrará com a resposta o que ele imagina sob o nome de “cultura”, pressupondo-se que tente de algum modo responder à pergunta e não permaneça emudecido de espanto. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 22

23. Quem queira, com todo o rigor, pôr-se a si mesmo à prova, a fim de saber o quanto é aparentado ao verdadeiro ouvinte estético ou se pertence à comunidade dos homens socrático-críticos, deve apenas perguntar-se sinceramente qual o sentimento com que recebe o milagre representado na cena: se por acaso sente nisso ofendido o seu sentido histórico, orientado para a causalidade psicológica rigorosa, ou se com uma benevolente concessão, por assim falar, admite o milagre como um fenômeno compreensível para a infância, mas que se tornou para ele estranho, ou se experimenta alguma outra coisa. Nisso, com efeito, poderá medir até onde está em geral capacitado a compreender o mito, a imagem concentrada do mundo, a qual, como abreviatura da APARÊNCIA, não pode dispensar o milagre. Mas o provável é que, em uma prova severa, quase todo mundo sinta-se tão decomposto pelo espírito histórico-crítico de nossa cultura, que a existência do mito outrora se nos torne crível somente por via douta, através de abstrações mediadoras. Sem o mito, porém, toda cultura perde sua força natural sadia e criadora: só um horizonte cercado de mitos encerra em unidade todo um movimento cultural. Todas as forças da fantasia e do sonho apolítico são salvas de seu vaguear ao léu somente pelo mito. As imagens do mito têm que ser os onipresentes e desapercebidos guardiões demoníacos, sob cuja custódia cresce a alma jovem e com cujos signos o homem dá a si mesmo uma interpretação de sua vida e de suas lutas: e nem sequer o Estado conhece uma lei não escrita mais poderosa do que o fundamento mítico, que lhe garante a conexão com a religião, o seu crescer a partir de representações míticas. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 23

Quem não tenha vivenciado isso, ou seja, ter de olhar e ao mesmo tempo ir além do olhar, dificilmente imaginará quão nítidos e claros subsistem, lado a lado, esses dois processos e são, lado a lado, sentidos na consideração do mito trágico: ao passo que os espectadores verdadeiramente estéticos hão de me confirmar que, entre os efeitos peculiares da tragédia, o que há de mais notável é essa co-presença. Basta transferir esse fenômeno, do espectador estético a um processo análogo no artista trágico, e ter-se-á entendido a gênese do mito trágico. Ele compartilha com a esfera da arte apolínea o inteiro prazer na APARÊNCIA e na visão e simultaneamente nega tal prazer e sente um prazer ainda mais alto no aniquilamento do mundo da APARÊNCIA visível. O conteúdo do mito trágico é, em primeiro lugar, um acontecimento épico, com a glorificação do herói lutador: de onde, porém, deriva esse traço, em si enigmático, de que o sofrer no destino do herói, as mais dolorosas superações, as mais torturantes contradições dos motivos, em suma, a exemplificação daquela sabedoria de Sileno ou, expresso em termos estéticos, o feio e o desarmônico sejam, em tão incontáveis formas, com tanta predileção, representados sempre de novo, e precisamente na idade mais viçosa e juvenil de um povo, se justo nisso tudo não se percebesse um prazer superior? Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 24

25. Música e mito trágico são de igual maneira expressão da aptidão dionisíaca de um povo e inseparáveis uma do outro. Ambos procedem de um domínio artístico situado para além do apolíneo; ambos transfiguram uma região em cujos prazenteiros acordes se perdem encantadoramente tanto a dissonância como a imagem terrível do mundo; ambos jogam com o espinho do desprazer, confiando em suas artes mágicas sobremaneira poderosas; ambos justificam com tal jogo a própria existência do “pior dos mundos”. Aqui o dionisíaco, medido com o apolíneo, se mostra como a potência artística eterna e originária que chama à existência em geral o mundo todo da APARÊNCIA: no centro do qual se faz necessária uma nova ilusão transfiguradora para manter firme em vida o ânimo da individuação. Se pudéssemos imaginar uma encarnação da dissonância — e que outra coisa é o homem? — tal dissonância precisaria, a fim de poder viver, de uma ilusão magnífica que cobrisse com um véu de beleza a sua própria essência. Eis o verdadeiro desígnio artístico de Apolo: sob o seu nome reunimos todas aquelas inumeráveis ilusões da bela APARÊNCIA que, a cada instante, tornam de algum modo a existência digna de ser vivida e impelem a viver o momento seguinte. Nascimento da Tragédia PREFÁCIO PARA RICHARD WAGNER 25

“Sempre há um de mais comigo” — assim pensa o eremita. “Sempre um vezes um — com o tempo, isso faz dois!” Eu e mim estamos sempre muito envolvidos numa conversa: como suportar isso, se não houver um amigo? Para o eremita, o amigo é sempre o terceiro: o terceiro é a cortiça que não deixa que afunde a conversa dos dois. Ah, existem profundezas demais para todos os eremitas. Por isso eles tanto anseiam por um amigo e suas alturas. Nossa fé em outros denuncia o que gostaríamos de crer em nós mesmos. Nosso anseio por um amigo é nosso denunciante. E muitas vezes queremos, com o amor, apenas passar por cima da inveja. E muitas vezes atacamos e fazemos um inimigo, a fim de ocultar que somos atacáveis. “Sê ao menos meu inimigo!” — assim fala o verdadeiro respeito, que não ousa solicitar amizade. Querendo-se ter um amigo, é preciso também querer guerrear por ele: e para guerrear é preciso poder ser inimigo. No amigo devemos honrar também o inimigo. Podes aproximar-te bastante do teu amigo sem passar para o seu lado? Devemos ter, no amigo, nosso melhor inimigo. Deves lhe ter o coração o mais próximo possível, quando a ele te opuseres. Não queres usar nenhuma roupa diante do teu amigo? Deve ser uma honra, para teu amigo, que te mostres a ele tal como és? Mas por isso ele te mandará ao Diabo! Quem não faz segredo de si, provoca irritação: tendes muita razão em recear a nudez! Se fôsseis deuses, então poderíeis vos envergonhar de vossa roupa! Não podes te adornar bem o suficiente para teu amigo: pois deves ser, para ele, uma flecha e um anseio pelo super-homem. Já viste teu amigo dormindo — para saber que APARÊNCIA tem? Pois qual é, fora disso, o rosto do teu amigo? É o teu próprio rosto, num espelho tosco e imperfeito. Já viste teu amigo dormindo? Não te espantaste com sua APARÊNCIA? Oh, meu amigo, o homem é algo que tem de ser superado. O amigo deve ser mestre no adivinhar e no silenciar: não deves querer ver tudo. Teu sonho deve te revelar o que teu amigo faz acordado. Que a tua compaixão seja um adivinhar: para que saibas, primeiro, se o teu amigo quer compaixão. Talvez ele ame em ti o olhar constante e a visão da eternidade. Que a compaixão pelo amigo se esconda sob uma dura casca, e que percas um dente ao mordê-la. Assim ela terá delicadeza e doçura. És puro ar e solidão e pão e remédio para o teu amigo? Há quem não pode se soltar dos próprios grilhões e, no entanto, é um salvador para o amigo. És um escravo? Então não podes ser amigo. És um tirano? Então não podes ter amigos. Por muito tempo houve um escravo e um tirano escondidos na mulher. Por isso ela ainda não é capaz de amizade: conhece apenas o amor. No amor da mulher há injustiça e cegueira a tudo o que ela não ama. E mesmo no amor sapiente da mulher existe ainda ataque, noite e raio ao lado da luz. A mulher ainda não é capaz de amizade: são ainda gatos as mulheres, e pássaros. Ou, no melhor dos casos, vacas. A mulher ainda não é capaz de amizade. Mas dizei-me, homens, qual de vós é capaz de amizade? Oh, que pobreza a vossa, homens, e que avareza da alma! O quanto dais ao amigo, darei até ao meu inimigo, sem ficar mais pobre por isso. Existe camaradagem: que exista amizade! Assim falou Zaratustra. Zaratustra 1 Do amigo

2. Quem um dia ensinar os homens a voar, deslocará todos os marcos de limites; os marcos mesmos voarão pelos ares, e esse alguém batizará de novo a terra — de “a Leve”. A avestruz corre mais velozmente que o mais ligeiro cavalo, mas também enfia a cabeça pesadamente na terra pesada: assim também o homem que ainda não sabe voar. Pesadas são, para ele, terra e vida; e assim quer o espírito de gravidade! Mas quem quiser ficar mais leve, tornando-se pássaro, tem de amar a si mesmo: — é o que ensino eu. Não, decerto, com o amor dos enfermos e alquebrados: pois neles até o amor-próprio cheira mal! Deve-se aprender a amar a si mesmo — é o que ensino — com um amor são e saudável: de modo a se tolerar estar consigo e não vaguear. Esse vaguear batiza a si mesmo de “amor ao próximo”: foi com essa expressão que melhor mentiram e fingiram até hoje, especialmente aqueles que pesavam para todos. E, em verdade, não é este um mandamento para hoje e amanhã, aprender a se amar. Entre todas as artes, é antes a mais sutil, mais astuciosa, a derradeira e mais paciente. Pois tudo que é de si próprio se acha bem escondido do possuidor; de todas as cavernas de tesouros, a própria é a última a ser escavada — assim dispõe o espírito de gravidade. Quase no berço já nos dão pesados valores e palavras: “bem” e “mal” — é como se chama esse dote. Por causa dele nos perdoam que vivamos. E deixam que vão a si as criancinhas, a tempo de impedir que elas amem a si próprias: assim dispõe o espírito de gravidade. E nós — carregamos fielmente o que nos dão em dote, em duros ombros e por ásperas montanhas! E, se suamos, nos dizem: “Sim, a vida é um fardo!”. Mas apenas o homem é um fardo para si mesmo! Isso porque carrega nos ombros muitas coisas alheias. Tal como o camelo, põe-se de joelhos e deixa que o carreguem bastante. Em especial o homem forte, resistente, no qual é inerente a veneração: demasiados valores e palavras pesados alheios põe ele sobre si — e então a vida lhe parece um deserto! E, em verdade! Também muita coisa própria é difícil de carregar! E muito do interior do homem é como a ostra, ou seja, repugnante, escorregadio e difícil de agarrar —, — de maneira que uma casca nobre, com nobres adornos, precisa interceder a seu favor. Mas também essa arte se deve aprender, a de ter casca, APARÊNCIA formosa e sagaz cegueira! E engana sobre muita coisa no homem o fato de muitas cascas serem pobres, tristes, cascas demais. Muita força e bondade oculta não é jamais adivinhada; os mais deliciosos petiscos não acham apreciadores! As mulheres sabem disso, as mais deliciosas: um pouco mais magra, um pouco mais gorda — oh, quanto destino se acha em tão pouco! O homem é difícil de descobrir, e descobrir a si mesmo, o mais difícil de tudo; com frequência, o espírito mente acerca da alma. Assim dispõe o espírito de gravidade. Mas descobriu a si mesmo quem diz: “Este é meu bem e meu mal”: com isso fez calar o anão e toupeira que diz “Bom para todos, mau para todos”. Em verdade, também não gosto daqueles para quem cada coisa é boa e este mundo é inclusive o melhor. A esses denomino os contentes com tudo. O contentamento com tudo, que sabe de tudo gostar: este não é o melhor gosto! Respeito os estômagos e línguas rebeldes e exigentes, que aprenderam a dizer “Eu”, “Sim” e “Não”. Mas tudo mastigar e digerir — isso é uma autêntica maneira de porco! Sempre dizer “I-A” — isso apenas o asno aprendeu, e quem tem seu espírito! — O amarelo profundo e o vermelho quente: é o que deseja o meu gosto — ele mistura sangue a todas as cores. Mas quem caia sua casa, esse revela uma alma caiada. Uns enamorados de múmias, outros, de fantasmas; e todos igualmente hostis à carne e ao sangue — oh, como repugnam ao meu gosto! Pois eu amo o sangue. E não quero viver e estar ali onde todo mundo cospe e escarra: pois esse é meu gosto — preferiria viver entre bandidos e perjuros. Ninguém tem ouro na boca. Ainda mais repugnantes me são os puxa-sacos; e o mais repugnante animal que encontrei entre os homens denominei parasita: esse não queria amar e, no entanto, queria viver de amor. Desventurados chamo a todos aqueles que têm uma só escolha: tornar-se maus animais ou maus domadores de animais: entre eles eu jamais levantaria tendas. Desventurados também chamo aqueles que sempre devem esperar — eles repugnam ao meu gosto: todos os alfandegários, merceeiros, reis e outros guardiães de terras e de lojas. Em verdade, aprendi também a esperar, e bastante — mas somente a esperar por mim. E sobretudo aprendi a ficar em pé, andar, correr, saltar, escalar e dançar. Mas este é o meu ensinamento: quem um dia quiser aprender a voar, deve primeiramente aprender a ficar em pé, andar, correr, saltar, escalar e dançar: — não se aprende a voar voando! Com escadas de corda aprendi a escalar muitas janelas, com pernas ágeis subi em altos mastros: estar sobre altos mastros do conhecimento não me pareceu bem-aventurança pequena, — — cintilar como pequenas flamas sobre altos mastros: uma luz pequena, decerto, mas um grande consolo para navegantes e náufragos perdidos! — Por muitos caminhos e meios diferentes alcancei minha verdade; não apenas por uma escada subi às alturas de onde meu olho vagueia pelas distâncias que são minhas. E somente com relutância perguntei pelos caminhos — isto sempre repugnou ao meu gosto! Preferi perguntar e tentear os próprios caminhos. Um perguntar e tentear era todo o meu andar: — e, em verdade, deve-se aprender também a responder a tal perguntar! Mas este — é meu gosto: — não que seja bom ou seja ruim, mas meu gosto, de que não me envergonho nem escondo. “Este — é o meu caminho, — qual é o vosso?”, assim respondi aos que me perguntaram pelo “caminho”. Pois o caminho — não existe! Assim falou Zaratustra. Zaratustra 1 Do espírito de gravidade

2. Mal dissera essas palavras, Zaratustra caiu como um morto e por muito tempo ficou como um morto. Quando voltou a si, estava pálido, tremia, permaneceu deitado no chão e por muito tempo não quis comer ou beber. Nesse estado ficou sete dias; mas seus animais não o abandonaram nem de dia nem de noite, exceto a águia, quando voou para buscar alimento. E o que ela apanhou e saqueou, pôs sobre o leito de Zaratustra: de modo que afinal Zaratustra se achou deitado entre frutinhas amarelas e vermelhas, uvas, jambos, pinhas e folhas de cheiro. E a seus pés havia dois cordeiros, que a águia havia penosamente arrebatado a seus pastores. Por fim, após sete dias Zaratustra se ergueu no leito, pegou um jambo, cheirou-o, e achou agradável seu aroma. Então seus animais acharam que era tempo de lhe falar. “Ó Zaratustra”, disseram eles, “há sete dias estás assim deitado, com os olhos pesados: não queres, enfim, pôr-te novamente em pé? Sai de tua caverna: o mundo te espera como um jardim. O vento brinca com intensos aromas que querem chegar a ti; e todos os riachos desejam ir atrás de ti. Todas as coisas anseiam por ti, desde que ficaste sete dias a sós — sai de tua caverna! Todas as coisas querem ser médicos para ti! Veio-te um novo conhecimento, amargo e pesado? Como uma massa fermentada estiveste aí deitado, tua alma inchou e transbordou por todas as margens. —” — Ó meus animais, respondeu Zaratustra, continuai falando e deixai-me escutar! Anima-me bastante que falais: ali onde se fala, o mundo já me parece um jardim. Como é agradável que existam sons e palavras: não são eles arco-íris e pontes aparentes entre aquilo que se acha eternamente separado? A cada alma corresponde outro mundo; para cada alma, cada outra alma é um mundo por trás. Entre aqueles que são mais semelhantes, a APARÊNCIA mente do modo mais belo; pois o menor abismo é o mais difícil de transpor. Para mim — como haveria um fora-de-mim? Não existe um fora! Mas isso esquecemos a cada som; como é agradável que esqueçamos! Nomes e sons não foram regalados às coisas para que o homem se reanime com as coisas? Bela tolice é a fala: com ela, o homem dança por sobre todas as coisas. Como são agradáveis toda fala e toda mentira dos sons! Com os sons, nosso amor dança por sobre arco-íris multicores. — — “Ó Zaratustra”, disseram então os animais, “para os que pensam como nós, as próprias coisas dançam: vêm, dão-se as mãos, riem, fogem — e retornam. Tudo vem, tudo retorna; rola eternamente a roda do ser. Tudo morre, tudo volta a florescer, corre eternamente o ano do ser. Tudo se rompe, tudo é novamente ajeitado; eternamente constrói-se a mesma casa do ser. Tudo se despede, tudo volta a se saudar; eternamente fiel a si mesmo permanece o anel do ser. Em cada instante começa o ser; em redor de todo Aqui rola a esfera Ali. O centro está em toda parte. Curva é a trilha da eternidade.” — — Ó bufões e realejos que sois!, respondeu Zaratustra novamente sorrindo, como bem sabeis o que teve de se cumprir em sete dias: — — e como aquele monstro me entrou na garganta e me sufocou! Mas eu lhe cortei a cabeça com os dentes e a cuspi para longe. E vós — vós já fizestes disso uma canção de realejo? Mas agora estou aqui, ainda cansado desse morder e cuspir, ainda doente de minha própria redenção. E fostes espectadores de tudo isso?, ó meus animais, também vós sois cruéis? Quisestes assistir a minha grande dor, como fazem os homens? Pois o homem é o animal mais cruel. Foi com tragédias, touradas e crucificações que até agora ele se sentiu melhor na terra; e, quando inventou o inferno, este foi seu céu na terra. Quando o grande homem grita —: logo o pequeno homem vem correndo; e tem a língua fora da boca, de concupiscência. Mas a isso ele chama sua “compaixão”. O pequeno homem, em especial o poeta — com que fervor acusa a vida com palavras! Escutai-o, mas não deixeis de ouvir o prazer que há em toda acusação! Esses acusadores da vida: a vida os supera com um piscar de olhos. “Me amas?”, diz a insolente; “espera mais um pouco, ainda não tenho tempo para ti.” O homem é, consigo mesmo, o mais cruel animal; e, em todos os que chamam a si próprios “pecadores”, “portadores da cruz” e “penitentes”, não deixeis de ouvir a volúpia que há nesse lamento e acusação! E eu próprio — quero, com isso, ser o acusador do homem? Ah, meus animais, apenas isto aprendi até agora: que ao homem é necessário o que tem de pior para ter o que tem de melhor, — — que o que tem de pior é sua melhor força, e a mais dura pedra para o mais alto criador; e que o homem tem de se tornar melhor e pior: — Não a esse pau de tortura me achava eu preso, de saber que o homem é mau — e sim gritava, como ninguém ainda gritou: “Ah, como é pequeno até o que tem de pior! Ah, como é pequeno até o que tem de melhor!” O grande fastio pelo homem — isso me sufocou, me havia entrado na garganta: e o que o vidente vaticinou: “Tudo é igual, nada vale a pena, o saber sufoca”. Um longo crepúsculo claudicava à minha frente, uma tristeza cansada de morte, ébria de morte, que falava com uma boca bocejante. “Eternamente ele retorna, o homem de que estás cansado, o pequeno homem” — assim bocejava minha tristeza, e arrastava os pés e não podia adormecer. Numa caverna transformou-se para mim a terra dos homens, seu peito afundou, tudo vivo tornou-se para mim decomposição humana, ossos e passado podre. Meu suspirar se achava em todos os túmulos humanos e não podia mais levantar-se; meu suspirar e questionar era agourento, sufocava, corroía e lamentava dia e noite: — “Ah, o homem retorna eternamente! O pequeno homem retorna eternamente!” — Vira os dois nus um dia, o maior homem e o menor homem: demasiado semelhantes um ao outro — demasiado humano inclusive o maior! Demasiado pequeno o maior! — Esse era meu fastio pelo homem! E eterno retorno inclusive do menor! — Esse era meu fastio por tudo que existe! Ah, nojo! Nojo! Nojo! — — Assim falou Zaratustra, e suspirou e tremeu; pois lembrou-se de sua doença. Mas então seus animais não o deixaram falar mais. “Não fales mais, ó convalescente!” — assim lhe responderam seus animais, “e vai para fora, onde o mundo espera por ti como um jardim. Vai para fora, até as rosas, abelhas e bandos de pombas! Mas especialmente até as aves canoras: para com elas aprender a cantar! Pois cantar é para convalescentes; o são pode falar. E, quando também o são quer canções, quer canções diferentes das do convalescente.” — Ó bufões e realejos, calai-vos! — respondeu Zaratustra, e sorriu de seus animais. Como sabeis bem do consolo que inventei para mim durante sete dias! Que eu tenho de voltar a cantar — esse consolo inventei para mim, e essa cura: também disso quereis logo fazer uma canção de realejo? — “Não fales mais”, responderam-lhe os animais novamente; “prepara antes uma lira para ti, uma nova lira! Pois vê, ó Zaratustra! Para tuas novas canções necessitas novas liras. Canta e extravasa, ó Zaratustra, cura tua alma com novas canções: para que possas carregar teu grande destino, que ainda não foi destino de homem nenhum! Pois teus animais bem sabem, ó Zaratustra, quem tu és e tens de tornar-te: eis que és o mestre do eterno retorno — é esse agora o teu destino! Que tenhas de ser o primeiro a ensinar essa doutrina — como esse grande destino não seria também teu maior perigo e maior doença? Vê, sabemos o que ensinas: que todas as coisas eternamente retornam, e nós mesmos com elas, e que eternas vezes já estivemos aqui, juntamente com todas as coisas. Ensinas que há um grande ano do vir-a-ser, uma monstruosidade de grande ano: tal como uma ampulheta, ele tem de virar sempre de novo, a fim de novamente escorrer e transcorrer: — — de modo que todos esses anos são iguais a si mesmos, nas coisas maiores e também nas menores — de modo que nós mesmos somos iguais a nós mesmos em cada grande ano, nas coisas maiores e também nas menores. E, se agora quisesses morrer, ó Zaratustra: vê, nós também sabemos como falarias então contigo mesmo: — mas teus animais te pedem que ainda não morras! Falarias sem tremer, antes com aliviado suspiro de bem-aventurança; pois um peso grande e sufocante seria retirado de sobre ti, ó pacientíssimo! — ‘Agora morro e desapareço’, falarias, ‘e num instante serei nada. As almas são tão mortais quanto os corpos. Mas o nó de causas em que estou emaranhado retornará — ele me criará novamente! Eu próprio estou entre as causas do eterno retorno. Eu retornarei, com este sol, com esta terra, com esta águia, com esta serpente — não para uma vida nova ou uma vida melhor ou uma vida semelhante: — Retornarei eternamente para esta mesma e idêntica vida, nas coisas maiores e também menores, para novamente ensinar o eterno retorno de todas as coisas, — — para novamente enunciar a palavra do grande meio-dia da terra e dos homens, para novamente anunciar aos homens o super-homem. Falei minha palavra, me despedaço em minha palavra: assim quer minha eterna sina — como anunciador pereço! Chegou a hora em que aquele que declina abençoa a si mesmo. Assim — acaba o declínio de Zaratustra.’” — — Depois de haverem dito essas palavras, os animais silenciaram e aguardaram que Zaratustra lhes dissesse algo: mas Zaratustra não ouviu que silenciavam. Permaneceu deitado, imóvel, de olhos fechados como alguém que dorme, embora não dormisse: pois conversava com sua alma. Mas a serpente e a águia, ao vê-lo assim calado, respeitaram o grande silêncio que o rodeava e se afastaram cuidadosamente. Zaratustra 1 O convalescente

2. Os reis se deleitaram com esses versos de Zaratustra; o rei da direita falou: “Ó Zaratustra, como fizemos bem em nos pôr a caminho para te ver! Teus inimigos nos mostraram tua imagem em seu espelho: ali aparecias com a cara de um demônio e uma risada escarninha: de modo que tivemos receio de ti. Mas de que adiantou? Sempre voltavas a nos penetrar o ouvido e o coração com tuas frases. Então dissemos afinal: Que nos importa a sua APARÊNCIA! Temos de ouvi-lo, a ele que ensina: ‘Deveis amar a paz como meio para novas guerras, e mais à paz breve do que à longa!’. Ninguém jamais falou palavras mais guerreiras: ‘O que é bom? Ser bravo é bom. É a boa guerra que santifica toda causa’. Ó Zaratustra, o sangue de nossos pais agitou-se em nosso corpo com essas palavras: foi como a primavera falando a antigos tonéis de vinho. Quando as espadas se entrechocavam como serpentes de manchas vermelhas, então nossos pais gostavam da vida; o sol da paz lhes parecia morno e frouxo, e a longa paz lhes fazia vergonha. Como suspiravam nossos pais, quando viam espadas cintilantes e secas penduradas na parede! Assim como elas, eram sedentos de guerra. Pois uma espada quer beber sangue, e cintila de desejo.” — — Enquanto os reis falavam e parolavam assim ardorosamente sobre a felicidade de seus pais, Zaratustra foi tomado de um desejo nada pequeno de zombar do seu ardor: pois evidentemente eram reis bastante pacíficos os que tinha à sua frente, com rostos velhos e delicados. Mas conteve-se. “Muito bem!”, disse ele, “ali está o caminho para a caverna de Zaratustra; e este dia deverá ter uma longa noite! Agora, porém, um grito de socorro urgente me chama. É uma honra, para minha caverna, que reis queiram sentar-se e esperar dentro dela: mas certamente havereis de esperar muito! Ora! Que fazer? Onde melhor se aprende a esperar, hoje em dia, do que nas cortes? E toda a virtude que resta agora aos reis — não se chama ela: saber esperar?” Assim falou Zaratustra. Zaratustra 1 Conversa com os reis

2. “Como poderia algo nascer do seu oposto? Por exemplo, a verdade do erro? Ou a vontade de verdade da vontade de engano? Ou a ação desinteressada do egoísmo? Ou a pura e radiante contemplação do sábio da concupiscência? Semelhante gênese é impossível; quem com ela sonha é um tolo, ou algo pior; as coisas de valor mais elevado devem ter uma origem que seja outra, própria — não podem derivar desse fugaz, enganador, sedutor, mesquinho mundo, desse turbilhão de insânia e cobiça! Devem vir do seio do ser, do intransitório, do deus oculto, da ‘coisa em si’8 — nisso, e em nada mais, deve estar sua causa!” — Este modo de julgar constitui o típico preconceito pelo qual podem ser reconhecidos os metafísicos de todos os tempos; tal espécie de valoração está por trás de todos os seus procedimentos lógicos; é a partir desta sua “crença” que eles procuram alcançar seu “saber”, alcançar algo que no fim é batizado solenemente de “verdade”. A crença fundamental dos metafísicos é a crença nas oposições de valores. Nem aos mais cuidadosos entre eles ocorreu duvidar aqui, no limiar, onde mais era necessário: mesmo quando haviam jurado para si próprios de omnibus dubitandum [de tudo duvidar]. Pois pode-se duvidar, primeiro, que existam absolutamente opostos; segundo, que as valorações e oposições de valor populares, nas quais os metafísicos imprimiram seu selo, sejam mais que avaliações de fachada, perspectivas provisórias, talvez inclusive vistas de um ângulo, de baixo para cima talvez, “perspectivas de rã”, para usar uma expressão familiar aos pintores. Com todo o valor que possa merecer o que é verdadeiro, veraz, desinteressado: é possível que se deva atribuir à APARÊNCIA, à vontade de engano, ao egoísmo e à cobiça um valor mais alto e mais fundamental para a vida. É até mesmo possível que aquilo que constitui o valor dessas coisas boas e honradas consista exatamente no fato de serem insidiosamente aparentadas, atadas, unidas, e talvez até essencialmente iguais, a essas coisas ruins e aparentemente opostas. Talvez! — Mas quem se mostra disposto a ocupar-se de tais perigosos “talvezes”? Para isto será preciso esperar o advento de uma nova espécie de filósofos, que tenham gosto e pendor diversos, contrários aos daqueles que até agora existiram — filósofos do perigoso “talvez” a todo custo. — E, falando com toda a seriedade: eu vejo esses filósofos surgirem. Além do Bem e do Mal I 2

3. Depois de por muito tempo ler nos gestos e nas entrelinhas dos filósofos, disse a mim mesmo: a maior parte do pensamento consciente deve ser incluída entre as atividades instintivas, até mesmo o pensamento filosófico; aqui se deve mudar o modo de ver, como já se fez em relação à hereditariedade e às “características inatas”. Assim como o ato de nascer não conta no processo e progresso geral da hereditariedade, também “estar consciente” não se opõe de algum modo decisivo ao que é instintivo — em sua maior parte, o pensamento consciente de um filósofo é secretamente guiado e colocado em certas trilhas pelos seus instintos. Por trás de toda lógica e de sua aparente soberania de movimentos existem valorações, ou, falando mais claramente, exigências fisiológicas para a preservação de uma determinada espécie de vida. Por exemplo, que o determinado tenha mais valor que o indeterminado, a APARÊNCIA menos valor que a “verdade”: tais avaliações poderiam, não obstante a sua importância reguladora para nós, ser apenas avaliações de fachada, um determinado tipo de niaiserie [tolice], tal como pode ser necessário justamente para a preservação de seres como nós. Supondo, claro, que não seja precisamente o homem a “medida de todas as coisas”… Além do Bem e do Mal I 3

10. O afã e a sutileza, quase diria: a astúcia, com que em toda parte da Europa é hoje abordado o problema “do mundo real e do mundo aparente”, leva a pensar e a espreitar; e quem aqui nada ouve no fundo, a não ser uma “vontade de verdade”, certamente não goza da melhor audição. Em certos casos, raros e isolados, pode ser que intervenha uma tal vontade de verdade, algum ânimo excessivo e aventureiro, uma ambição metafísica de manter um posto perdido, que afinal preferirá sempre um punhado de “certeza” a toda uma carroça de belas possibilidades; talvez haja inclusive fanáticos puritanos da consciência, que prefiram um nada seguro a um algo incerto para deitar e morrer. Mas isto é niilismo e sinal de uma alma em desespero, mortalmente cansada, por mais que pareçam valentes os gestos de tal virtude. Entre os pensadores mais fortes, mais vitais, ainda sedentos de vida, as coisas parecem ser diferentes: ao tomar partido contra a APARÊNCIA e pronunciar já com altivez a palavra “perspectiva”, ao conceder ao próprio corpo tão pouco crédito quanto à evidência visual que diz “a Terra está parada”, deixando assim escapar entre as mãos, com aparente bom humor, a sua posse mais segura (pois em que se acredita mais firmemente agora do que no corpo?), quem sabe se no fundo não querem reconquistar algo que outrora se possuía mais firmemente, algo do velho patrimônio da fé de antigamente, talvez “a alma imortal”, talvez “o velho Deus”, em suma, ideias com as quais se podia viver melhor, de maneira mais vigorosa e serena, do que com as “ideias modernas”? Nisso há desconfiança frente às ideias modernas, há descrença de tudo o que foi construído ontem e hoje; há talvez, mesclado com isso, um leve desgosto e desdém que não mais suporta o bric-à-brac de conceitos da mais diversa procedência, com que hoje o chamado positivismo   se apresenta no mercado, uma náusea do gosto mais exigente face ao colorido de feira e aspecto andrajoso desses filosofastros da realidade, nos quais nada há de novo e autêntico exceto o colorido. Nisso me parece que devemos dar razão aos atuais céticos antirrealistas e microscopistas do conhecimento: o instinto que os leva a se afastar da realidade moderna não está refutado — que nos interessam suas vias retrógradas e tortuosas! O essencial neles não é que desejem ir para trás, mas que desejem ir embora. Um pouco mais de força, impulso, ânimo, senso artístico: e desejariam ir para além — não para trás! — Além do Bem e do Mal I 10

19. Os filósofos costumam falar da vontade como se ela fosse a coisa mais conhecida do mundo; Schopenhauer deu a entender que apenas a vontade é realmente conhecida por nós, conhecida por inteiro, sem acréscimo ou subtração. Mas sempre quer me parecer que também nesse caso Schopenhauer fez apenas o que os filósofos costumam fazer: tomou um preconceito popular e o exagerou. Querer me parece, antes de tudo, algo complicado, algo que somente como palavra constitui uma unidade — e precisamente nesta palavra se esconde o preconceito popular que subjugou a cautela sempre inadequada dos filósofos. Ao menos uma vez sejamos cautelosos, então; sejamos “afilosóficos” — digamos que em todo querer existe, primeiro, uma pluralidade de sensações, a saber, a sensação do estado que se deixa, a sensação do estado para o qual se vai, a sensação desse “deixar” e “ir” mesmo, e ainda uma sensação muscular concomitante, que, mesmo sem movimentarmos “braços e pernas”, entra em jogo por uma espécie de hábito, tão logo “queremos”. Portanto, assim como sentir, aliás muitos tipos de sentir, deve ser tido como ingrediente do querer, do mesmo modo, e em segundo lugar, também o pensar: em todo ato da vontade há um pensamento que comanda; — e não se creia que é possível separar tal pensamento do “querer”, como se então ainda restasse vontade! Em terceiro lugar, a vontade não é apenas um complexo de sentir e pensar, mas sobretudo um afeto : aquele afeto do comando. O que é chamado “livre-arbítrio” é, essencialmente, o afeto de superioridade em relação àquele que tem de obedecer: “eu sou livre, ‘ele’ tem de obedecer” — essa consciência se esconde em toda vontade, e assim também aquele retesamento da atenção, o olhar direto que fixa exclusivamente uma coisa, a incondicional valoração que diz “isso e apenas isso é necessário agora”, a certeza interior de que haverá obediência, e o que mais for próprio da condição de quem ordena. Um homem que quer — comanda algo dentro de si que obedece, ou que ele acredita que obedece. Mas agora observem o que é mais estranho na vontade — nessa coisa tão múltipla, para a qual o povo tem uma só palavra: na medida em que, no caso presente, somos ao mesmo tempo a parte que comanda e a que obedece, e como parte que obedece conhecemos as sensações de coação, sujeição, pressão, resistência, movimento, que normalmente têm início logo após o ato da vontade; na medida em que, por outro lado, temos o hábito de ignorar e nos enganar quanto a essa dualidade, através do sintético conceito do “eu”, toda uma cadeia de conclusões erradas e, em consequência, de falsas valorações da vontade mesma, veio a se agregar ao querer — de tal modo que o querente acredita, de boa-fé, que o querer basta para agir. Como, na grande maioria dos casos, só houve querer quando se podia esperar também o efeito da ordem — isto é, a obediência, a ação —, a APARÊNCIA traduziu-se em sensação, como se aí houvesse uma necessidade de efeito ; em suma, o querente acredita, com elevado grau de certeza, que vontade e ação sejam, de algum modo, a mesma coisa — ele atribui o êxito, a execução do querer, à vontade mesma, e com isso goza de um aumento da sensação de poder que todo êxito acarreta. “Livre-arbítrio” é a expressão para o multiforme estado de prazer do querente, que ordena e ao mesmo tempo se identifica com o executor da ordem — que, como tal, goza também do triunfo sobre as resistências, mas pensa consigo que foi sua vontade que as superou. Desse modo o querente junta as sensações de prazer dos instrumentos executivos bem-sucedidos, as “subvontades” ou subalmas — pois nosso corpo é apenas uma estrutura social de muitas almas — à sua sensação de prazer como aquele que ordena. L ‘ effet c ‘ est moi [O efeito sou eu]: ocorre aqui o mesmo que em toda comunidade bem construída e feliz, a classe regente se identifica com os êxitos da comunidade. Em todo querer a questão é simplesmente mandar e obedecer, sobre a base, como disse, de uma estrutura social de muitas “almas”: razão por que um filósofo deve se arrogar o direito de situar o querer em si no âmbito da moral — moral, entenda-se, como a teoria das relações de dominação sob as quais se origina o fenômeno “vida”. — Além do Bem e do Mal I 19

34. Não importando o ponto de vista filosófico em que nos situemos hoje: o caráter errôneo do mundo onde acreditamos viver é a coisa mais firme e segura que nosso olho ainda pode apreender: — para isso encontramos muitas e muitas razões, que gostariam de nos induzir a conjecturas sobre um enganador princípio na “essência das coisas”. Mas quem responsabiliza nosso próprio pensar, ou seja, “o espírito”, pela falsidade do mundo — uma honrada escapatória, a que recorre todo advocatus dei [advogado de Deus] consciente ou inconsciente: quem toma esse mundo, junto com espaço, tempo, forma, movimento, como uma falsa conclusão: esse alguém teria, quando menos, um bom motivo para aprender a suspeitar enfim de todo o pensamento: não teria ele nos pregado a maior peça até agora? e que garantia pode haver de que ele não continue fazendo o que sempre fez? Com toda a seriedade: a inocência dos pensadores tem algo tocante e que inspira reverência, que ainda hoje lhes permite se postar ante a consciência e lhe pedir respostas honestas para algumas questões: por exemplo, se ela é “real”, por que mantém o mundo exterior tão decididamente à distância, e outras perguntas assim. A crença em “certezas imediatas” é uma ingenuidade moral, que nos honra, a nós, filósofos: mas — não devemos ser homens “apenas morais”! Prescindindo da moral, essa crença é uma estupidez que nos honra muito pouco! Na vida civil, a suspeita sempre alerta pode ser tida como indício de “mau caráter”, e portanto uma falta de bom senso: aqui entre nós, além do mundo civil e seus Nãos e Sins, — o que nos impediria de não ter bom senso e dizer: o filósofo, como a criatura que sempre foi mais ludibriada na Terra, tem simplesmente direito ao “mau caráter”, — ele tem hoje o dever da desconfiança, do olhar oblíquo e malicioso a partir de abismos de suspeita. — Perdoem-me a brincadeira dessa caricatura e expressão sombria: pois eu mesmo aprendi há muito a pensar de outro modo, a avaliar de outra maneira o enganar e o ser enganado, e guardo ao menos alguns socos para a fúria cega com que os filósofos resistem a ser enganados. Por que não ? Não passa de um preconceito moral que a verdade tenha mais valor que a APARÊNCIA; é inclusive a suposição mais mal demonstrada que já houve. Admita-se ao menos o seguinte: não existiria nenhuma vida, senão com base em avaliações e aparências perspectivas; e se alguém, com o virtuoso entusiasmo e a rudeza de tantos filósofos, quisesse abolir por inteiro o “mundo aparente”, bem, supondo que vocês pudessem fazê-lo — também da sua “verdade” não restaria nada! Sim, pois o que nos obriga a supor que há uma oposição essencial entre “verdadeiro” e “falso”? Não basta a suposição de graus de APARÊNCIA, e como que sombras e tonalidades do aparente, mais claras e mais escuras, — diferentes valeurs [valores], para usar a linguagem dos pintores? Por que não poderia o mundo que nos concerne — ser uma ficção? E a quem faz a pergunta: “mas a ficção não requer um autor?” — não se poderia replicar: Por quê? Esse “requer” não pertenceria também à ficção? Não é permitido usar de alguma ironia em relação ao sujeito, como em relação ao predicado e objeto? O filósofo não poderia se erguer acima da credulidade na gramática? Todo o respeito às governantas: mas não seria tempo de a filosofia abjurar da fé das governantas? — Além do Bem e do Mal II 34

36. Supondo que nada seja “dado” como real, exceto nosso mundo de desejos e paixões, e que não possamos descer ou subir a nenhuma outra “realidade”, exceto à realidade de nossos impulsos — pois pensar é apenas a relação desses impulsos entre si —: não é lícito fazer a tentativa e colocar a questão de se isso que é dado não bastaria para compreender, a partir do que lhe é igual, também o chamado mundo mecânico (ou “material”)? Quero dizer, não como uma ilusão, uma “APARÊNCIA”, uma “representação” (no sentido de Berkeley   e Schopenhauer), mas como da mesma ordem de realidade que têm nossos afetos, — como uma forma mais primitiva do mundo dos afetos, na qual ainda esteja encerrado em poderosa unidade tudo o que então se ramifica e se configura no processo orgânico (e também se atenua e se debilita, como é razoável), como uma espécie de vida instintiva, em que todas as funções orgânicas, com autorregulação, assimilação, nutrição, eliminação, metabolismo, se acham sinteticamente ligadas umas às outras — como uma forma prévia da vida? — Afinal, não é apenas lícito fazer essa tentativa: é algo imposto pela consciência do método. Não admitir várias espécies de causalidade enquanto não se leva ao limite extremo (— até ao absurdo, diria mesmo) a tentativa de se contentar com uma só: eis uma moral do método, à qual ninguém se pode subtrair hoje; — ela se dá “por definição”, como diria um matemático. A questão é, afinal, se reconhecemos a vontade realmente como atuante, se acreditamos na causalidade da vontade: assim ocorrendo — e no fundo a crença nisso é justamente a nossa crença na causalidade mesma —, temos então que fazer a tentativa de hipoteticamente ver a causalidade da vontade como a única. “Vontade”, é claro, só pode atuar sobre “vontade” — e não sobre “matéria” (sobre “nervos”, por exemplo —): em suma, é preciso arriscar a hipótese de que em toda parte onde se reconhecem “efeitos”, vontade atua sobre vontade — e de que todo acontecer mecânico, na medida em que nele age uma força, é justamente força de vontade, efeito da vontade. — Supondo, finalmente, que se conseguisse explicar toda a nossa vida instintiva como a elaboração e ramificação de uma forma básica da vontade — a vontade de poder, como é minha tese —; supondo que se pudesse reconduzir todas as funções orgânicas a essa vontade de poder, e nela se encontrasse também a solução para o problema da geração e nutrição — é um só problema —, então se obteria o direito de definir toda força atuante, inequivocamente, como vontade de poder. O mundo visto de dentro, o mundo definido e designado conforme o seu “caráter inteligível” — seria justamente “vontade de poder”, e nada mais. — Além do Bem e do Mal II 36

47. Onde quer que a neurose religiosa tenha aparecido na Terra, nós a encontramos ligada a três prescrições dietéticas perigosas: solidão, jejum e abstinência sexual — mas sem podermos decidir, com segurança, o que aí é causa e o que é efeito, e mesmo se existe uma relação de causa e efeito. Justifica a última dúvida o fato de, entre os seus sintomas mais regulares, tanto nos povos selvagens como nos domesticados, achar-se também a volúpia mais repentina e extravagante, que de modo igualmente súbito se transforma em convulsão de penitência e negação do mundo e da vontade: ambas interpretáveis como epilepsia mascarada, talvez? Aqui, mais do que em outra parte, deve-se renunciar à interpretação: em torno de nenhum outro tipo se desenvolveu até agora tanta insensatez e superstição, nenhum outro parece haver interessado mais os homens, inclusive os filósofos — seria tempo de precisamente aqui tornar-se um pouco frio, aprender a cautela, melhor ainda: afastar a vista, afastar-se. — Mesmo no fundo da filosofia mais recente, a de Schopenhauer, encontra-se, quase como o problema em si, essa horrível interrogação da crise e do despertar religioso. Como é possível a negação da vontade? Como é possível o santo? — esta parece ter sido mesmo a questão pela qual Schopenhauer se tornou filósofo, e com a qual começou. E assim foi uma consequência genuinamente schopenhaueriana que seu partidário mais convicto (e talvez o último, no que toca à Alemanha —), ou seja, Richard Wagner, completasse a obra de sua vida justamente nesse ponto, e pusesse afinal em cena esse tipo terrível e eterno na figura de Kundry, type vécu [tipo existido], em carne e osso; na mesma época em que os alienistas de quase toda a Europa tinham oportunidade de estudá-lo de perto, em todo lugar onde a neurose religiosa — ou “ das religiöse Wesen ”, tal como a chamo — teve, como “Exército da Salvação”, sua última irrupção e exibição epidêmica. Mas se nos perguntamos o que, em todo esse fenômeno do santo, foi tão extraordinariamente interessante para os homens de toda espécie e de todos os tempos, mesmo para os filósofos: foi sem dúvida a sua APARÊNCIA de milagre, de imediata sucessão de opostos, de estados d’alma julgados moralmente opostos: aqui parecia palpável que um “homem mau” se tornasse de repente um “santo”, um homem bom. A psicologia até agora existente naufragou nesse ponto: isso não teria acontecido, antes de tudo, porque ela se tinha colocado sob o domínio da moral, porque ela mesma acreditava nas oposições morais de valores, e jogava, lia, interpretava essas oposições no texto e no dado? — Como? O “milagre” apenas um erro de interpretação? Uma falta de filologia? — Além do Bem e do Mal III 47

51. Os homens mais poderosos sempre se curvaram respeitosamente diante do santo, ante o enigma da sujeição de si mesmo e derradeira renúncia intencional: por que se curvavam eles? Nele pressentiam — como que por trás do ponto de interrogação de sua APARÊNCIA frágil e mísera — a força superior que queria se testar com uma tal sujeição, a fortaleza de vontade na qual reconheciam e honravam a própria fortaleza e prazer em dominar: estavam honrando a si mesmos, ao honrar o santo. A isto se junta que a visão do santo lhes despertava uma suspeita: uma tal monstruosidade de negação, de antinatureza, não terá sido desejada em vão, assim diziam e perguntavam a si mesmos. Não haveria uma razão para isso, um perigo muito grande, do qual o asceta estaria mais informado, graças aos seus acólitos e visitantes secretos? Em suma, os poderosos do mundo aprendiam diante dele um novo medo, e pressentiam um novo poder, um inimigo estrangeiro, ainda não sujeitado — a “vontade de poder” é que os obrigava a se deter frente ao santo. Eles tinham que interrogá-lo — Além do Bem e do Mal III 51

54. Que faz, no fundo, toda a filosofia moderna? Desde Descartes   — e antes apesar dele do que a partir do seu precedente — todos os filósofos têm feito um atentado contra o velho conceito de alma, sob a APARÊNCIA de uma crítica ao conceito de sujeito e predicado — ou seja: um atentado contra o pressuposto fundamental da doutrina cristã. A filosofia moderna, sendo um ceticismo epistemológico, é, abertamente ou não, anticristã : embora, diga-se para ouvidos mais sutis, de maneira nenhuma antirreligiosa. Pois antigamente se acreditava na “alma”, assim como se acreditava na gramática e no sujeito gramatical: dizia-se que “eu” é condição, “penso” é predicado e condicionado — pensar é uma atividade, para a qual um sujeito tem que ser pensado como causa. Tentou-se então, com tenacidade e astúcia dignas de admiração, enxergar uma saída nessa teia — se não seria verdadeiro talvez o contrário: “penso”, condição; “eu”, condicionado; “eu” sendo uma síntese, feita pelo próprio pensar. Kant   queria demonstrar, no fundo, que a partir do sujeito o sujeito não pode ser pensado — e tampouco o objeto: a possibilidade de uma existência aparente do sujeito, da “alma”, pode não lhe ter sido estranha, pensamento este que, como filosofia vedanta, já houve uma vez na terra, com imenso poder. Além do Bem e do Mal III 54

131. Os sexos se enganam um a respeito do outro: no fundo, cada um deles ama e honra apenas a si mesmo (ou o seu ideal, para dizê-lo de modo mais agradável). Assim o homem quer a mulher tranquila — mas a mulher, como o gato, é essencialmente intranquila, por mais que tenha aprendido a dar-se uma APARÊNCIA de paz. Além do Bem e do Mal IV 131

229. Nas épocas tardias, que podem se orgulhar de sua humanidade, permanece ainda tanto medo, tanta superstição de medo frente ao “animal feroz e cruel”, o qual justamente as épocas mais humanas se orgulham de haver subjugado, que mesmo verdades tangíveis continuam inexpressas durante séculos, como que por um acordo, porque aparentemente poderiam chamar à vida esse animal selvagem finalmente abatido. Talvez eu corra algum perigo, ao me deixar escapar uma verdade assim: que outros a capturem novamente e a façam beber tanto “leite do pensamento devoto”, que ela fique inerte e esquecida no seu velho canto. — No tocante à crueldade é preciso reconsiderar e abrir os olhos; é preciso finalmente aprender a impaciência, para que deixem de circular, virtuosa e insolentemente, erros gordos e imodestos como, por exemplo, aqueles nutridos por filósofos antigos e novos a respeito da tragédia. Quase tudo a que chamamos “cultura superior” é baseado na espiritualização e no aprofundamento da crueldade — eis a minha tese; esse “animal selvagem” não foi abatido absolutamente, ele vive e prospera, ele apenas — se divinizou. O que constitui a dolorosa volúpia da tragédia é a crueldade; o que produz efeito agradável na chamada compaixão trágica, e realmente em tudo sublime, até nos tremores supremos e mais que delicados da metafísica, obtém sua doçura tão só do ingrediente crueldade nele misturado. O que o romano, na arena, o cristão, nos êxtases da cruz, o espanhol, ante as fogueiras e as touradas, o japonês de hoje, quando corre às tragédias, o operário de subúrbio parisiense, com saudade de revoluções sangrentas, a wagneriana que, de vontade suspensa, “deixa-se tomar” por Tristão e Isolda — o que todos eles apreciam, e procuram beber com misterioso ardor, é a poção bem temperada da grande Circe “crueldade”. Nisso devemos pôr de lado, naturalmente, a tola psicologia de outrora, que da crueldade sabia dizer apenas que ela surge ante a visão do sofrimento alheio : há também um gozo enorme, imensíssimo, no sofrimento próprio, no fazer sofrer a si próprio — e sempre que o homem se deixa arrastar à autonegação no sentido religioso, ou à automutilação, como entre os fenícios e astecas, ou à dessensualização, descarnalização, compunção, às convulsões de penitência puritanas, à vivissecção de consciência e ao sacrifizio dell ‘ intelletto pascaliano, ele é atraído e empurrado secretamente por sua crueldade, por esses perigosos frêmitos da crueldade voltada contra ele mesmo. Por fim se considere que mesmo o homem do conhecimento, ao obrigar seu espírito a conhecer, contra o pendor do espírito e também, com frequência, os desejos de seu coração — isto é, a dizer Não, onde ele gostaria de aprovar, amar, adorar —, atua como um artista e transfigurador da crueldade; tomar as coisas de modo radical e profundo já é uma violação, um querer-magoar a vontade fundamental do espírito, que incessantemente busca a APARÊNCIA e a superfície — em todo querer-conhecer já existe uma gota de crueldade. Além do Bem e do Mal VII 229

230. Talvez não se entenda de imediato o que acabo de dizer sobre uma “vontade fundamental do espírito”: permitam-me uma explicação. — Esse imperioso algo a que o povo chama “espírito” quer ser e quer se sentir senhor, dentro e em torno de si: tem a vontade de conduzir da multiplicidade à simplicidade, uma vontade restritiva, conjuntiva, sequiosa de domínio e realmente dominadora. Suas necessidades e faculdades são aqui as mesmas que os fisiólogos apresentam para tudo que vive, cresce e se multiplica. A força que tem o espírito, de apropriar-se do que lhe é estranho, manifesta-se num forte pendor a assimilar o novo ao antigo, a simplificar o complexo, a rejeitar ou ignorar o inteiramente contraditório: do mesmo modo ele arbitrariamente sublinha, destaca e ajeita para si determinados traços e linhas do que lhe é estranho, de cada fragmento de “mundo exterior”. Assim fazendo, sua intenção é incorporar novas “experiências”, enquadrar novas coisas em velhas divisões — é o crescimento, portanto; mais exatamente, a sensação de crescimento, a sensação de força aumentada. A serviço dessa mesma vontade se acha também um impulso aparentemente oposto do espírito, uma brusca decisão de não saber, de encerrar-se voluntariamente, um fechamento das janelas, um dizer Não interiormente a essa ou aquela coisa, um não-deixar que algo se aproxime, um estado defensivo ante muita coisa conhecível, uma satisfação com o obscuro, com o horizonte que se fecha, um acolhimento e aprovação da insciência: tudo isso necessário, conforme o grau de sua força apropriadora, de sua “força digestiva”, usando uma imagem — e realmente o “espírito” se assemelha mais que tudo a um estômago. A isto se relaciona, de igual maneira, a ocasional vontade de o espírito se deixar iludir, talvez pressentindo travessamente que as coisas não são assim, de que apenas se convenciona que sejam assim, um gosto na incerteza e ambiguidade, um jubiloso fruir da arbitrária estreiteza e discrição de um canto, do extremamente próximo, da fachada, do que é ampliado, diminuído, deslocado, embelezado, uma fruição da arbitrariedade dessas expressões de poder. Por fim também é parte disso a problemática disposição do espírito para iludir outros espíritos e disfarçar-se diante deles, o ímpeto e pressão permanente de uma força criadora, modeladora, mutável: nisso o espírito frui a astúcia e diversidade de suas máscaras, frui também o sentimento de sua certeza — justamente por suas artes de Proteu ele é bem protegido e escondido! — Contra essa vontade de APARÊNCIA, de simplificação, de máscara, de manto, enfim, de superfície — pois toda superfície é um manto —, atua aquele sublime pendor do homem de conhecimento, ao tomar e querer tomar as coisas de modo profundo, plural, radical: como uma espécie de crueldade da consciência e do gosto intelectuais, que todo pensador valente reconhecerá em si, desde que tenha endurecido e aguçado longamente o seu olhar para si mesmo, como deve, e esteja habituado a disciplina rigorosa e palavras rigorosas. Ele dirá: “Há algo cruel nesse pendor do meu espírito” — e os virtuosos e amáveis que procurem convencê-lo do contrário! De fato, soaria mais agradável se de nós murmurassem, se nos imputassem e também reputassem, em vez da crueldade, uma certa “extravagante honestidade”, a nós, espíritos livres, muito livres — e quem sabe esta não será, um dia, a nossa — reputação? Entretanto — pois haverá tempo, até lá — seríamos os últimos a nos enfeitar com os floreios e franjas de tais expressões morais: todo o trabalho que até agora fizemos nos tira precisamente esse gosto e sua alegre luxúria. São palavras belas, solenes, reluzentes, tilintantes: honestidade, amor à verdade, amor à sabedoria, sacrifício pelo conhecimento, heroísmo do que é veraz — há algo nelas que faz subir o orgulho. Mas nós, eremitas e marmotas, há muito nos persuadimos, no fundo segredo de uma consciência eremita, que também essa digna pompa verbal é parte do velho enfeite-mentira, poeira e purpurina da inconsciente vaidade humana, e que também sob uma cor e uma pintura tão lisonjeiras deve ser reconhecido, uma vez mais, o terrível texto básico homo natura. Retraduzir o homem de volta à natureza; triunfar sobre as muitas interpretações e conotações vaidosas e exaltadas, que até o momento foram rabiscadas e pintadas sobre o eterno texto homo natura ; fazer com que no futuro o homem se coloque frente ao homem tal como hoje, endurecido na disciplina da ciência, já se coloca frente à outra natureza, com intrépidos olhos de Édipo e ouvidos tapados como os de Ulisses, surdo às melodias dos velhos, metafísicos apanhadores de pássaros, que por muito tempo lhe sussurraram: “Você é mais! É superior! Tem outra origem!” — essa pode ser uma louca e estranha tarefa, mas é uma tarefa — quem o negaria? Por que a escolhemos, essa tarefa? Ou, perguntando de outro modo: “Por que conhecimento, afinal?”. Todos nos perguntarão isso. E nós, premidos desse modo, nós, que já nos fizemos mil vezes a mesma pergunta, jamais encontraremos resposta melhor que… Além do Bem e do Mal VII 230

232. A mulher quer ser independente: e com tal objetivo começa a esclarecer os homens sobre a “mulher em si” — este é um dos piores progressos no enfeamento geral da Europa. Pois o que não revelarão essas grosseiras tentativas de cientificidade e autodesnudamento femininos! A mulher tem muitos motivos para o pudor; há tanta coisa pedante, superficial, sabichã, mesquinhamente arrogante, mesquinhamente irrefreada e imodesta escondida na mulher — basta examinar sua relação com as crianças! —, que até o momento, e no fundo, só o temor ao homem reprimiu e conteve da melhor maneira. Ai de nós, se um dia o “eterno-tedioso da mulher” — no qual ela é pródiga — puder aparecer! Se ela começar a desaprender radicalmente e por princípio sua arte e manha, a da graciosidade, do jogo, do afastar aflições, de aliviar e tomar com leveza, e sua refinada aptidão para desejos agradáveis! Já se ouvem vozes femininas que — por santo Aristófanes! — assustam; explicam ameaçadoramente e com precisão médica o que, em primeira e última análise, a mulher quer do homem. Não é de péssimo gosto que a mulher se disponha de tal modo a ser científica? Até agora a tarefa de esclarecer foi, por felicidade, coisa de homens, dom dos homens — ficava “entre nós”; e afinal, com tudo o que as mulheres escreveram sobre “a mulher”, é lícito duvidar que a mulher queira ou possa querer esclarecimento sobre si… Se com isso ela não busca para si um novo enfeite — creio que enfeitar-se é parte do eterno-feminino, não? —, então ela quer despertar temor — quer talvez dominar. Mas não quer a verdade: que interessa à mulher a verdade! Desde o início nada é mais alheio, mais avesso, mais hostil à mulher que a verdade — sua grande arte é a mentira, seu maior interesse, a APARÊNCIA e a beleza. Vamos confessá-lo, nós, homens: nós festejamos e amamos precisamente essa arte e esse instinto na mulher: nós, para quem as coisas são pesadas e que de bom grado nos juntamos, para obter alívio, a seres cujas mãos, olhares e ternas tolices nos fazem parecer quase tolice a nossa seriedade, nosso peso e profundidade. Afinal coloco a pergunta: alguma mulher já reconheceu profundidade a uma cabeça de mulher, justiça a um coração de mulher? E não é verdadeiro que, tudo somado, “a mulher” foi sempre mais desprezada pela mulher mesma? — e de forma alguma por nós? Nós, homens, desejamos que a mulher não continue a se comprometer através do esclarecer: assim como foi cuidado e atenção masculina para com a mulher que a Igreja decretasse mulier taceat in ecclesia ! [que a mulher se cale na igreja!]. Foi em proveito da mulher que Napoleão deu a entender à excessivamente loquaz Madame de Staël: mulier taceat in politicis ! [a mulher se cale na política!] — e penso que é um verdadeiro amigo das mulheres quem hoje lhes diz: mulier taceat de muliere ! [a mulher se cale acerca da mulher!]. Além do Bem e do Mal VII 232

244. Houve um tempo em que se costumava distinguir os alemães como “profundos”; agora, em que o tipo de maior êxito do novo germanismo quer distinções inteiramente outras, e talvez sinta a falta de “arrojo” em tudo que é profundo, pode ser atual e patriótico perguntar se não havia ilusão naquele elogio: se a profundidade alemã não seria, no fundo, algo distinto e pior — algo de que, graças a Deus, estamos a ponto de nos livrar com sucesso. Façamos, pois, a tentativa de nos reeducar acerca da profundidade alemã: para isso deve bastar uma pequena vivissecção da alma alemã. — A alma alemã é antes de tudo múltipla, de origem vária, mais composta e sobreposta que propriamente construída: a causa disso está em sua procedência. Um alemão que ousasse afirmar “Duas almas, oh! habitam em meu peito” estaria bem longe da verdade, ou melhor, ficaria muitas almas aquém da verdade. Como povo da mais extraordinária mistura e amálgama de raças, talvez com predomínio do elemento pré-ariano, como “povo do meio” em todo sentido, os alemães são mais inapreensíveis, mais amplos, mais contraditórios, mais desconhecidos, mais imprevisíveis, mais surpreendentes e mesmo mais apavorantes para si mesmos do que outros povos — eles se esquivam à definição, e apenas por isso já constituem o desespero dos franceses. É próprio dos alemães nunca deixar de se perguntar “o que é alemão?”. Kotzebue conhecia bem seus alemães, não há dúvida: “Fomos reconhecidos”, disseram-lhe contentes — mas também Sand acreditava conhecê-los. Jean Paul sabia o que fazia, quando se declarou irritado com os exageros e adulações de Fichte  , mendazes porém patrióticos — mas é provável que Goethe pensasse diferente de Jean Paul sobre os alemães, embora lhe desse razão no tocante a Fichte. O que pensou Goethe realmente sobre os alemães? — Ele nunca falou claramente sobre muitas coisas a seu redor, e toda a vida foi um mestre no silêncio sutil — provavelmente tinha boas razões para isso. É certo que não foram as “Guerras de Libertação” que lhe tornaram mais alegre o olhar, e tampouco a Revolução Francesa — o acontecimento que o levou a repensar seu Fausto, e mesmo todo o problema “homem”, foi o surgimento de Napoleão. Existem frases de Goethe nas quais ele julga com impaciente dureza, como de um país estrangeiro, aquilo que os alemães têm como orgulho: o célebre Gemüt [ânimo] alemão é definido por ele como “indulgência para com as fraquezas alheias e próprias”. Estaria sendo injusto? É próprio dos alemães o fato de raras vezes alguém ser inteiramente injusto para com eles. A alma alemã tem corredores e veredas em si, no seu interior existem cavernas, esconsos e masmorras; sua desordem tem muito do encanto do mistério; o alemão conhece os caminhos tortuosos para o caos. E como toda coisa ama seu símile, o alemão ama as nuvens e tudo que é turvo, cambiante, crepuscular, úmido e velado: todo tipo de coisa incerta, inacabada, evasiva, em crescimento, ele sente como “profundo”. O alemão mesmo não é, ele se torna, se “desenvolve”. O “desenvolvimento” é, por isso, o autêntico achado e acerto alemão no reino das fórmulas filosóficas — um conceito soberano, que, aliado à cerveja alemã e à música alemã, trabalha para a germanização de toda a Europa. Os estrangeiros se detêm surpresos e atraídos, ante os enigmas que lhes propõe a natureza contraditória da alma alemã (que Hegel colocou em sistema, e por último Wagner transpôs em música). “Bonomia e perfídia” — uma tal coexistência, absurda em qualquer outro povo, infelizmente se justifica com muita frequência na Alemanha: basta viver algum tempo entre os suábios! A gravidade do erudito alemão, sua insipidez social quadram terrivelmente bem com seu funambulismo interior e audácia desenvolta, que os deuses todos aprenderam a temer. Querendo-se uma demonstração ad oculos [para a vista] da alma alemã, examine-se o gosto alemão, as artes e os costumes alemães: que indiferença campônia face ao “gosto”! Como se acham lado a lado o que é nobre e o que é vulgar! Quão desordenada e rica é essa economia da alma! O alemão se arrasta com sua alma, e com tudo que vivencia. Ele digere mal seus acontecimentos, jamais “dá conta” deles; a profundidade alemã é, com frequência, apenas uma “digestão” pesada e arrastada. E como todos os doentes crônicos, todos os dispépticos, têm inclinação para o conforto, o alemão gosta de “franqueza” e “correção”: é cômodo ser correto e franco! O disfarce mais perigoso e feliz de que o alemão entende, hoje em dia, é talvez esse caráter confidente, afável, cartas à mostra que tem a honestidade alemã: ele é sua autêntica arte mefistofélica, com ele pode ir “bem longe ainda”! O alemão se deixa ir, olhando com seus leais, azuis, vazios olhos alemães — e logo os estrangeiros o confundem com seu roupão! — Quero dizer: seja o que for a “profundidade alemã”, aqui entre nós não podemos rir dela? — faremos bem em continuar honrando sua APARÊNCIA e bom nome no futuro, e não vender nossa velha fama de povo da profundidade, em troca de “arrojo” prussiano e de engenho e areia berlinenses. É sábio para um povo ser tido, fazer com que o tenham por profundo, sem jeito, bonachão, tolo, honesto: pode até ser — profundo! Afinal: é preciso honrar o próprio nome — não é por nada que nos chamamos das “ tuische ” Volk, das Täusche-Volk [o povo que engana]… Além do Bem e do Mal VIII 244

270. A altivez e o nojo espirituais de todo homem que sofreu profundamente — a hierarquia é quase que determinada pelo grau de sofrimento a que um homem pode chegar —, a arrepiante certeza da qual é impregnado e tingido, de mediante seu sofrimento saber mais do que os mais inteligentes e sábios podem saber, de ter estado e ser versado em tantos mundos distantes e horríveis, dos quais “ vocês nada sabem!”…, essa altivez espiritual silenciosa daquele que sofre, esse orgulho do eleito do conhecimento, do “iniciado”, do quase sacrificado, tem como necessárias todas as formas do disfarce, para proteger-se do contato com mãos importunas e compassivas e, sobretudo, de todo aquele que não lhe é igual na dor. O sofrimento profundo enobrece; coloca à parte. Uma das mais sutis formas de disfarce é o epicurismo, e uma certa ostensiva bravura do gosto, que não toma a sério o sofrimento e se põe em guarda contra tudo que é triste e profundo. Há “homens joviais” que se utilizam da jovialidade porque graças a ela são mal entendidos — eles querem ser mal entendidos. Há “homens científicos” que se utilizam da ciência por lhes dar uma APARÊNCIA jovial, e porque a cientificidade leva a concluir que o homem é superficial — eles querem induzir a uma falsa conclusão. Há espíritos livres e insolentes, que gostariam de ocultar e negar que são corações destroçados, orgulhosos, incuráveis; e por vezes a doidice mesma é a máscara para um saber desventurado, certo em demasia. — Do que resulta ser próprio de uma humanidade mais fina possuir reverência “diante da máscara”, e não exercitar psicologia e curiosidade no lugar errado. Além do Bem e do Mal IX 270

O prestidigitador e seu oposto. — O que é espantoso na ciência é o contrário do que é espantoso na arte do prestidigitador. Pois este quer que vejamos uma causalidade bem simples onde atua, na realidade, uma causalidade bem complexa. Enquanto a ciência nos faz abandonar causalidades simples onde tudo parece facilmente compreensível e nós somos os bufões da APARÊNCIA. As coisas “mais simples” são muito complicadas — não podemos nos maravilhar o bastante com isso! Aurora LIVRO I 6

Origem da vita contemplativa. — Em épocas cruas, quando prevalecem os juízos pessimistas sobre o homem e o mundo, o indivíduo com o sentimento de sua plena força procura sempre agir conforme tais juízos, ou seja, transpor a ideia em ação mediante roubo, caçada, ataque, sevícia e assassinato, incluindo as cópias mais brandas desses atos, as únicas toleradas no seio da comunidade. Decaindo a sua força, porém, sentindo-se ele cansado, enfermo, melancólico ou saciado, e, portanto, momentaneamente sem desejo e apetite, ele é um homem relativamente melhor, isto é, menos danoso, e suas concepções pessimistas desafogam-se apenas em palavras e pensamentos, relativos, por exemplo, ao valor de seus camaradas, sua mulher, sua vida ou seus deuses — seus juízos serão juízos maus. Nesse estado ele se transforma em pensador e anunciador, ou desenvolve imaginativamente sua superstição e engendra novos costumes, ou zomba de seus inimigos —: mas, não importa o que invente, todos os produtos [de seu espírito] têm de refletir seu estado, o crescimento do temor e do cansaço, o decréscimo de sua estima pela ação e a fruição; o teor desses produtos tem de corresponder ao teor dessas disposições poéticas, pensadoras, sacerdotais; o mau juízo tem de prevalecer. Mais tarde, todos os que faziam ininterruptamente o que antes fazia o indivíduo naquele estado, ou seja, que abrigavam maus juízos, que viviam melancólicos e inertes, foram chamados de poetas, pensadores, sacerdotes, curandeiros —: porque não agiam suficientemente, de bom grado teriam sido menosprezados e expulsos da comunidade; mas isso era um tanto perigoso — eles haviam se ocupado da superstição e dos rastros de forças divinas, não se duvidava que dispusessem de desconhecidos meios de poder. Nessa estima viveu a mais antiga linhagem de naturezas contemplativas — desprezada na medida exata em que não era temida! Em tal forma disfarçada, com tal APARÊNCIA ambígua, com mau coração e, frequentemente, espírito angustiado, a contemplação apareceu inicialmente na terra, ao mesmo tempo fraca e temível, desprezada às ocultas e publicamente coberta de supersticiosa veneração! Aí, como sempre, há que dizer: pudenda origo [vergonhosa origem]! Aurora LIVRO I 42

O aparente egoísmo. — A grande maioria dos homens, não importa o que pensem ou digam do seu “egoísmo”, nada fazem durante a vida por seu ego, mas apenas pelo fantasma de ego que sobre eles formou-se nas mentes à sua volta e lhes foi comunicado — em consequência, vivem todos numa névoa de opiniões impessoais e semipessoais e de valorações arbitrárias, como que poéticas, um na mente do outro, e essa mente em outras: um estranho mundo de fantasmas, que sabe mostrar uma APARÊNCIA tão sóbria! Essa névoa de opiniões e hábitos cresce e vive quase de forma independente das pessoas que envolve; dela depende o enorme efeito dos juízos universais sobre o “homem” — todos esses homens desconhecidos de si próprios acreditam na exangue abstração “homem”, ou seja, numa ficção; e toda mudança realizada nessa abstração pelos juízos de indivíduos poderosos (como príncipes e filósofos) influi extraordinariamente e em medida irracional sobre a grande maioria — tudo pela razão de que nenhum indivíduo dessa maioria é capaz de contrapor à pálida ficção universal um ego real, a ele acessível e por ele examinado, e assim aniquilá-la. Aurora LIVRO II 105

Perspectiva distante. — Se apenas forem morais, como se definiu, as ações que fazemos pelo próximo e somente pelo próximo, então não existem ações morais! Se apenas forem morais — segundo outra definição — as ações que fazemos com livre-arbítrio, então não existem ações morais! — O que, então, é isso que tem esse nome, que de todo modo existe e pede explicação? São os efeitos de alguns erros intelectuais. — Supondo que nos libertássemos desses erros, que seria das “ações morais”? — Em virtude desses erros, até hoje atribuímos a algumas ações um valor maior alto do que o que têm: nós as distinguimos das ações “egoístas” e das “não-livres”. Se agora tornamos a juntá-las a estas, como temos de fazer, diminuímos certamente o seu valor (o sentimento de seu valor), e isso abaixo da medida razoável, pois as ações “egoístas” e “não-livres” tiveram avaliação muito baixa até o momento, devido à suposta diferença intrínseca e profunda. — Então elas serão realizadas com menor frequência a partir de agora, porque passarão a ser menos valorizadas? — Inevitavelmente! Ao menos por um bom tempo, enquanto a balança do sentimento de valor estiver sob a reação de erros passados! Mas nossa contrapartida é que restituímos aos homens a boa coragem para as ações difamadas como egoístas e restauramos o valor das mesmas — roubamos delas a má consciência! E, como até hoje foram as mais frequentes, e em todo o futuro continuarão a sê-lo, retiramos a todo o quadro das ações e da vida a sua má APARÊNCIA! Não mais se considerando mau, o homem deixa de sê-lo! Aurora LIVRO II 148

Futuro da nobreza. — Os gestos do mundo nobre são expressão do fato de que em seus membros a consciência do poder joga continuamente o seu jogo encantador. De modo que a pessoa de hábitos nobres, homem ou mulher, não gosta de deixar-se cair exausta na poltrona; evita apoiar as costas onde todos procuram estar cômodos, num trem, por exemplo; parece não se cansar quando fica horas em pé na corte; não arruma sua casa em vista do conforto, mas de maneira espaçosa e digna, como que para hospedar seres maiores (e mais longos); responde uma fala provocadora com compostura e clareza de espírito, não como se estivesse horrorizada, esmagada, envergonhada, sem fôlego, à maneira do plebeu. Assim como sabe manter o aspecto de uma força física sempre elevada e constante, deseja, por meio de permanente serenidade e solicitude, mesmo em situações penosas, conservar a impressão de que sua alma e seu espírito se acham à altura dos perigos e das surpresas. Uma cultura nobre, em vista das paixões, pode semelhar o cavaleiro que experimenta volúpia em fazer um animal ardente e orgulhoso andar em marcha espanhola — pensemos na época de Luís XIV — ou ao cavaleiro que sente o cavalo disparando sob si como uma força da natureza, bem no limite em que animal e cavaleiro perdem a cabeça, mas fruindo a volúpia de ainda ter no lugar a cabeça: nos dois casos a cultura nobre respira poder, e, se com frequência os seus costumes exigem tão-só a APARÊNCIA do sentimento de poder, a impressão que esse jogo produz nos não-nobres, e o espetáculo dessa impressão, fazem crescer continuamente o verdadeiro sentimento de superioridade. — Essa indiscutível felicidade da cultura nobre, baseada no sentimento da superioridade, agora começa a subir um degrau ainda mais elevado, pois graças aos espíritos livres é agora permitido e não mais vergonhoso, para alguém nascido e educado na nobreza, entrar para a ordem do conhecimento e lá obter ordenações mais intelectuais, aprender artes cavalheirescas mais elevadas do que até então, erguendo os olhos para aquele ideal de sabedoria vitoriosa que nenhuma época pôde estabelecer com tão boa consciência como a época que está para vir. E, por fim: com o que deve ocupar-se doravante a nobreza, se cada dia mais parece indecente envolver-se com a política? — — Aurora LIVRO III 201

Simulação como dever. — Na maioria das vezes, a bondade foi desenvolvida pela demorada simulação que buscava parecer bondade: em todo lugar onde existiu grande poder, viu-se a necessidade de justamente esse tipo de simulação — ela infunde certeza e confiança, e centuplica a verdadeira soma de poder físico. A mentira é, se não a mãe, certamente a ama-de-leite da bondade. Também a honradez foi cultivada sobretudo pela demanda de uma APARÊNCIA de honradez e probidade: nas aristocracias hereditárias. O que é simulado por longo tempo torna-se enfim natureza: a simulação acaba por suprimir a si mesma, e órgãos e instintos são os inesperados frutos do jardim da hipocrisia. Aurora LIVRO IV 248

APARÊNCIA de heroísmo. — Lançar-se no meio dos inimigos pode ser a marca da covardia. Aurora LIVRO IV 299

Ideal grego. — Que admiravam os gregos em Ulisses? Sobretudo a aptidão para a mentira e a represália astuciosa e terrível; o estar à altura das circunstâncias; quando for o caso, parecer mais nobre que os mais nobres; poder ser o que quiser; a heróica tenacidade; ter todos os meios à sua disposição; ter espírito — seu espírito é admirado pelos deuses, eles sorriem, quando nele pensam —: isso tudo é o ideal grego! O mais notável é que aí a oposição entre ser e APARÊNCIA não é sentida e, portanto, também não é moralmente considerada. Já houve atores tão consumados? Aurora LIVRO IV 306

Os únicos caminhos. — “A dialética é o único caminho para chegar ao ser divino e por trás do véu da APARÊNCIA” — é o que afirma Platão, com a mesma solenidade e paixão com que Schopenhauer declara isto sobre o oposto da dialética — e ambos estão errados. Pois não há aquilo para o qual querem nos mostrar o caminho. — E todas as grandes paixões da humanidade não foram até agora uma dessas paixões por nada? E todas as suas atitudes solenes — solenidades por nada? Aurora LIVRO V 474

Conhecimento e beleza. — Se as pessoas, como sempre fizeram, guardam sua reverência e seu sentimento de felicidade para obras de imaginação e dissimulação, não deve surpreender que se achem frias e desanimadas ante o oposto da imaginação e dissimulação. O deleite que já vem com o mínimo passo ou progresso seguro e definitivo na compreensão, que da ciência atual já emana abundantemente e para tantos — nesse deleite não acreditam, no momento, todos aqueles que se acostumaram a deleitar-se apenas abandonando a realidade, saltando nas profundezas da APARÊNCIA. Eles pensam que a realidade é feia: mas não acham que o conhecimento até da realidade mais feia seja belo, nem que quem sabe muito esteja bem longe, enfim, de achar feio o imenso conjunto da realidade, cuja descoberta sempre lhe deu felicidade. Existe, então, algo “belo em si”? A felicidade do homem que conhece aumenta a beleza do mundo e torna mais ensolarado tudo o que há; o conhecimento põe sua beleza não só em torno das coisas, mas, com o tempo, nas coisas; — que a humanidade vindoura dê testemunho dessa afirmação! Enquanto isso, lembremos um antigo saber: dois homens bastante diferentes, Platão e Aristóteles, concordaram em que a felicidade suprema, não só para eles ou os homens em geral, mas em si mesma, até para deuses de altas venturas, consiste no conhecer, na atividade de um bem treinado entendimento que procura e inventa (não na “intuição”, como os teólogos e semiteólogos alemães; não na visão, como os místicos, e tampouco no fazer, como todos os práticos). De modo semelhante julgaram Descartes e Spinoza  : como devem ter fruído o conhecimento todos eles! E que perigo para a sua honestidade, o de assim tornarem-se panegiristas das coisas! — Aurora LIVRO V 550

Mas Sócrates intuiu algo mais. Ele enxergou por trás de seus nobres atenienses; entendeu que seu próprio caso, sua idiossincrasia de caso já não era exceção. A mesma espécie de degenerescência já se preparava silenciosamente em toda parte: a velha Atenas caminhava para o fim. — E Sócrates entendeu que o mundo inteiro dele necessitava — de seu remédio, seu tratamento, seu artifício pessoal de autopreservação… Em toda parte os instintos estavam em anarquia; em toda parte se estava a poucos passos do excesso: o monstrum in animo era o perigo geral. “Os instintos querem fazer o papel de tirano; deve-se inventar um contratirano que seja mais forte…” Quando aquele fisionomista revelou a Sócrates quem este era, um covil de todos os apetites ruins, o grande irônico disse ainda uma frase que é uma chave para compreendê-lo. “Isso é verdade”, falou, “mas tornei-me senhor de todos eles.” Como se tornou ele senhor de si? — Seu caso era, no fundo, apenas o caso extremo, o que mais saltava aos olhos, daquilo que então começava a se tornar miséria geral: que ninguém mais era senhor de si, que os instintos se voltavam uns contra os outros. Ele fascinou por ser esse caso extremo — sua amedrontadora feiúra o distinguia para todos os olhos; ele fascinou ainda mais intensamente, está claro, como resposta, como solução, como APARÊNCIA de cura para esse caso. — Crepúsculo dos Ídolos II O PROBLEMA DE SÓCRATES 9

Vocês me perguntam o que é idiossincrasia nos filósofos?… Por exemplo, sua falta de sentido histórico, seu ódio à noção mesma do vir-a-ser, seu egipcismo. Eles acreditam fazer uma honra a uma coisa quando a des-historicizam, sub specie aeterni [sob a perspectiva da eternidade] — quando fazem dela uma múmia. Tudo o que os filósofos manejaram, por milênios, foram conceitos-múmias; nada realmente vivo saiu de suas mãos. Eles matam, eles empalham quando adoram, esses idólatras de conceitos — tornam-se um perigo mortal para todos, quando adoram. A morte, a mudança, a idade, assim como a procriação e o crescimento, são para eles objeções — até mesmo refutações. O que é não se torna; o que se torna não é… Agora todos eles creem, com desespero até, no ser. Mas, como dele não se apoderam, buscam os motivos pelos quais lhes é negado. “Deve haver uma APARÊNCIA, um engano, que nos impede de perceber o ser: onde está o enganador?” — “Já o temos”, gritam felizes, “é a sensualidade! Esses sentidos, já tão imorais em outros aspectos, enganam-nos acerca do verdadeiro mundo. Moral: desembaraçar-se do engano dos sentidos, do vir-a-ser, da história, da mentira — história não é senão crença nos sentidos, crença na mentira. Moral: dizer não a tudo o que crê nos sentidos, a todo o resto da humanidade: tudo isso é ‘povo’. Ser filósofo, ser múmia, representar o ‘monotonoteísmo’ com mímica de coveiro! — E, sobretudo, fora com o corpo, essa deplorável idée fixe dos sentidos! acometido de todos os erros da lógica, refutado, até mesmo impossível, embora insolente o bastante para portar-se como se fosse real!…” Crepúsculo dos Ídolos III A “RAZÃO” NA FILOSOFIA 1

— Vamos contrapor a isso, finalmente, de que outra maneira nós (— digo “nós” por cortesia…) abordamos o problema do erro e da APARÊNCIA. Antes se tomava a mudança, a transformação, o vir-a-ser como prova da APARÊNCIA, como sinal de que aí deve haver algo que nos induz ao erro. Hoje, ao contrário, e justamente na medida em que o preconceito da razão nos obriga a estipular unidade, identidade, duração, substância, causa, materialidade, ser, vemo-nos enredados de certo modo no erro, forçados ao erro; tão seguros estamos nós, com base em rigoroso exame, que aqui está o erro. Não é diferente do que sucede com os movimentos do grande astro: no caso deles, o erro tem nosso olho como permanente advogado, e aqui, tem nossa linguagem. A linguagem pertence, por sua origem, à época da mais rudimentar forma de psicologia: penetramos um âmbito de cru fetichismo, ao trazermos à consciência os pressupostos básicos da metafísica da linguagem, isto é, da razão. É isso que em toda parte vê agentes e atos: acredita na vontade como causa; acredita no “Eu”, no Eu como ser, no Eu como substância, e projeta a crença no Eu-substância em todas as coisas — apenas então cria o conceito de “coisa”… Em toda parte o ser é acrescentado pelo pensamento como causa, introduzido furtivamente; apenas da concepção “Eu” se segue, como derivado, o conceito de “ser”… No início está o enorme e fatídico erro de que a vontade é algo que atua — de que vontade é uma faculdade… Hoje sabemos que é apenas uma palavra… Muito tempo depois, num mundo mil vezes mais esclarecido, chegou à consciência dos filósofos, com surpresa, a segurança, a subjetiva certeza no manejo das categorias da razão: eles concluíram que estas não podiam proceder do mundo empírico — todo o mundo empírico as contradiz. De onde procedem, então? — E na Índia, como na Grécia, foi cometido o mesmo erro: “Devemos já ter habitado um mundo mais elevado (— em vez de um bem mais baixo: o que teria sido a verdade!), devemos ter sido divinos, pois temos a razão!”… Na realidade, nada, até o presente, teve uma força de persuasão mais ingênua do que o erro do ser, tal como foi formulado pelos eleatas, por exemplo: afinal, ele tem a seu favor cada palavra, cada frase que falamos! — Também os opositores dos eleatas estavam sujeitos à sedução de seu conceito do ser: Demócrito, entre outros, ao inventar seu átomo… A “razão” na linguagem: oh, que velha e enganadora senhora! Receio que não nos livraremos de Deus, pois ainda cremos na gramática… Crepúsculo dos Ídolos III A “RAZÃO” NA FILOSOFIA 5

Quarta tese. Dividir o mundo em um “verdadeiro” e um “aparente”, seja à maneira do cristianismo, seja à maneira de Kant (um cristão insidioso, afinal de contas), é apenas uma sugestão da décadence — um sintoma da vida que declina… O fato de o artista estimar a APARÊNCIA mais que a realidade não é objeção a essa tese. Pois “a APARÊNCIA” significa, nesse caso, novamente a realidade, mas numa seleção, correção, reforço… O artista trágico não é um pessimista — ele diz justamente Sim a tudo questionável e mesmo terrível, ele é dionisíaco… Crepúsculo dos Ídolos III A “RAZÃO” NA FILOSOFIA 6

Eis um primeiro exemplo, bastante provisoriamente. Sempre se quis “melhorar” os homens: sobretudo a isso chamava-se moral. Mas sob a mesma palavra se escondem as tendências mais diversas. Tanto o amansamento da besta-homem como o cultivo de uma determinada espécie de homem foram chamados de “melhora”: somente esses termos zoológicos exprimem realidades — realidades, é certo, das quais o típico “melhorador”, o sacerdote, nada sabe — nada quer saber… Chamar a domesticação de um animal sua “melhora” é, a nossos ouvidos, quase uma piada. Quem sabe o que acontece nas ménageries duvida que a besta seja ali “melhorada”. Ela é enfraquecida, tornada menos nociva; mediante o depressivo afeto do medo, mediante dor, fome, feridas, ela se torna uma besta doentia. — Não é diferente com o homem domado, que o sacerdote “melhorou”. Na Alta Idade Média, quando, de fato, a Igreja era sobretudo uma ménagerie, os mais belos exemplares da “besta loura” eram caçados em toda parte — foram “melhorados”, por exemplo, os nobres germanos. Mas que APARÊNCIA tinha depois esse germano “melhorado”, conquistado para o claustro? A de uma caricatura de homem, de um aborto: tornara-se um “pecador”, estava numa jaula, tinham-no encerrado entre conceitos terríveis… Ali jazia ele, doente, miserável, malevolente consigo mesmo; cheio de ódio para com os impulsos à vida, cheio de suspeita de tudo o que ainda era forte e feliz. Em suma, um “cristão”… Em termos fisiológicos: na luta contra a besta, tornar doente pode ser o único meio de enfraquecê-la. Isso compreendeu a Igreja: ela estragou o ser humano, ela o debilitou — mas reivindicou tê-lo “melhorado”… Crepúsculo dos Ídolos VII OS “MELHORADORES” DA HUMANIDADE 2

Casuística de psicólogos. — Este é um conhecedor dos homens: para que estuda ele realmente os homens? Quer adquirir pequenas vantagens sobre eles, ou também grandes — é um político!… Aquele é também um conhecedor dos homens: e vocês dizem que com isso ele não quer nada para si, que é um grande “impessoal”. Olhem mais atentamente! Talvez ele queira até uma vantagem pior: sentir-se superior aos homens, poder olhar para eles de cima, não mais confundir-se com eles. Esse “impessoal” é um desprezador dos homens: e o primeiro é a espécie mais humana, não importa o que diga a APARÊNCIA. Ao menos ele se coloca no mesmo plano, coloca-se dentro… Crepúsculo dos Ídolos IX INCURSÕES DE UM EXTEMPORÂNEO 15

No mesmo livro (§ 42) é analisado em que estima, sob que pressão de estima teve que viver a mais antiga estirpe de homens contemplativos — desprezada na medida exata em que não era temida! Foi em forma disfarçada, com APARÊNCIA ambígua, mau coração, e frequentemente amedrontada, que a contemplação apareceu de início sobre a terra: quanto a isso não há dúvida. O que havia de inativo, cismador, não-guerreiro nos instintos dos homens contemplativos, despertou por muito tempo uma profunda desconfiança à sua volta: contra isso não havia outro recurso senão inspirar decidido temor a si. O que os velhos brâmanes  , por exemplo, souberam fazer! Os mais antigos filósofos souberam dotar sua existência e sua APARÊNCIA de um sentido, uma base e um fundo em razão dos quais os outros aprendiam a temê-los: examinando mais precisamente, fizeram-no por uma necessidade ainda mais fundamental, para alcançar temor e reverência diante de si mesmos. Porque dentro de si encontravam todos os juízos de valor voltados contra eles, tinham que derrotar toda espécie de suspeita e resistência contra “o filósofo dentro de si”. E isto, sendo homens de tempos terríveis, fizeram com meios terríveis: a crueldade consigo, a automortificação inventiva — eis o principal meio desses eremitas e inovadores do pensamento sedentos de poder, que tinham necessidade de primeiro violentar dentro de si mesmos os deuses e a tradição, para poderem eles mesmos crer em sua inovação. Lembro a famosa história do rei Vishvamitra, que através de milênios de automartírio alcançou tal sentimento de poder e confiança em si que empreendeu a tarefa de construir um novo céu: o símbolo apavorante da mais antiga e mais nova experiência dos filósofos na terra — todo aquele que alguma vez construiu um “novo céu”, encontrou o poder para isso apenas no próprio inferno… Vamos resumir o fato em formulações breves: de início, o espírito filosófico teve sempre de imitar e mimetizar os tipos já estabelecidos do homem contemplativo, o sacerdote, o feiticeiro, o adivinho, o homem religioso, em suma, para de alguma maneira poder existir: por um longo tempo o ideal ascético serviu ao filósofo como forma de aparecer, como condição de existência — ele tinha de representá-lo para poder ser filósofo, tinha de crer nele para poder representá-lo. A atitude à parte dos filósofos, caracteristicamente negadora do mundo, hostil à vida, descrente dos sentidos, dessensualizada, e que foi mantida até a época recente, passando a valer quase como a atitude filosófica em si — ela é sobretudo uma consequência da precariedade de condições em que a filosofia surgiu e subsistiu: na medida em que, durante muitíssimo tempo, não teria sido absolutamente possível filosofia sobre a terra sem o invólucro e disfarce ascético, sem uma autoincompreensão ascética. Expresso de modo vivo e evidente: o sacerdote ascético serviu, até a época mais recente, como triste e repulsiva lagarta, única forma sob a qual a filosofia podia viver e rastejar… Isto mudou realmente? O colorido e perigoso bicho alado, o “espírito” que essa lagarta abrigava, foi afinal despido de seu hábito e solto na luz, graças a um mundo mais ensolarado, mais cálido e luminoso? Existe hoje suficiente coragem, ousadia, confiança, vontade do espírito, vontade de responsabilidade, liberdade de vontade, para que de ora em diante o filósofo seja realmente — possível?… Genealogia da Moral Terceira dissertação 10

Se desconsideramos o ideal ascético, o homem, o animal homem, não teve até agora sentido algum. Sua existência sobre a terra não possuía finalidade; “para que o homem?” — era uma pergunta sem resposta; faltava a vontade de homem e terra; por trás de cada grande destino humano soava, como um refrão, um ainda maior “Em vão!”. O ideal ascético significa precisamente isto: que algo faltava, que uma monstruosa lacuna circundava o homem — ele não sabia justificar, explicar, afirmar a si mesmo, ele sofria do problema do seu sentido. Ele sofria também de outras coisas, era sobretudo um animal doente: mas seu problema não era o sofrer mesmo, e sim que lhe faltasse a resposta para o clamor da pergunta “para que sofrer?”. O homem, o animal mais corajoso e mais habituado ao sofrimento, não nega em si o sofrer, ele o deseja, ele o procura inclusive, desde que lhe seja mostrado um sentido, um para quê no sofrimento. A falta de sentido do sofrer, não o sofrer, era a maldição que até então se estendia sobre a humanidade — e o ideal ascético lhe ofereceu um sentido! Foi até agora o único sentido; qualquer sentido é melhor que nenhum; o ideal ascético foi até o momento, de toda maneira, o “faute de mieux” [mal menor] par excellence. Nele o sofrimento era interpretado; a monstruosa lacuna parecia preenchida; a porta se fechava para todo niilismo suicida. A interpretação — não há dúvida — trouxe consigo novo sofrimento, mais profundo, mais íntimo, mais venenoso e nocivo à vida: colocou todo sofrimento sob a perspectiva da culpa… Mas apesar de tudo — o homem estava salvo, ele possuía um sentido, a partir de então não era mais uma folha ao vento, um brinquedo do absurdo, do sem-sentido, ele podia querer algo — não importando no momento para que direção, com que fim, com que meio ele queria: a vontade mesma estava salva. Não se pode em absoluto esconder o que expressa realmente todo esse querer que do ideal ascético recebe sua orientação: esse ódio ao que é humano, mais ainda ao que é animal, mais ainda ao que é matéria, esse horror aos sentidos, à razão mesma, o medo da felicidade e da beleza, o anseio de afastar-se do que seja APARÊNCIA, mudança, morte, devir, desejo, anseio — tudo isto significa, ousemos compreendê-lo, uma vontade de nada, uma aversão à vida, uma revolta contra os mais fundamentais pressupostos da vida, mas é e continua sendo uma vontade!… E, para repetir em conclusão o que afirmei no início: o homem preferirá ainda querer o nada a nada querer… Genealogia da Moral Terceira dissertação 28

Formemos agora uma imagem do processo espiritual que é produzido através disso na alma do homem moderno. O saber histórico irrompe, aqui e ali, sempre novamente a partir de fontes inesgotáveis, o estranho e incoerente impõem-se, a memória abre todas as suas portas e, ainda assim, nunca estão suficientemente abertas; a natureza empenha-se em receber bem, organizar e honrar estes estranhos hóspedes, mas estes mesmos encontram-se em luta uns com os outros, e parece necessário subjugá-los e dominá-los todos, a fim de não perecer em meio à sua luta. O hábito em um tal ser doméstico desordenado, tempestuoso e conflituoso torna-se paulatinamente uma segunda natureza, mesmo se estiver imediatamente fora de questão o fato de esta segunda natureza ser muito mais fraca, muito mais inquieta e em tudo menos saudável do que a primeira. Por fim, o homem moderno arrasta consigo por aí uma massa descomunal de pedras indigeríveis de saber que, então, como nos contos de fadas, podem ser às vezes ouvidas rolando ordenadamente no interior do corpo. Com estes solavancos denuncia-se a qualidade mais própria a este homem moderno: a estranha oposição entre uma interioridade à qual não corresponde nenhuma exterioridade e uma exterioridade à qual não corresponde nenhuma interioridade – uma oposição que os povos antigos não conheciam. O saber, consumido em excesso sem fome, sim, contra a necessidade, não atua mais como um agente transformador que impele para fora e permanece velado em um certo mundo interior caótico, que todo e qualquer homem moderno designa com um orgulho curioso como a “interioridade” que lhe é característica. Diz-se então prontamente que se tem o conteúdo e só falta a forma; mas, em todo vivente, esta é uma oposição inteiramente impertinente. Nossa cultura moderna não é nada viva, porque não se deixa de modo algum conceber sem esta oposição; ou seja, ela não é nenhuma cultura efetiva, mas apenas uma espécie de saber em torno da cultura. Permanece-se nela junto ao pensamento da cultura, junto ao sentimento da cultura: não advém daí nenhuma decisão em nome da cultura. Em contrapartida, o que é realmente inspirador e se expressa visivelmente como ação significa frequentemente nada mais do que uma convenção indiferente, uma lastimável imitação ou mesmo uma caricatura tosca. Na interioridade repousa assim certamente uma sensação similar à daquela serpente que engoliu coelhos inteiros e então se deita ao sol silenciosamente saciada, evitando qualquer movimento desnecessário. O processo interior é agora a coisa mesma, a própria “cultura”. Qualquer um que passa por perto só tem um desejo: que uma tal cultura não pereça de indigestão. Tomemos como exemplo um grego que passasse por perto desta cultura. Ele perceberia que para os homens modernos “culto” e “cultura histórica” parecem tão conectados como se elas fossem uma só coisa e fossem diferentes apenas pelo número de palavras. Ele pronunciaria então sua sentença: alguém pode ser muito culto e, no entanto, não ter necessariamente nenhuma cultura histórica; então acreditaria não ter ouvido direito e balançaria a cabeça em sinal de desaprovação. Aquele conhecido povozinho de um passado não muito distante – tenho em vista aqui justamente os gregos – conservara teimosamente, no período de sua mais grandiosa força, um sentido a-histórico; se um homem sintonizado com o seu tempo precisasse retornar àquele mundo como que por um passe de mágica, ele talvez achasse os gregos muito “incultos”, através do que certamente o segredo tão penosamente escondido da cultura moderna seria exposto publicamente ao ridículo: pois nós modernos não temos absolutamente nada que provenha de nós mesmos; somente na medida em que nos entulhamos e apinhamos com épocas, hábitos, artes, filosofias, religiões, conhecimentos alheios, tornamo-nos dignos de consideração, a saber, enciclopédias ambulantes, com o que talvez um antigo heleno extraviado em nosso tempo nos dirigisse a palavra. No entanto, nas enciclopédias todo o valor acha-se circunscrito ao que tem dentro, no conteúdo, não no que se encontra por fora, ou na encadernação e na capa. Desta feita, toda a cultura moderna é essencialmente interior; na parte de fora, o encadernador imprimiu algo assim como: “manual de cultura interior para bárbaros exteriores”. Sim, esta oposição entre dentro e fora torna o exterior ainda mais bárbaro do que precisaria ser, se um povo rude crescesse somente a partir de si e segundo suas necessidades grosseiras. Pois que meios restam ainda à natureza para dominar o que se impõe de maneira superabundante? Apenas um único meio: acolhê-lo tão facilmente quanto possível, para rapidamente afastá-lo e expeli-lo uma vez mais. Daí emerge um hábito de não levar mais a sério as coisas reais, daí emerge a “personalidade fraca”, em consequência da qual o efetivo, o existente, impressionam muito pouco; as pessoas se tornam, por fim, mais desleixadas e acomodadas com a sua APARÊNCIA exterior, alargando-se o grave fosso entre conteúdo e forma até o ponto da completa insensibilidade para a barbárie, se a memória é sempre estimulada apenas pelo novo, se só as coisas novas afluem sempre como dignas de serem conhecidas, coisas que podem ser guardadas asseadamente nas gavetas daquela memória. A cultura de um povo enquanto a antítese da barbárie foi designada certa vez, e, segundo minha opinião, com algum direito, como a unidade do estilo artístico em todas as expressões da vida de um povo; esta designação não deve ser por isso mal compreendida, como se se tratasse da oposição entre barbárie e estilo belo; o povo ao qual se atribui uma cultura só deve ser em toda realidade uma única unidade vivente e não esfacelar-se tão miseravelmente em um interior e um exterior, em conteúdo e forma. Quem aspira e quer promover a cultura de um povo deve aspirar a promover esta unidade suprema e trabalhar conjuntamente na aniquilação deste modelo moderno de formação em favor de uma verdadeira formação, atrevendo-se a refletir sobre o modo como a saúde de um povo, perturbada pela história, pode ser restabelecida, como ele poderia reencontrar seus instintos e, com isto, sua honestidade. Segunda Consideração Terceira dissertação 4

Em que situações desnaturadas, artificiais, e, em todo caso, indignas, há de cair, em uma época que sofre de cultura geral, a mais verdadeira de todas as ciências, a deusa nua e sincera, a filosofia?!? Em um tal mundo da uniformidade exterior imposta, ela permanece um monólogo erudito do passeante solitário, uma presa casual do indivíduo, um segredo oculto de alcova ou uma tagarelice inofensiva entre velhos acadêmicos e crianças. Ninguém deve ousar cumprir a lei da filosofia em si, ninguém vive filosoficamente, com aquela simples lealdade que obrigava o homem antigo a portar-se como estóico onde quer que estivesse, no que quer que empreendesse, caso tivesse algum dia jurado lealdade ao Pórtico. Todo filosofar moderno é político e policialesco, limitado à APARÊNCIA erudita pelos governos, igrejas, academias, hábitos, e pela pusilanimidade dos homens: ele permanece suspirando “mas se…” ou reconhecendo “era uma vez…”. No interior da cultura histórica, caso queira ser mais do que um saber interiormente contido e sem efeitos, a filosofia não tem direito algum; fosse o homem moderno corajoso e decidido, ele não seria, mesmo em suas inimizades, somente um ser interior: ele baniria a filosofia; agora, ele se contenta em disfarçar envergonhadamente sua nudez. Sim, pensa-se, escreve-se, imprime-se, fala-se, ensina-se filosoficamente – até aí tudo é mais ou menos permitido; somente no agir, na assim chamada vida, é diferente: aí apenas uma única coisa é permitida e todo o resto é simplesmente impossível: assim o quer a cultura histórica. Será que ainda são homens – perguntamo-nos então – ou talvez somente máquinas de pensar, de escrever e de falar? Segunda Consideração Terceira dissertação 5

Mas deixemos de lado esta fraqueza. Voltemo-nos para uma das forças muito celebradas do homem moderno com a pergunta, aliás constrangedora, se ele tem direito de se denominar, por sua conhecida “objetividade” histórica, forte, isto é, justo, e em um grau mais elevado do que o homem de uma outra época. É verdade que aquela objetividade tem sua origem em uma elevada necessidade e exigência por justiça? Ou desperta, como efeito, causas totalmente diversas, de fato apenas a APARÊNCIA, como se a justiça fosse a causa apropriada deste efeito? Ele seduz talvez, para um preconceito nocivo, demasiado bajulador, sobre as virtudes do homem moderno? – Sócrates considera uma doença, que é muito próxima do desvario, imaginar-se de posse de uma virtude e não possuí-la: e certamente uma tal presunção é mais perigosa do que a ilusão oposta, de sofrer por um erro, por um vício. Pois através desta ilusão talvez ainda seja possível tornar-se melhor; aquela presunção, porém, torna o homem ou uma época dia após dia pior – neste caso, portanto, mais injusto e injusta. Segunda Consideração Terceira dissertação 6

Para tanto, porém, é requerida antes de tudo uma grande potência artística, um pairar criativamente acima de tudo, uma imersão amorosa nos dados empíricos, imaginar além do tipo dado – aliás, tudo isto diz respeito à objetividade, mas somente como uma qualidade positiva. Todavia, objetividade é muito frequentemente apenas uma palavra. No lugar daquela quietude internamente relampejante, externamente imóvel e obscura do olhar do artista, entra em cena a afetação da quietude; como se a falta de páthos e de força moral se revestisse de uma frieza aguda da reflexão. Em certos casos, a banalidade da meditação, a sabedoria de qualquer um, que só através do seu tédio dá a impressão de quietude e tranquilidade, ousa aparecer a fim de legitimar toda condição artística na qual o sujeito silencia e se torna completamente imperceptível. Busca-se tudo o que em geral não estimula e a palavra mais seca torna-se a mais exatamente correta. Sim, chega-se mesmo ao ponto de evocar aquele homem para o qual um momento do passado não significa absolutamente nada para representá-lo. Assim se comportam, com frequência, os filólogos e os gregos, uns em relação aos outros: eles não se interessam por nada – chama-se isso também “objetividade”! É precisamente onde o mais elevado e mais raro devem ser representados, o intencional e solenemente exposto ser desinteressado, a selecionada arte da motivação sóbria e trivial, francamente chocante – a saber, quando a vaidade do historiador impele-o a esta indiferença que assume ares de objetividade. Aliás, tais autores levam a concordar com o princípio de que cada homem tem tanto mais vaidade quanto mais lhe falta entendimento. Não, sede ao menos sincero! Não buscai a APARÊNCIA da força artística, que deve ser chamada de efetiva objetividade, não buscai a APARÊNCIA da justiça, se vós não celebrais o clamor terrível do justo! Como se a tarefa de cada época, para ser justa, devesse ser contra tudo o que foi uma vez. Épocas e gerações nunca têm o direito de, até mesmo, serem juízes de todas as épocas e gerações anteriores: mas sempre apenas aos indivíduos e, em verdade, aos mais raros entre eles, cabe, pelo menos uma vez, uma missão tão desconfortável. Quem vos obriga a julgar? E ainda além – colocai-vos à prova, apenas para ver se podeis ser justos, se vós o quiserdes! Enquanto juízes, precisaríeis permanecer superiores em relação ao que deve ser julgado; mas vós apenas chegastes depois. Os convidados que chegam por último à mesa devem com razão ficar com os últimos lugares: e vós quereis ter os primeiros lugares? Então fazei ao menos o que há de mais elevado e mais grandioso; talvez se vos conceda neste caso realmente um lugar, mesmo se vós chegares por último. Segunda Consideração Terceira dissertação 6

Isto é uma alegoria para cada indivíduo, entre vós: cada um precisa organizar o caos em si, de tal modo que se concentre nas suas necessidades autênticas. Sua sinceridade, seu caráter vigoroso e verdadeiro precisa se opor algum dia ao que apenas sempre repete o já dito, o já aprendido, o já copiado Assim, ele começará a compreender que a cultura também pode ser outra coisa do que decoração da vida, o que no fundo significa ainda sempre dissimulação e disfarce; pois todo adorno   oculta o adornado. Assim, se lhe desvelará o conceito grego de cultura – em contraposição ao romano – o conceito de cultura como uma physis nova e aprimorada, sem dentro e sem fora, sem dissimulação e convenção, como uma unanimidade entre vida, pensamento, APARÊNCIA e querer. Assim, ele aprende com sua própria experiência que foi a partir da própria força suprema da natureza ética que os gregos conseguiram a vitória sobre todas as outras culturas, e que toda ampliação da veracidade também deve ser um fomento preparatório da verdadeira cultura: por mais que esta veracidade possa ocasionalmente prejudicar seriamente a formação que agora é justamente estimada, por mais que ela mesma possa proporcionar a queda de toda uma cultura decorativa. Segunda Consideração Terceira dissertação 10

Já me disseram com frequência, e sempre com enorme surpresa, que uma coisa une e distingue todos os meus livros, do Nascimento da tragédia ao recém-publicado Prelúdio a uma filosofia do futuro: todos eles contêm, assim afirmaram, laços e redes para pássaros incautos, e quase um incitamento, constante e nem sempre notado, à inversão das valorações habituais e dos hábitos valorizados. Como? Tudo somente — humano, demasiado humano? Com este suspiro dizem que um leitor emerge de meus livros, não sem alguma reticência e até desconfiança frente à moral, e mesmo um tanto disposto e encorajado a fazer-se defensor das piores coisas: e se elas forem apenas as mais bem caluniadas? Já chamaram meus livros de uma escola da suspeita, mais ainda do desprezo, felizmente também da coragem, até mesmo da temeridade. De fato, eu mesmo não acredito que alguém, alguma vez, tenha olhado para o mundo com mais profunda suspeita, e não apenas como eventual advogado do Diabo, mas também, falando teologicamente, como inimigo e acusador de Deus; e quem adivinha ao menos em parte as consequências de toda profunda suspeita, os calafrios e angústias do isolamento, a que toda incondicional diferença do olhar condena quem dela sofre, compreenderá também com que frequência, para me recuperar de mim, como para esquecer-me temporariamente, procurei abrigo em algum lugar — em alguma adoração, alguma inimizade, leviandade, cientificidade ou estupidez; e também por que, onde não encontrei o que precisava, tive que obtê-lo à força de artifício, de falsificá-lo e criá-lo poeticamente para mim (— que outra coisa fizeram sempre os poetas? para que serve toda a arte que há no mundo?). Mas o que sempre necessitei mais urgentemente, para minha cura e restauração própria, foi a crença de não ser de tal modo solitário, de não ver assim solitariamente — uma mágica intuição de semelhança e afinidade de olhar e desejo, um repousar na confiança da amizade, uma cegueira a dois sem interrogação nem suspeita, uma fruição de primeiros planos, de superfícies, do que é próximo e está perto, de tudo o que tem cor, pele e APARÊNCIA. Talvez me censurem muita “arte” nesse ponto, muita sutil falsificação de moeda: que eu, por exemplo, de maneira consciente-caprichosa fechei os olhos à cega vontade de moral de Schopenhauer, num tempo em que já era clarividente o bastante acerca da moral; e também que me enganei quanto ao incurável romantismo   de Richard Wagner, como se ele fosse um início e não um fim; também quanto aos gregos, também com os alemães e seu futuro — e talvez se fizesse toda uma lista desses tambéns… Supondo, porém, que tudo isso fosse verdadeiro e a mim censurado com razão, que sabem vocês disso, que podem vocês saber disso, da astúcia de autoconservação, da racionalidade e superior proteção que existe em tal engano de si — e da falsidade que ainda me é necessária para que continue a me permitir o luxo de minha veracidade?… Basta, eu ainda vivo; e a vida não é excogitação da moral: ela quer ilusão, vive da ilusão… porém, vejam só, já não começo de novo a fazer o que sempre fiz, como velho imoralista e apanhador de pássaros — falando imoralmente, amoralmente, “além do bem e do mal”? Humano demasiado humano PRÓLOGO 1

Não há interior e exterior no mundo. — Assim como Demócrito transferiu os conceitos de “em cima” e “embaixo” para o espaço infinito, onde não têm sentido algum, os filósofos transportam o conceito de “interior e exterior” para a essência e a APARÊNCIA do mundo; acham que com sentimentos profundos chegamos ao profundo interior, aproximamo-nos do coração da natureza. Mas esses sentimentos são profundos apenas na medida em que com eles, de modo quase imperceptível, se excitam regularmente determinados grupos complexos de pensamentos, que chamamos de profundos; um sentimento é profundo porque consideramos profundo o pensamento que o acompanha. Mas o pensamento profundo pode estar muito longe da verdade, como, por exemplo, todo pensamento metafísico; se retiramos do sentimento profundo os elementos intelectuais a ele misturados, resta o sentimento forte, e este não é capaz de garantir, para o conhecimento, nada além de si mesmo, tal como a crença forte prova apenas a sua força, não a verdade daquilo em que se crê. Humano demasiado humano Capítulo primeiro 15

O que se pode prometer. — Pode-se prometer atos, mas não sentimentos; pois estes são involuntários. Quem promete a alguém amá-lo sempre, ou sempre odiá-lo ou ser-lhe sempre fiel, promete algo que não está em seu poder; mas ele pode prometer aqueles atos que normalmente são consequência do amor, do ódio, da fidelidade, mas também podem nascer de outros motivos: pois caminhos e motivos diversos conduzem a um ato. A promessa de sempre amar alguém significa, portanto: enquanto eu te amar, demonstrarei com atos o meu amor; se eu não mais te amar, continuarei praticando esses mesmos atos, ainda que por outros motivos: de modo que na cabeça de nossos semelhantes permanece a ilusão de que o amor é imutável e sempre o mesmo. — Portanto, prometemos a continuidade da APARÊNCIA do amor quando, sem cegar a nós mesmos, juramos a alguém amor eterno. Humano demasiado humano Capítulo segundo 58

Origem da justiça. — A justiça (equidade) tem origem entre homens de aproximadamente o mesmo poder, como Tucídides (no terrível diálogo entre os enviados atenienses e mélios) corretamente percebeu: quando não existe preponderância claramente reconhecível, e um combate resultaria em prejuízo inconsequente para os dois lados, surge a ideia de se entender e de negociar as pretensões de cada lado: a troca é o caráter inicial da justiça. Cada um satisfaz o outro, ao receber aquilo que estima mais que o outro. Um dá ao outro o que ele quer, para tê-lo como seu a partir de então, e por sua vez recebe o desejado. A justiça é, portanto, retribuição e intercâmbio sob o pressuposto de um poderio mais ou menos igual: originalmente a vingança pertence ao domínio da justiça, ela é um intercâmbio. Do mesmo modo a gratidão. — A justiça remonta naturalmente ao ponto de vista de uma perspicaz autoconservação, isto é, ao egoísmo da reflexão que diz: “por que deveria eu prejudicar-me inutilmente e talvez não alcançar a minha meta?”. — Isso quanto à origem da justiça. Dado que os homens, conforme o seu hábito intelectual, esqueceram a finalidade original das ações denominadas justas e equitativas, e especialmente porque durante milênios as crianças foram ensinadas a admirar e imitar essas ações, aos poucos formou-se a APARÊNCIA de que uma ação justa é uma ação altruísta; mas nesta APARÊNCIA se baseia a alta valorização que ela tem, a qual, como todas as valorizações, está sempre em desenvolvimento: pois algo altamente valorizado é buscado, imitado, multiplicado com sacrifício, e se desenvolve porque o valor do esforço e do zelo de cada indivíduo é também acrescido ao valor da coisa estimada. — Quão pouco moral pareceria o mundo sem o esquecimento! Um poeta poderia dizer que Deus instalou o esquecimento como guardião na soleira do templo da dignidade humana. Humano demasiado humano Capítulo segundo 92

Perigo e benefício do culto ao gênio. — A crença em espíritos grandes, superiores, fecundos, ainda está — não necessariamente, mas com muita frequência — ligada à superstição, total ou parcialmente religiosa, de que esses espíritos são de origem sobre-humana e têm certas faculdades maravilhosas, mediante as quais chegariam a seus conhecimentos, de maneira completamente distinta da dos outros homens. Atribui-se a eles uma visão imediata da essência do mundo, como que através de um buraco no manto da APARÊNCIA, e acredita-se que, graças a esse maravilhoso olhar vidente, sem a fadiga e o rigor da ciência, eles possam comunicar algo definitivo e decisivo acerca do homem e do mundo. Enquanto o milagre no campo do conhecimento ainda tiver crentes, talvez se possa admitir que daí resulta alguma vantagem para os crentes, na medida em que estes, por sua subordinação incondicional aos grandes espíritos, proporcionam a seu próprio espírito, durante o desenvolvimento, a melhor escola e disciplina. Por outro lado, é no mínimo questionável que a superstição relativa ao gênio, a suas prerrogativas e poderes especiais, seja proveitosa para o próprio gênio, quando nele se enraíza. Em todo caso, é um indício perigoso que o temor de si mesmo assalte o homem, seja o célebre temor dos césares ou o temor do gênio que aqui consideramos; que o aroma do sacrifício, justamente oferecido apenas a um deus, penetre o cérebro do gênio e ele comece a hesitar e se ver como sobre-humano. As consequências a longo prazo são: o sentimento de irresponsabilidade, de direitos excepcionais, a crença de estar nos agraciando com seu trato, uma raiva insana frente à tentativa de compará-lo a outros, ou de estimá-lo inferior e trazer à luz as falhas de sua obra. Como deixa de criticar a si mesmo, caem uma após outra as rêmiges de sua plumagem: tal superstição mina as raízes de sua força e talvez o torne mesmo um hipócrita, quando sua força o tiver abandonado. Portanto, para os grandes espíritos é provavelmente mais útil que eles se deem conta de sua força e da origem desta, que apreendam as qualidades puramente humanas que neles confluíram, as felizes circunstâncias que ali se juntaram: energia incessante, dedicação resoluta a certos fins, grande coragem pessoal; e também a fortuna de uma educação que logo ofereceu os melhores mestres, modelos e métodos. É claro que, se têm por objetivo provocar o maior efeito possível, a falta de clareza sobre si mesmos e aquela semiloucura extra sempre ajudaram muito; pois em todos os tempos o que se admirou e se invejou neles foi justamente a força mediante a qual anulam a vontade dos homens e os arrastam à ilusão de que à sua frente estão líderes sobrenaturais. Sim, acreditar que alguém possui poderes sobrenaturais é algo que eleva e entusiasma os homens: neste sentido a loucura, como diz Platão, trouxe as maiores bênçãos para os homens. — Em alguns casos raros, essa porção de loucura pode também ter sido o meio pelo qual se conservou inteira uma natureza excessiva em todos os aspectos: também na vida dos indivíduos as alucinações têm com frequência o valor de remédios que em si são venenos; mas em todo “gênio” que acredita na própria divindade o veneno se mostra afinal, à medida que o “gênio” envelhece: recordemos Napoleão, por exemplo, cujo ser cresceu e se tornou a unidade poderosa que o distingue entre os homens modernos, sem dúvida graças à fé em si mesmo e em sua estrela e ao desprezo pelos homens dela decorrente, até que enfim essa mesma fé se transformou num fatalismo quase louco, despojando-o da rapidez e agudeza de visão e vindo a ser causa de sua ruína. Humano demasiado humano Capítulo quarto 164

A revolução na poesia. — A severa coerção que se impuseram os dramaturgos franceses, com respeito à unidade de ação, de tempo e lugar, ao estilo, à construção do verso e da frase, à escolha de palavras e pensamentos, foi uma escola tão importante como a do contraponto e da fuga na evolução da música moderna, ou como as figuras de Górgias   na eloquência grega. Restringir-se desse modo pode parecer absurdo; mas não há outro meio de escapar ao naturalismo, senão limitando-se, no início, o mais severamente (talvez o mais arbitrariamente) possível. Assim se aprende aos poucos a caminhar com graça, mesmo nas estreitas pontes que ligam abismos vertiginosos, e se retorna com o lucro da mais alta flexibilidade do movimento: como a história da música tem demonstrado a todos os que vivem. Aí se vê como gradualmente as cadeias se tornam mais frouxas, até parecerem abandonadas: tal APARÊNCIA é o resultado maior de uma evolução necessária da arte. Na moderna arte poética não houve essa afortunada liberação gradual das cadeias impostas a si mesma. Lessing fez da forma francesa, isto é, a única forma artística moderna, objeto de escárnio na Alemanha, e indicou Shakespeare; assim perdemos a continuidade dessa liberação e demos um salto para o naturalismo — ou seja, de volta ao começo da arte. Goethe procurou salvar-se dele, limitando-se renovadamente de várias maneiras; mas mesmo o mais talentoso artista consegue apenas um experimentar contínuo, se estiver rompido o fio da evolução. Schiller deve a relativa segurança de sua forma ao modelo da tragédia francesa, que involuntariamente respeitou, ainda que negasse, e se manteve independente de Lessing (cujas tentativas dramáticas ele rejeitou, como se sabe). Aos próprios franceses faltaram, depois de Voltaire, os grandes talentos que teriam prosseguido com a evolução da tragédia, da coerção à APARÊNCIA de liberdade; mais tarde, conforme o exemplo alemão, também deram um salto para uma espécie de estado natural da arte, à maneira de Rousseau, e fizeram experiências. Leia-se de quando em quando o Maomé   de Voltaire, para imaginar com clareza o que, devido a essa ruptura da tradição, se perdeu em definitivo para a cultura europeia. Voltaire foi o último dos grandes dramaturgos, o último a sujeitar com moderação grega sua alma multiforme, que estava à altura também das maiores tempestades trágicas — ele foi capaz daquilo de que nenhum alemão foi capaz, porque a natureza dos franceses é muito mais aparentada à dos gregos que a natureza dos alemães —; assim como foi o último grande escritor que no tratamento da prosa oratória teve ouvido grego, consciência artística grega e simplicidade e graça gregas; e foi também um dos últimos homens a reunir em si a suprema liberdade do espírito e uma mentalidade decididamente não revolucionária, sem ser covarde ou inconsequente. Desde então o espírito moderno, com sua inquietude, com seu ódio à medida e ao limite, passou a dominar em todos os campos, primeiro desencadeado pela febre da revolução e depois novamente impondo-se rédeas, quando assaltado por medo e horror de si mesmo — mas as rédeas da lógica, não mais da medida artística. É certo que devido a essa liberação desfrutamos por algum tempo a poesia de todos os povos, tudo o que cresceu em lugares recônditos, o primitivo, o selvagem, o belo-estranho e o gigantesco-irregular, desde o canto popular até o “grande bárbaro” Shakespeare; saboreamos as alegrias da cor local e do costume da época, até então desconhecidas de todos os povos artísticos; aproveitamos sobejamente as “vantagens bárbaras” de nosso tempo, que Goethe fez valer contra Schiller, para pôr em luz favorável a ausência de forma de seu Fausto. Mas por quanto tempo ainda? A maré transbordante de poesias de todos os estilos e de todos os povos deverá, pouco a pouco, atingir as partes do globo onde ainda seria possível um crescimento calmo e recolhido; todos os poetas deverão se tornar imitadores experimentais, copistas ousados, por maior que seja a sua força no início; e o público, enfim, que desaprendeu de ver no sujeitamento da força de expressão, no domínio e organização dos meios artísticos, o ato propriamente artístico, deverá cada vez mais apreciar a energia pela energia, e mesmo a cor pela cor, a ideia pela ideia, mesmo a inspiração pela inspiração, e por conseguinte não desfrutará os elementos e as condições da obra de arte senão isoladamente, e no fim das contas fará a exigência natural de que o artista deve também representá-los isoladamente. Sim, libertamo-nos das cadeias “insensatas” da arte greco-francesa, mas inadvertidamente nos habituamos a achar insensatas todas as cadeias, todas as limitações; — e assim a arte se move rumo à dissolução, nisso tocando — o que é altamente instrutivo, sem dúvida — todas as fases de seus primórdios, de sua infância, de sua imperfeição, das ousadias e extravagâncias de antanho: ela interpreta, ao sucumbir, sua gênese e seu devir. Um dos grandes, em cujo instinto bem podemos nos fiar e a cuja teoria nada faltou senão trinta anos mais de prática, lorde Byron, disse uma vez: “No que diz respeito à poesia em geral, quanto mais reflito, mais me convenço de que todos nós estamos no caminho errado, sem exceção. Seguimos todos um sistema revolucionário intimamente errado — a nossa geração, ou a próxima, chegará à mesma convicção”. E foi o mesmo Byron quem disse: “Considero Shakespeare o pior modelo, embora o mais extraordinário dos poetas”. E no fundo não diz a mesma coisa a percepção artística madura de Goethe, na segunda metade de sua vida? — essa percepção com a qual conquistou tamanha dianteira sobre várias gerações, de modo que se pode afirmar que Goethe ainda não exerceu sua influência e que seu tempo ainda está por chegar? Justamente porque sua natureza o manteve durante muito tempo na via da revolução poética, justamente porque saboreou o mais radicalmente possível tudo quanto, através dessa ruptura com a tradição, foi indiretamente descoberto e como que desenterrado de sob as ruínas da arte, em termos de achados, perspectivas, recursos, é que sua posterior transformação e conversão tem tanto peso: significa que ele experimentou o mais profundo anseio de recuperar a tradição da arte, e dotar da antiga perfeição e inteireza os escombros e arcadas remanescentes dos templos, com a fantasia do olhar, pelo menos, quando a força do braço revelar-se pequena demais para construir, onde a destruição já requereu esforços imensos. Assim viveu ele na arte, como na recordação da verdadeira arte: seu poetar tornou-se um meio de recordar, de compreender épocas artísticas antigas, há muito passadas. Suas pretensões eram sem dúvida irrealizáveis, tendo em vista a força da idade moderna; mas a dor que sentiu por isso foi largamente compensada pela alegria de saber que elas foram realizadas um dia, e que também nós ainda podemos participar dessa realização. Nada de indivíduos, mas sim máscaras mais ou menos ideais; nada de realidade, mas sim uma generalidade alegórica; cores locais, caracteres históricos atenuados até ficarem quase invisíveis e tornados míticos; a sensibilidade atual e os problemas da sociedade atual reduzidos às formas mais simples, despojados de suas qualidades excitantes, palpitantes, patológicas, tornados ineficazes em qualquer outro sentido que não o artístico; nada de temas e caracteres novos, mas sim os velhos e há muito habituais, numa sempre contínua reanimação e reformulação: isso é a arte, tal como depois Goethe a compreendeu, tal como os gregos e também os franceses a praticaram. Humano demasiado humano Capítulo quarto 221

O que resta da arte. — É verdade que, existindo certos pressupostos metafísicos, a arte tem valor muito maior; por exemplo, quando vigora a crença de que o caráter é imutável e de que a essência do mundo se exprime continuamente em todos os caracteres e ações: a obra do artista se torna então a imagem do que subsiste eternamente, enquanto em nossa concepção o artista pode conferir validade à sua imagem somente por um período, porque o ser humano, como um todo, mudou e é mutável, e tampouco o indivíduo é algo fixo e constante. — O mesmo sucede com outra pressuposição metafísica: supondo que nosso mundo visível fosse apenas APARÊNCIA, como pensam os metafísicos, a arte estaria situada bem próxima do mundo real: pois entre o mundo das aparências e o mundo de sonho do artista haveria muita semelhança; e a diferença que restasse colocaria até mesmo a importância da arte acima daquela da natureza, porque a arte representaria o uniforme, os tipos e modelos da natureza. — Mas esses pressupostos são errados: que lugar ainda tem a arte, após esse conhecimento? Antes de tudo, durante milênios ela nos ensinou a olhar a vida, em todas as formas, com interesse e prazer, e a levar nosso sentimento ao ponto de enfim exclamarmos: “Seja como for, é boa a vida”. Esta lição da arte, de ter prazer na existência e de considerar a vida humana um pedaço da natureza, sem excessivo envolvimento, como objeto de uma evolução regida por leis — esta lição se arraigou em nós, ela agora vem novamente à luz como necessidade todo-poderosa de conhecimento. Poderíamos renunciar à arte, mas não perderíamos a capacidade que com ela aprendemos: assim como pudemos renunciar à religião, mas não às intensidades e elevações do ânimo adquiridas por meio dela. Tal como as artes plásticas e a música são a medida da riqueza de sentimentos realmente adquirida e aumentada através da religião, depois que a arte desaparecesse a intensidade e multiplicidade da alegria de vida que ela semeou continuaria a exigir satisfação. O homem científico é a continuação do homem artístico. Humano demasiado humano Capítulo quarto 222

Renascimento e Reforma. — O Renascimento italiano abrigava em si todas as forças positivas a que devemos a cultura moderna: emancipação do pensamento, desprezo das autoridades, triunfo da educação sobre a arrogância da linhagem, entusiasmo pela ciência e pelo passado científico da humanidade, desgrilhoamento do indivíduo, flama da veracidade e aversão à APARÊNCIA e ao puro efeito (flama que ardeu numa legião de naturezas artísticas que exigiam de si, com elevada pureza moral, a perfeição de suas obras e tão-somente a perfeição); sim, o Renascimento teve forças positivas que até hoje não voltaram a ser tão poderosas em nossa cultura moderna. Foi a Idade de Ouro deste milênio, apesar de todas as manchas e vícios. Contrastando com ele se acha a Reforma alemã, como um enérgico protesto de espíritos atrasados, que não se haviam cansado da visão medieval do mundo e percebiam os sinais de sua dissolução, a extraordinária superficialização e exteriorização da vida religiosa, com profundo mal-estar e não com júbilo, como seria apropriado. Levaram os homens a recuar, com sua energia e obstinação de nórdicos, e com a violência de um estado de sítio forçaram a Contra-Reforma, isto é, um cristianismo católico defensivo, e, assim como retardaram de dois a três séculos o despertar e o domínio da ciência, tornaram impossível a plena junção do espírito antigo com o moderno, talvez para sempre. A grande tarefa da Renascença não pôde ser levada a cabo, impedida que foi pelo protesto do ser alemão que então havia ficado para trás (e que na Idade Média tivera sensatez bastante para renovadamente atravessar os Alpes para a sua salvação). Foi o acaso de uma constelação política excepcional que preservou Lutero e fez o protesto ganhar força: o imperador o protegeu, a fim de usar sua inovação como instrumento de pressão sobre o papa, e do mesmo modo o papa o favoreceu em sigilo, para usar os príncipes protestantes como contrapeso ao imperador. Sem esse estranho concerto de objetivos, Lutero teria sido queimado como Hus — e a aurora do Iluminismo teria surgido talvez um pouco antes, e com brilho mais belo do que agora podemos imaginar. Humano demasiado humano Capítulo quinto 237

A crescente severidade do mundo. — Quanto mais se eleva a cultura de um homem, tanto mais domínios se furtam ao gracejo e ao escárnio. Voltaire era grato aos céus pela invenção do matrimônio e da Igreja: assim cuidaram muito bem da nossa diversão. Mas ele e sua época, e antes dele o século XVI, zombaram desses temas até o fim; toda graça que ainda hoje se faz nesse âmbito é tardia, e principalmente barata demais para atrair compradores. Atualmente perguntamos pelas causas; é o tempo da seriedade. Quem se interessa, hoje, por ver à luz do humor as diferenças entre realidade e pretensiosa APARÊNCIA, entre o que o ser humano é e o que quer representar? Sentimos esses contrastes de modo inteiramente diverso quando lhes buscamos as causas. Quanto mais profunda a compreensão que alguém tiver da vida, tanto menos zombará, mas afinal talvez ainda zombe da “profundidade de sua compreensão”. Humano demasiado humano Capítulo quinto 240

Meios de levar todos a fazer tudo. — Através de inquietações, medos, sobrecarga de trabalho e de pensamentos é possível fatigar e enfraquecer qualquer homem, de modo que ele não mais se opõe a algo que tem APARÊNCIA de complicado, cedendo a isso — como bem sabem os diplomatas e as mulheres. Humano demasiado humano Capítulo sétimo 403

Tragédia da infância. — Não é raro que homens nobres e de altas aspirações tenham tido que empreender seu combate mais duro na infância: talvez por terem que impor seu modo de pensar contra um pai de pensamento baixo, afeito à APARÊNCIA e à mentira, ou, como lorde Byron, por viverem perpetuamente em luta com uma mãe infantil e colérica. Se vivenciamos algo assim, por toda a vida não superaremos a dor de saber quem foi realmente nosso maior e mais perigoso inimigo. Humano demasiado humano Capítulo sétimo 422

Mais incômodos que os inimigos. — As pessoas as quais não temos certeza de que serão simpáticas em todas as ocasiões, e em relação às quais uma razão qualquer (gratidão, por exemplo) nos obriga a manter uma APARÊNCIA de simpatia incondicional, atormentam nossa imaginação muito mais do que nossos inimigos. Humano demasiado humano Capítulo nono 507

Por fim, para que o essencial não deixe de ser registrado: de tais abismos, de tal severa enfermidade, também da enfermidade da grave suspeita voltamos renascidos, de pele mudada, mais suscetíveis, mais maldosos, com gosto mais sutil para a alegria, com língua mais delicada para todas as coisas boas, com sentidos mais risonhos, com uma segunda, mais perigosa inocência na alegria, ao mesmo tempo mais infantis e cem vezes mais refinados do que jamais fôramos antes. Oh, como repugna agora a fruição, a grosseira, surda, parda fruição, tal como a entendem os fruidores, nossos “homens cultos”, nossos ricos e governantes! Com que malícia escutamos agora o barulho de grande feira com que o homem “culto” e citadino se deixa violentar por arte, livros e música até sentir “prazeres espirituais”, não sem ajuda de bebidas espirituais! Como agora nos fere os ouvidos o grito teatral da paixão, como se tornou estranho ao nosso gosto esse romântico tumulto e emaranhado de sentidos que o populacho culto adora, e todas as suas aspirações ao excelso, elevado, empolado! Não, se nós, convalescentes, ainda precisamos de uma arte, é de uma outra arte — uma ligeira, zombeteira, divinamente imperturbada, divinamente artificial, que como uma clara chama lampeje num céu limpo! Sobretudo: uma arte para artistas, somente para artistas! Nós nos entendemos melhor, depois, quanto ao que primeiramente se requer para isso, a jovialidade, qualquer jovialidade, meus amigos! também como artistas —: pretendo demonstrá-lo. Algumas coisas sabemos agora bem demais, nós, sabedores: oh, como hoje aprendemos a bem esquecer, a bem não saber, como artistas! E no tocante a nosso futuro: dificilmente nos acharão nas trilhas daqueles jovens egípcios que à noite tornam inseguros os templos, abraçam estátuas e querem expor à luz, desvelar, descobrir, tudo absolutamente que por boas razões é mantido oculto. Não, esse mau gosto, essa vontade de verdade, de “verdade a todo custo”, esse desvario adolescente no amor à verdade — nos aborrece: para isso somos demasiadamente experimentados, sérios, alegres, escaldados, profundos… Já não cremos que a verdade continue verdade, quando se lhe tira o véu… Hoje é, para nós, uma questão de decoro não querer ver tudo nu, estar presente a tudo, compreender e “saber” tudo. “É verdade que Deus está em toda parte?”, perguntou uma garotinha à sua mãe; “não acho isso decente” — um sinal para os filósofos!… Deveríamos respeitar mais o pudor com que a natureza se escondeu por trás de enigmas e de coloridas incertezas. Talvez a verdade seja uma mulher que tem razões para não deixar ver suas razões? Talvez o seu nome, para falar grego, seja Baubo?… Oh, esses gregos! Eles entendiam do viver! Para isto é necessário permanecer valentemente na superfície, na dobra, na pele, adorar a APARÊNCIA, acreditar em formas, em tons, em palavras, em todo o Olimpo da APARÊNCIA! Esses gregos eram superficiais — por profundidade! E não é precisamente a isso que retornamos, nós, temerários do espírito, que escalamos o mais elevado e perigoso pico do pensamento atual e de lá olhamos em torno, nós, que de lá olhamos para baixo? Não somos precisamente nisso — gregos? Adoradores das formas, dos tons, das palavras? E precisamente por isso — artistas? Ruta, próximo a Gênova, outono de 1886 Gaia Ciência Capítulo nono 4

A consciência da APARÊNCIA. — Como é nova e maravilhosa e, ao mesmo tempo, horrível e irônica a posição que sinto ocupar, com o meu conhecimento, diante de toda a existência! Eu descobri que a velha humanidade e animalidade, e mesmo toda a pré-história e o passado de todo ser que sente, continua inventando, amando, odiando, raciocinando em mim — no meio deste sonho acordei repentinamente, mas apenas para a consciência de que sonho e tenho de prosseguir sonhando, para não sucumbir: tal como o sonâmbulo tem de prosseguir o sonho para não cair por terra. O que é agora, para mim, APARÊNCIA? Verdadeiramente, não é o oposto de alguma essência — que posso eu enunciar de qualquer essência, que não os predicados de sua APARÊNCIA? Verdadeiramente, não é uma máscara mortuária que se pudesse aplicar a um desconhecido X e depois retirar! APARÊNCIA é, para mim, aquilo mesmo que atua e vive, que na zombaria de si mesmo chega ao ponto de me fazer sentir que tudo aqui é APARÊNCIA, fogo-fátuo, dança de espíritos e nada mais — que, entre todos esses sonhadores, também eu, o “homem do conhecimento”, danço a minha dança, que o homem do conhecimento é um recurso para prolongar a dança terrestre e, assim, está entre os mestres de cerimônia da existência, e que a sublime coerência e ligação de todos os conhecimentos é e será, talvez, o meio supremo de manter a universalidade do sonho e a mútua compreensibilidade de todos esses sonhadores, e, precisamente com isso, a duração do sonho. Gaia Ciência LIVRO I 54

Somente enquanto criadores! — Eis algo que me exigiu e sempre continua a exigir um grande esforço: compreender que importa muito mais como as coisas se chamam do que aquilo que são. A reputação, o nome e a APARÊNCIA, o peso e a medida habituais de uma coisa, o modo como é vista — quase sempre uma arbitrariedade e um erro em sua origem, jogados sobre as coisas como uma roupagem totalmente estranha à sua natureza e mesmo à sua pele —, mediante a crença que as pessoas neles tiveram, incrementada de geração em geração, gradualmente se enraizaram e encravaram na coisa, por assim dizer, tornando-se o seu próprio corpo: a APARÊNCIA inicial termina quase sempre por tornar-se essência e atua como essência! Que tolo acharia que basta apontar essa origem e esse nebuloso manto de ilusão para destruir o mundo tido por essencial, a chamada “realidade”? Somente enquanto criadores podemos destruir! — Mas não esqueçamos também isto: basta criar novos nomes, avaliações e probabilidades para, a longo prazo, criar novas “coisas”. Gaia Ciência LIVRO I 58

A seriedade com a verdade. — Seriedade com a verdade! Que diferentes coisas entendem as pessoas por essas palavras! As mesmas opiniões e tipos de prova e demonstração que um pensador acha uma leviandade à qual, para sua vergonha, ele sucumbiu nesse ou naquele instante — precisamente essas opiniões podem dar, a um artista que com elas depara e vive algum tempo, a consciência de que se tornou profundamente sério com a verdade e de como é admirável que, embora artista, ele mostre também o mais sério desejo do contrário da APARÊNCIA. Então é possível que, justamente com o pathos de sua seriedade, ele traia o modo superficial e limitado com que até agora o seu espírito se moveu no campo do conhecimento. — E não somos traídos por tudo aquilo que achamos importante? É o que mostra onde colocamos nossos pesos e para que coisas não possuímos pesos. Gaia Ciência LIVRO I 88

Os seguidores de Schopenhauer. — O que se percebe no contato entre povos civilizados e bárbaros: que normalmente a cultura inferior começa por tomar os vícios, fraquezas e excessos da superior, a partir daí sente alguma atração por esta e, enfim, mediante os vícios e fraquezas adquiridos, também recebe algo da força valiosa da cultura superior: — isso pode ser visto igualmente em nossa proximidade, sem visitar povos bárbaros, de modo um tanto refinado e espiritualizado, é certo, e não tão palpável. Que costumam os seguidores de Schopenhauer na Alemanha tomar inicialmente do seu mestre? — os quais, em comparação à superior cultura deste, devem se sentir bárbaros o bastante para, também no início, serem barbaramente fascinados e seduzidos por ele. O seu duro senso dos fatos, sua honesta vontade de clareza e razão, que com frequência o faz parecer tão inglês e tão pouco alemão? Ou o vigor de sua consciência intelectual, que toda a vida suportou a contradição entre ser e querer e o forçou a contradizer-se também nas suas obras, continuamente e quase em cada ponto? Ou sua limpeza em questões da Igreja e do Deus cristão? — pois nisso ele foi limpo como nenhum filósofo alemão até ali, de modo que viveu e morreu “como um voltairiano”. Ou suas imortais teorias da intelectualidade da intuição, da aprioridade da lei causal, da natureza instrumental do intelecto e da não liberdade da vontade? Não, nada disso encanta nem é tido por encantador: mas sim os embaraços e subterfúgios místicos de Schopenhauer, nos lugares em que o pensador factual se deixou seduzir e estragar pelo vaidoso impulso de se arvorar em decifrador do mundo; a indemonstrável teoria de uma vontade única (“Todas as causas são apenas causas eventuais da manifestação da vontade nesse tempo e nesse lugar”, “A vontade de vida está presente em cada ser, também no mais ínfimo, de forma inteira e não dividida, tão completamente quanto em todos os seres que foram, são e serão, tomados em seu conjunto”), a negação do indivíduo (“Todos os leões são, no fundo, um só leão”, “A pluralidade dos indivíduos é uma APARÊNCIA”; assim como a evolução é só APARÊNCIA: — ele chama ao pensamento de Lamarck “um erro genial e absurdo”); a exaltação do gênio (“Na contemplação estética o indivíduo não é mais indivíduo, mas puro sujeito do conhecimento, sem vontade, sem dor e atemporal”; “Ao absorver-se inteiramente no objeto contemplado, o sujeito se torna esse próprio objeto”); o absurdo da compaixão e da ruptura, que ela tornou possível, do principii individuationis [princípio da individuação] como fonte de toda moralidade; e também afirmações tais como “A morte é realmente o objetivo da existência”, “Não podemos negar a priori a possibilidade de que um efeito mágico não pudesse emanar de alguém que já morreu”: estes e outros excessos e vícios do filósofo são sempre aceitos em primeiro lugar e transformados em artigo de fé: — pois vícios e excessos são imitados mais facilmente e não requerem um longo treino. Mas falemos do mais famoso dos schopenhauerianos vivos, de Richard Wagner. — A ele aconteceu o que já sucedeu com muitos artistas: enganou-se ao interpretar os personagens que havia criado e não compreendeu a filosofia implícita em sua arte mais característica. Richard Wagner deixou-se desencaminhar por Hegel até a metade de sua vida; e o fez novamente mais tarde, quando começou a ver a teoria de Schopenhauer em seus personagens e a formular a si mesmo recorrendo às noções de “vontade”, “gênio” e “compaixão”. Apesar disso continuará verdadeiro que nada pode ser mais contrário ao espírito de Schopenhauer do que o que é propriamente wagneriano nos heróis de Wagner: quero dizer, a inocência do mais elevado amor a si, a crença na grande paixão como algo bom em si, ou, numa palavra, o que há de siegfriediano no semblante dos seus heróis. “Isso tudo cheira antes a Spinoza do que a mim” — diria talvez Schopenhauer. Por mais que tivesse boas razões para buscar outro filósofo que não Schopenhauer, o sortilégio ao qual sucumbiu, relativamente a esse pensador, tornou-o cego não apenas aos outros filósofos, mas até à ciência mesma; cada vez mais a sua arte quer se apresentar como contrapartida e complemento da filosofia schopenhaueriana, e cada vez mais expressamente renuncia ela à ambição mais elevada de tornar-se contrapartida e complemento da ciência e do conhecimento humanos. E a isso não o estimula apenas a misteriosa pompa dessa filosofia, que teria fascinado igualmente a um Cagliostro: também os gestos e os afetos dos filósofos sempre seduziram! Schopenhaueriano, por exemplo, é o exaspero de Wagner ante a corrupção da língua alemã; e, se aí deveríamos aprovar a imitação, não podemos esquecer que o próprio estilo de Wagner sofre bastante das úlceras e abscessos cuja visão punha fora de si Schopenhauer, e que, no que toca aos wagnerianos que escrevem em alemão, a wagneromania começa a se revelar tão perigosa quanto se revelou toda hegelomania. Schopenhaueriano é o ódio de Wagner aos judeus, em relação aos quais não consegue ser justo, nem mesmo quanto ao seu ato maior: pois os judeus são os inventores do cristianismo. Schopenhaueriana é a tentativa de Wagner de apreender o cristianismo como um grão de budismo transportado pelo vento, e de preparar para a Europa uma época budista, aproximando-se temporariamente de fórmulas e sentimentos católico-cristãos. Schopenhaueriana é a prédica de Wagner em favor da misericórdia no trato com animais; sabe-se que o precursor de Wagner nesse ponto foi Voltaire, que, como seus sucessores, talvez já soubesse travestir o ódio a certas coisas e pessoas em misericórdia para com os animais. Ao menos o ódio de Wagner à ciência, que transparece em sua prédica, não é sugerido pelo espírito de mansuetude e bondade — tampouco, como é óbvio, pelo espírito. — Afinal, pouco importa a filosofia de um artista, caso seja apenas uma filosofia acrescentada e não prejudique a sua arte. Todo cuidado é pouco para evitar nos aborrecermos com um artista por uma eventual, talvez infeliz e pretensiosa dissimulação; não esqueçamos que os queridos artistas são e têm de ser todos eles um pouco atores, e que sem atuar dificilmente aguentariam por muito tempo. Permaneçamos fiéis a Wagner naquilo que nele é vero e original — e isto permanecendo nós mesmos, seus discípulos, fiéis ao que em nós é vero e original. Admitamos seus caprichos e convulsões intelectuais, apreciemos com justiça que estranhos alimentos e necessidades uma arte como a sua pode ter, para que viva e cresça! Não importa que como pensador ele frequentemente esteja errado; justeza e paciência não são para ele. Já basta que sua vida tenha e conserve razão frente a si mesma — essa vida que grita para cada um de nós: “Seja um homem e não siga a mim — mas a si próprio! A si próprio!”. Também nossa vida deve ter razão frente a nós mesmos! Também nós devemos crescer e medrar a partir de nós mesmos, livres e sem medo, em inocente amor de si! E, ao contemplar um tal indivíduo, vêm-me aos ouvidos, agora como então, estas frases: “A paixão é melhor que o estoicismo e a hipocrisia, ser honesto, ainda que no mal, é melhor do que perder a si mesmo na moralidade da tradição; o homem livre pode resultar bom ou mau, mas o homem não livre é uma vergonha da natureza e não participa de nenhum consolo, celeste ou terrestre; e, por fim, todo aquele que deseja tornar-se livre tem de fazê-lo por si próprio, e a liberdade não sucede a ninguém como uma dádiva milagrosa” (Richard Wagner em Bayreuth, § 11). Gaia Ciência LIVRO I 99

Nossa derradeira gratidão para com a arte. — Se não tivéssemos aprovado as artes e inventado essa espécie de culto do não verdadeiro, a percepção da inverdade e mendacidade geral, que agora nos é dada pela ciência — da ilusão e do erro como condições da existência cognoscente e sensível —, seria intolerável para nós. A retidão teria por consequência a náusea e o suicídio. Mas agora a nossa retidão tem uma força contrária, que nos ajuda a evitar consequências tais: a arte, como a boa vontade de APARÊNCIA. Não proibimos sempre que os nossos olhos arredondem, terminem o poema, por assim dizer: e então não é mais a eterna imperfeição, que carregamos pelo rio do vir-a-ser — então cremos carregar uma deusa e ficamos orgulhosos e infantis com tal serviço. Como fenômeno estético a existência ainda nos é suportável, e por meio da arte nos são dados olhos e mãos e, sobretudo, boa consciência, para poder fazer de nós mesmos um tal fenômeno. Ocasionalmente precisamos descansar de nós mesmos, olhando-nos de cima e de longe e, de uma artística distância, rindo de nós ou chorando por nós; precisamos descobrir o herói e também o tolo que há em nossa paixão do conhecimento, precisamos nos alegrar com a nossa estupidez de vez em quando, para poder continuar nos alegrando com a nossa sabedoria! E justamente por sermos, no fundo, homens pesados e sérios, e antes pesos do que homens, nada nos faz tanto bem como o chapéu do bobo: necessitamos dele diante de nós mesmos — necessitamos de toda arte exuberante, flutuante, dançante, zombeteira, infantil e venturosa, para não perdermos a liberdade de pairar acima das coisas, que o nosso ideal exige de nós. Seria para nós um retrocesso cair totalmente na moral, justamente com a nossa suscetível retidão, e, por causa das severas exigências que aí fazemos a nós mesmos, tornarmo-nos virtuosos monstros e espantalhos. Devemos também poder ficar acima da moral: e não só ficar em pé, com a angustiada rigidez de quem receia escorregar e cair a todo instante, mas também flutuar e brincar acima dela! Como poderíamos então nos privar da arte, assim como do tolo? — E, enquanto vocês tiverem alguma vergonha de si mesmos, não serão ainda um de nós! Gaia Ciência LIVRO I 107

Viva a física! — Quantas pessoas sabem observar? E, entre as poucas que sabem — quantas observam a si mesmas? “Cada qual é o mais distante de si mesmo” — é o que sabe todo escrutador das entranhas, para seu próprio desgosto; e as palavras “Conhece a ti mesmo!” são, na boca de um deus e dirigidas aos homens, quase uma maldade. Mas o fato de a auto-observação estar em situação assim desesperadora é comprovado, mais do que tudo, pela forma como quase cada pessoa fala sobre a essência de um ato moral, essa forma rápida, solícita, convicta e loquaz, com seu olhar, seu sorriso, seu obsequioso ardor! Cada uma parece querer lhe dizer: “Ah, meu caro, isso é comigo! Você está dirigindo sua pergunta a quem pode lhe responder: em nenhuma outra coisa eu sou mais sábio do que nisso, por acaso. Então: quando o homem julga ‘Isso está certo’, depois conclui ‘Por isso tem de acontecer’, e faz o que assim reconheceu como certo e definiu como necessário — então a essência do seu ato é moral!”. Mas, meu amigo, você está falando de três atos, em vez de um: também o seu julgamento “Isso está certo” é um ato — não se poderia julgar de uma maneira moral e de uma maneira imoral? Por que você acha isso, justamente isso moral? — “Porque minha consciência me diz que é assim; a voz da consciência nunca é imoral, pois somente ela determina o que deve ser moral!” — Mas por que você ouve o que fala sua consciência? E até que ponto você tem o direito de considerar um tal juízo verdadeiro e infalível? Para essa crença já não há consciência? Você nada sabe de uma consciência intelectual? De uma consciência por trás de sua “consciência”? Seu julgamento “Isso está certo” tem uma pré-história nos seus impulsos, inclinações, aversões, experiências e inexperiências; “Como surgiu isso?”, você tem de perguntar, e ainda: “O que me impele realmente a dar ouvidos a isso?”. Você pode ouvir as ordens dele como um bom soldado escuta as ordens do oficial. Ou como uma mulher que ama quem dá as ordens. Ou como um adulador e covarde que receia aquele que ordena. Ou como um imbecil, que acompanha porque nada tem a objetar. Em suma, há muitas maneiras de dar ouvidos à sua consciência. Mas que você ouça este ou aquele juízo como voz da consciência, isto é, que sinta algo como certo, pode ser devido a que você nunca tenha meditado sobre si e tenha cegamente acolhido o que desde a infância lhe foi designado como certo; ou a que o pão e as honras lhe tenham até hoje vindo juntamente com o que você denomina seu dever — e você o tem por “certo” porque lhe parece a sua própria “condição de existência” (que você tenha direito à existência lhe parece irrefutável!). A firmeza do seu juízo moral poderia ser prova justamente de mesquinhez pessoal, de falta de personalidade, sua “força moral” poderia nascer de sua teimosia — ou de sua incapacidade de ver novos ideais! E, resumidamente: se você tivesse pensado com maior finura, observado melhor e aprendido mais, em nenhuma circunstância você chamaria mais de dever e consciência a este seu “dever” e esta sua “consciência”: a compreensão de como surgiram uma vez os juízos morais lhe estragaria o gosto por essas palavras patéticas — como já lhe foram estragados outros termos patéticos, “pecado”, “salvação da alma” e “redenção”, por exemplo. — E agora não me venha falar de imperativo categórico, meu amigo! — essa expressão me faz cócegas no ouvido e eu tenho que rir, mesmo em sua tão séria presença: lembra-me o velho Kant, que, como punição por ter obtido furtivamente a “coisa em si” — também algo ridículo! —, foi furtivamente tomado pelo “imperativo categórico”, e com ele no coração extraviou-se de volta para “Deus”, “alma”, “liberdade” e “imortalidade”, semelhante a uma raposa que se extravia de volta para a jaula — e a sua força e esperteza é que havia arrombado a jaula! — Como? Você admira o imperativo categórico em você? Essa “firmeza” do que é chamado seu juízo moral? Essa “incondicionalidade” do sentimento de que “nisso todos têm de julgar como eu”? Admire antes o seu egoísmo nisso! E a cegueira, estreiteza e modéstia do seu egoísmo! Pois egoísmo é sentir o próprio juízo como uma lei universal; e novamente um egoísmo cego, estreito e modesto, porque mostra que você ainda não descobriu a si mesmo, ainda não criou para si um ideal próprio, bastante próprio — pois ele não poderia jamais ser o de um outro, e muito menos o de todos, todos! — Quem ainda julga que “assim deveriam agir todos nesse caso”, não chegou a andar cinco passos no autoconhecimento: do contrário saberia que não há nem pode haver ações iguais, — que toda ação já realizada foi realizada de uma maneira única e irrecuperável, e que o mesmo se dará com toda ação futura, — que todas as prescrições sobre o agir referem-se apenas ao grosseiro lado exterior (até as mais íntimas e sutis prescrições de todas as morais que já houve), — que com elas pode ser alcançada uma APARÊNCIA de igualdade, mas somente uma APARÊNCIA, — que toda ação, contemplada ou reconsiderada, é e continua a ser algo impenetrável, — que nossas opiniões acerca do “bom”, “nobre”, “grande” jamais podem ser demonstradas por nossas ações, porque toda ação é incognoscível, — que sem dúvida as nossas opiniões, avaliações e tábuas de valores estão entre as mais poderosas alavancas da engrenagem de nossos atos, mas que em cada caso a lei de seu mecanismo é indemonstrável. Portanto, limitemo-nos a depurar nossas opiniões e valorações e a criar novas tábuas de valores: — mas acerca do “valor moral de nossos atos” vamos deixar de remoer pensamentos! Sim, meus amigos, é tempo de se enojar com toda a tagarelice moral de uns sobre os outros! Fazer sessões de julgamento moral deve ofender nosso gosto! Deixemos essa tagarelice e esse mau gosto para os que nada têm a fazer senão arrastar o passado um pouco mais adiante no tempo, e que nunca são eles mesmos presente — para muitos então, para a maioria! Nós, porém, queremos nos tornar aqueles que somos — os novos, únicos, incomparáveis, que dão leis a si mesmos, que criam a si mesmos! E para isso temos de nos tornar os melhores aprendizes e descobridores de tudo o que é normativo e necessário no mundo: temos de ser físicos, para podermos ser criadores neste sentido — enquanto até agora todos os ideais e valorações foram construídos com base na ignorância da física ou em contradição a ela. Portanto: Viva a física! E viva sobretudo o que a ela nos compele — nossa retidão! Gaia Ciência LIVRO IV 335

Em que medida também nós ainda somos devotos. — Na ciência as convicções não têm direito de cidadania, é o que se diz com boas razões: apenas quando elas decidem rebaixar-se à modéstia de uma hipótese, de um ponto de vista experimental e provisório, de uma ficção reguladora, pode lhes ser concedida a entrada e até mesmo um certo valor no reino do conhecimento — embora ainda com a restrição de que permaneçam sob vigilância policial, a vigilância da suspeita. — Mas isso não quer dizer, examinando mais precisamente, que a convicção pode obter admissão na ciência apenas quando deixa de ser convicção? A disciplina do espírito científico não começa quando ele não mais se permite convicções?… É assim, provavelmente; resta apenas perguntar se, para que possa começar tal disciplina, não é preciso haver já uma convicção, e aliás tão imperiosa e absoluta, que sacrifica a si mesma todas as demais convicções. Vê-se que também a ciência repousa numa crença, que não existe ciência “sem pressupostos”. A questão de a verdade ser ou não necessária tem de ser antes respondida afirmativamente, e a tal ponto que a resposta exprima a crença, o princípio, a convicção de que “nada é mais necessário do que a verdade, e em relação a ela tudo o mais é de valor secundário”. — Esta absoluta vontade de verdade: o que será ela? Será a verdade de não se deixar enganar? Será a vontade de não enganar? Pois também desta maneira se pode interpretar a vontade de verdade; desde que na generalização “Não quero enganar” também se inclua o caso particular “Não quero enganar a mim mesmo”. Mas por que não enganar? E por que não se deixar enganar? — Note-se que as razões para o primeiro caso se acham numa esfera inteiramente diversa das do segundo: a pessoa não quer se deixar enganar supondo que é prejudicial, perigoso, funesto deixar-se enganar — neste sentido a ciência seria uma prolongada esperteza, uma precaução, uma utilidade, à qual se poderia, com justiça, objetar: Como? Não querer deixar-se enganar é de fato menos prejudicial, perigoso, funesto? Que sabem vocês de antemão sobre o caráter da existência, para poder decidir se a vantagem maior está do lado de quem desconfia ou de quem confia incondicionalmente? E se as duas coisas forem necessárias, muita confiança e muita desconfiança: de onde poderá a ciência retirar a sua crença incondicional, a convicção na qual repousa, de que a verdade é mais importante que qualquer outra coisa, também que qualquer convicção? Justamente esta convicção não poderia surgir, se a verdade e a inverdade continuamente se mostrassem úteis: como é o caso. Portanto — a crença na ciência, que inegavelmente existe, não pode ter se originado de semelhante cálculo de utilidade, mas sim apesar de continuamente lhe ser demonstrado o caráter inútil e perigoso da “vontade de verdade”, da “verdade a todo custo”. “A todo custo”: oh, nós compreendemos isso muito bem, depois que ofertamos e abatemos uma crença após a outra nesse altar! — Por conseguinte, “vontade de verdade” não significa “Não quero me deixar enganar”, mas — não há alternativa — “Não quero enganar, nem sequer a mim mesmo”: — e com isso estamos no terreno da moral. Pois perguntemo-nos cuidadosamente: “Por que você não quer enganar?”, sobretudo quando parecesse — e parece! — que a vida é composta de APARÊNCIA, quero dizer, de erro, embuste, simulação, cegamento, autocegamento, e quando a forma grande da vida, por outro lado, sempre se mostrou realmente do lado dos mais inescrupulosos ?????????? [homens de muitos expedientes]. Um tal desígnio talvez fosse, interpretando-o de modo gentil, um quixotismo, um ligeiro e exaltado desvario; mas também poderia ser algo pior, isto é, um princípio destruidor, inimigo da vida… “Vontade de verdade” — poderia ser uma oculta vontade de morte. — Assim, a questão: “Por que ciência?”, leva de volta ao problema moral: para que moral, quando vida, natureza e história são “imorais”? Não há dúvida, o homem veraz, no ousado e derradeiro sentido que a fé na ciência pressupõe, afirma um outro mundo que não o da vida, da natureza e da história; e, na medida em que afirma esse “outro mundo” — não precisa então negar a sua contrapartida, este mundo, nosso mundo?… Mas já terão compreendido aonde quero chegar, isto é, que a nossa fé na ciência repousa ainda numa crença metafísica — que também nós, que hoje buscamos o conhecimento, nós, ateus e antimetafísicos, ainda tiramos nossa flama daquele fogo que uma fé milenar acendeu, aquela crença cristã, que era também de Platão, de que Deus é a verdade, de que a verdade é divina… Mas como, se precisamente isto se torna cada vez menos digno de crédito, se nada mais se revela divino, com a possível exceção do erro, da cegueira, da mentira — se o próprio Deus se revela como a nossa mais longa mentira? Gaia Ciência LIVRO V 344

Acerca do velho problema: “O que é alemão?”. — Que cada qual verifique as genuínas realizações do pensamento filosófico que são devidas a cérebros alemães: há algum sentido legítimo em creditá-las a toda a raça? Podemos dizer que são, ao mesmo tempo, obra da “alma alemã”, ao menos seu sintoma, no sentido em que estamos habituados a ver, digamos, a ideomania de Platão, seu quase religioso delírio das formas, como evento e testemunho da “alma grega”? Ou o contrário seria verdadeiro? Seriam elas tão individuais, tão excepcionais no espírito da raça quanto foi, por exemplo, o paganismo com boa consciência de Goethe? Ou como é, entre os alemães, o maquiavelismo com boa consciência de Bismarck, a chamada Realpolitik [política realista]? Estariam os nossos filósofos contrariando as necessidades da alma alemã? Em suma, foram os filósofos alemães realmente — alemães filosóficos? — Recordarei três casos. Primeiro, a incomparável percepção de Leibniz  , com a qual ele teve razão não só perante Descartes, mas ante todos os que haviam filosofado até então — de que a consciência é tão só um accidens [acidente] da representação, não seu atributo necessário e essencial; que, portanto, isso que denominamos consciência constitui apenas um estado de nosso mundo espiritual e psíquico (talvez um estado doentio) e de modo algum ele próprio: — existe nesse pensamento, cuja profundidade até hoje não foi esgotada, algo de alemão? Existe razão para supor que um latino dificilmente chegaria a esta inversão da APARÊNCIA? — porque é uma inversão. Lembremo-nos, em segundo lugar, da enorme interrogação de Kant, por ele aplicada ao conceito de “causalidade” — não que ele houvesse, como Hume  , questionado sua legitimidade: ele começou, isto sim, a delimitar cautelosamente o âmbito no qual esse conceito faz sentido (ainda hoje não se terminou com essa demarcação). Em terceiro lugar, tomemos o espantoso golpe com que Hegel abalou todos os hábitos e vícios lógicos, ousando ensinar que os conceitos de espécie desenvolvem-se um a partir do outro: tese com a qual os espíritos europeus foram preparados para o último grande movimento científico, o darwinismo — pois sem Hegel não haveria Darwin. Há algo de alemão nessa novidade hegeliana, que introduziu na ciência o decisivo conceito de “desenvolvimento”? — Sim, sem dúvida; nos três casos sentimos que algo em nós foi “descoberto”, adivinhado, e ficamos a um só tempo agradecidos e surpresos, cada uma dessas três teses é, para os alemães, uma grave parcela de autoconhecimento, experiência e compreensão de si. “Nosso mundo interior é muito mais rico, mais amplo, mais oculto”, sentimos juntamente com Leibniz; como alemães duvidamos, juntamente com Kant, da validade última dos conhecimentos das ciências naturais e de tudo o que se deixa conhecer causaliter [causalmente]: o cognoscível já nos parece, como tal, de pouco valor. Nós, alemães, somos hegelianos, mesmo que nunca tivesse havido um Hegel, na medida em que (à diferença dos latinos) damos instintivamente ao vir-a-ser, ao desenvolvimento, um valor mais profundo e mais rico do que àquilo que “é” — nós mal acreditamos que se justifique o conceito de “ser” —; e também na medida em que não nos inclinamos a admitir que a nossa lógica humana seja a lógica em si, a única lógica (gostaríamos de nos convencer de que ela é apenas um caso especial, talvez um dos mais estúpidos e singulares —). Uma quarta questão seria se também Schopenhauer, com o seu pessimismo, ou seja, com o problema do valor da existência, teria de ser precisamente alemão. Creio que não. O evento após o qual esse problema era de esperar com total certeza, de forma que um astrônomo da alma poderia calcular seu dia e hora, o declínio da crença no Deus cristão, a vitória do ateísmo científico, é um evento de toda a Europa, no qual as raças todas devem ter seu quinhão de mérito e honra. Pelo contrário, seria de atribuir aos alemães — aos alemães de que Schopenhauer foi contemporâneo — haverem retardado longamente e perigosamente essa vitória do ateísmo; Hegel foi o seu retardador por excelência, segundo a grandiosa tentativa que fez de nos convencer da divindade da existência, enfim recorrendo até ao nosso sexto sentido, o “sentido histórico”. Schopenhauer foi, como filósofo, o primeiro ateísta confesso e inabalável que nós, alemães, tivemos: esse era o pano de fundo da sua hostilidade a Hegel. A profanidade da existência era para ele algo dado, tangível, indiscutível; ele perdia a sua compostura de filósofo e se encolerizava toda vez que alguém mostrava hesitação e fazia rodeios nesse ponto. Toda a sua retidão está nisso; o ateísmo incondicional e honesto é o pressuposto de sua colocação dos problemas, como vitória obtida afinal e com grande custo pela consciência europeia, como o ato mais pródigo em consequências de uma educação para a verdade que dura dois mil anos, que finalmente se proíbe a mentira de crer em Deus… Vê-se o que triunfou realmente sobre o Deus cristão: a própria moralidade cristã, o conceito de veracidade entendido de modo sempre mais rigoroso, a sutileza confessional da consciência cristã, traduzida e sublimada em consciência científica, em asseio intelectual a qualquer preço. Encarar a natureza como se ela fosse prova da bondade e proteção de um Deus; interpretar a história para glória de uma razão divina, como perene testemunho de uma ordenação moral do mundo e de intenções morais últimas; explicar as próprias vivências como durante muito tempo fizeram os homens devotos, como se tudo fosse previdência, aviso, concebido e disposto para a salvação da alma: isso agora acabou, isso tem a consciência contra si, todas as consciências refinadas o veem como indecoroso, desonesto, como mentira, feminismo, fraqueza, covardia — devemos a este rigor, se devemos a algo, o fato de sermos bons europeus e herdeiros da mais longa e corajosa autossuperação da Europa. Ao assim rejeitarmos a interpretação cristã e condenarmos o seu “sentido” como uma falsificação, aparece-nos de forma terrível a questão de Schopenhauer: então a existência tem algum sentido? — essa questão que precisará de alguns séculos para simplesmente ser ouvida por inteiro e em toda a sua profundidade. A resposta do próprio Schopenhauer a essa questão foi — que isto me seja perdoado — um tanto precipitada, juvenil, apenas um compromisso, um modo de permanecer e se prender nas perspectivas morais cristão-ascéticas a cuja crença se renunciara juntamente com a fé em Deus… Mas ele colocou a questão — como bom europeu, já disse, não como alemão. — Ou teriam os alemães demonstrado, ao menos na forma como se apoderaram da questão de Schopenhauer, íntima afinidade e parentesco, preparação e necessidade quanto ao seu problema? O fato de, após Schopenhauer, também na Alemanha se ter pensado e escrito — um pouco tarde, aliás! — acerca do problema por ele colocado não basta, certamente, para decidir a favor de uma tal afinidade; pode-se mesmo apresentar contra isso a característica inabilidade desse pessimismo pós-schopenhaueriano — evidentemente, os alemães não se comportaram como se estivessem no seu elemento. Nisso não estou aludindo absolutamente a Eduard von Hartmann  ; pelo contrário, ainda hoje não desapareceu minha velha suspeita de que ele é hábil demais para nós, isto é, de que ele, grande finório desde o início, talvez tenha não apenas zombado do pessimismo alemão — de que, no fim, pode mesmo haver “legado” em testamento, para os alemães, o modo como era possível zombar deles em plena Época da Fundação. Mas eu pergunto: deve-se contar em prol dos alemães o velho pião rangento Bahnsen, que a vida inteira rodou voluptuosamente em volta de sua miséria real-dialética e “má sina pessoal” — seria justamente isso alemão? (recomendo suas obras, aliás, para o uso que eu mesmo fiz delas, como dieta antipessimista, sobretudo por sua elegantiae psychologicae [elegância psicológica]; com elas, imagino, pode-se lidar mesmo com os intestinos e os ânimos mais presos). Ou deveríamos considerar alemães autênticos os diletantes e velhas solteironas como Mainländer, o sacarino apóstolo da virgindade? Ele terá sido judeu, afinal (— todos os judeus se tornam sacarinos ao moralizar). Nem Bahnsen nem Mainländer, menos ainda Eduard von Hartmann, fornecem dados seguros para a questão de saber se o pessimismo de Schopenhauer, seu olhar de horror a um mundo desdivinizado, que se tornara estúpido, cego, louco e questionável, seu honesto horror… seria não um mero caso excepcional entre os alemães, mas um evento alemão: ao passo que tudo o mais que se acha em primeiro plano, nossa valente política, nossa alegre patrioteirice, que muito resolutamente considera todas as coisas segundo um princípio bem pouco filosófico (“Alemanha, Alemanha acima de tudo”), isto é, sub specie speciei [do ponto de vista da espécie], quer dizer, da species alemã, prova nitidamente o contrário. Não, os alemães de hoje não são pessimistas! E Schopenhauer era pessimista, repito, como bom europeu e não como alemão. — Gaia Ciência LIVRO V 357

A vingança contra o espírito e outros motivos secretos da moral. — A moral — onde acreditam vocês que ela tenha seus mais perigosos e insidiosos advogados?… Eis um homem que não vingou, que não possui espírito suficiente para dele se alegrar e cultura bastante apenas para perceber isso; entediado, desgostado, um desprezador de si mesmo; infelizmente privado, por alguma herança que recebeu, daquele último consolo, a “bênção do trabalho”, o autoesquecimento na “labuta diária”; um tal que, no fundo, envergonha-se da sua existência — talvez abrigue também alguns pequenos vícios — e, por outro lado, não pode senão tornar-se cada vez mais estragado e vaidoso-irritável, graças a livros a que não tem direito ou a companhia mais espiritual do que o que pode digerir: um homem tal, integralmente envenenado — pois espírito se torna veneno, cultura se torna veneno, posses tornam-se veneno, solidão torna-se veneno, em seres que assim não vingam — cai afinal num costumeiro estado de vingança, de vontade de vingança… O que acham vocês que ele requer, requer absolutamente, para dar a si mesmo a APARÊNCIA de superioridade sobre homens mais espirituais, para dar-se o prazer da vingança cumprida, ao menos na imaginação? Sempre a moralidade, pode-se apostar, sempre os grandes termos morais, o trombetear de justiça, sabedoria, santidade, virtude, sempre o estoicismo de gestos (— como o estoicismo esconde bem o que não se tem!…), sempre o manto de sagaz silêncio, de afabilidade, de brandura, e como quer que se denominem os mantos idealistas com que passeiam os incuráveis desprezadores de si e os incuráveis vaidosos. Não me entendam mal: desses natos inimigos do espírito surge ocasionalmente o raro espécime de humanidade que o povo reverencia como santo e sábio; desses homens procedem os monstros da moral que fazem barulho, que fazem história — santo Agostinho   é um deles. O temor ante o espírito, a vingança contra o espírito — oh, com que frequência tais vícios impulsivos não se tornaram raiz de virtudes! Sim, tornaram-se virtude! — E, fazendo a pergunta entre nós, mesmo a pretensão dos filósofos à sabedoria, que aqui e ali já se fez no mundo, a mais louca e imodesta das pretensões — não foi sempre até hoje, na Índia como na Grécia, sobretudo um esconderijo? Por vezes, quem sabe, do ponto de vista pedagógico, que santifica tantas mentiras, em delicada consideração por seres que se formam, que crescem, por discípulos que, mediante a crença na pessoa (mediante um erro), com frequência têm que ser defendidos de si mesmos… Na maioria dos casos, porém, um esconderijo para o filósofo, no qual ele se salva devido ao cansaço, idade, endurecimento, esfriamento, por sentir a morte próxima, pela prudência desse instinto que os animais têm antes da morte — eles se põem à parte, ficam silenciosos, escolhem a solidão, refugiam-se em cavernas, tornam-se sábios… Como? A sabedoria sendo um esconderijo para o filósofo diante — do espírito? — Gaia Ciência LIVRO V 359

O problema do ator. — O problema do ator me perturbou durante muitíssimo tempo; eu não estava certo (e ocasionalmente ainda não estou) de que somente a partir dele poderemos lidar com o perigoso conceito de “artista” — que até o momento foi tratado com imperdoável bonomia. A falsidade com boa consciência; o prazer na dissimulação irrompendo como poder, jogando para o lado, submergindo, às vezes extinguindo o chamado “caráter”; o íntimo anseio de papel e máscara, de APARÊNCIA; um excesso de capacidades de adaptação de todo tipo, que já não se satisfazem no serviço da estreita utilidade imediata: tudo isso talvez não seja apenas o ator… Um tal instinto terá se desenvolvido mais facilmente nas famílias do povo humilde, que tinham de atravessar a vida sob opressões e constrangimentos vários, em profunda dependência, que deviam docilmente curvar-se às circunstâncias, sempre ajustar-se de novo a novas condições, sempre mudar de atitude e expressão, tornando-se gradualmente capazes de virar o casaco segundo qualquer vento, assim virando elas mesmas casaco, mestres na encarnada e inveterada arte do perene esconde-esconde, que nos animais se chama mimicry [mimetismo]: até que essa faculdade, armazenada de geração em geração, torna-se enfim dominadora, insensata, indômita, aprende a comandar, enquanto instinto, outros instintos, e produz o “artista” (primeiramente o bobo, o contador de lorotas, o bufão, o tolo, o palhaço, e também o criado clássico, o Gil Blas: pois nesses tipos temos a pré-história do artista e até do “gênio”, com frequência). Em condições sociais superiores também se desenvolve, sob pressões similares, uma espécie de homem similar: mas então o instinto histriônico é geralmente mantido em xeque por um outro instinto, como no “diplomata”, por exemplo — aliás, eu diria que um bom diplomata sempre poderia também dar um bom ator, desde que justamente “pudesse”. No que toca aos judeus, o povo da arte de adaptação par excellence, somos tentados a considerá-los, segundo este raciocínio, quase que uma organização mundial para a criação de atores, um autêntico viveiro de atores; e, de fato, já é boa hora de perguntar: qual o bom ator, nos dias de hoje, que não é judeu? Também o judeu literato congênito, que efetivamente domina a imprensa europeia, exerce esse poder em virtude de seus dons teatrais: pois o literato é essencialmente ator — ele faz o “entendido”, o “especialista”. — Por fim, as mulheres: reflitam sobre a história inteira das mulheres — elas não têm de ser atrizes, antes e acima de tudo? Ouçam os médicos que hipnotizaram mulheres; enfim, amem-nas — deixem-se “hipnotizar” por elas! Qual é sempre o resultado? Que elas “dão-se por”, mesmo quando — se dão. … A mulher é tão artística… Gaia Ciência LIVRO V 361

Diante de um livro erudito. — Não somos daqueles que só em meio aos livros, estimulados por livros, vêm a ter pensamentos — é nosso hábito pensar ao ar livre, andando, saltando, subindo, dançando, preferivelmente em montes solitários ou próximo ao mar, onde mesmo as trilhas se tornam pensativas. Nossas primeiras perguntas, quanto ao valor de um livro, uma pessoa, uma composição musical, são: “É capaz de andar? Mais ainda, é capaz de dançar?”… Nós lemos pouco, mas por isso não lemos pior — oh, como rapidamente adivinhamos de que modo alguém chegou a seus pensamentos, se o fez sentado em frente ao tinteiro, com o estômago apertado, a cabeça curvada sobre o papel: oh, como também rapidamente acabamos seu livro! As vísceras contraídas se revelam, pode-se apostar, e igualmente o ar abafado, o teto do quarto, a estreiteza do quarto. — Estes foram agora meus sentimentos, quando fechei um honesto livro erudito, grato, muito grato, mas também aliviado… No livro de um erudito há quase sempre algo opressivo, oprimido: em algum lugar vem à luz o “especialista”, seu zelo, sua gravidade, sua ira, sua sobrestimação do canto no qual fica e tece, sua corcunda — todo especialista tem sua corcunda. Um livro erudito sempre espelha igualmente uma alma entortada: todo ofício entorta. Veja-se novamente os amigos que se teve na juventude, depois que tomaram posse de sua ciência: ah, como sempre ocorre também o oposto! Ah, como eles mesmos ficam sempre tomados e possuídos por ela! Arraigados em seu canto, irreconhecíveis, de tão enrugados, sem liberdade, privados de seu equilíbrio, emagrecidos e em toda parte angulosos, apenas num ponto completamente redondos — ficamos impressionados e silenciosos, ao reencontrá-los assim. Todo ofício, mesmo tendo uma base de ouro, tem também sobre si um teto de chumbo, que pressiona e comprime a alma até que ela fique estranha e torta. Nada se pode fazer quanto a isso. Não se pense que é possível contornar esta deformação com alguma arte da educação. Toda espécie de mestria tem um alto preço neste mundo, onde tudo talvez saia muito caro; quem é senhor do seu mister paga o preço de ser também sua vítima. Mas vocês querem que isto seja diferente — “mais justo”, sobretudo mais cômodo — não é verdade, caros contemporâneos? Muito bem! Mas então vocês logo obtêm outra coisa, ou seja, em vez do artesão e mestre o literato, o hábil e “polidestro” literato, que certamente não tem corcunda — salvo aquela que ele faz ante vocês, como balconista do espírito e “portador” da cultura —, o literato que nada é propriamente, mas “representa” quase tudo, que faz o papel do conhecedor e o “substitui”, que em toda a modéstia também cuida de fazer-se pago, respeitado e festejado no lugar daquele. — Não, meus eruditos amigos! Eu os abençoo até mesmo por sua corcunda! E por desprezarem, como eu, os literatos e parasitas da cultura! E por não saberem mercadejar com o espírito! E terem opiniões que não se expressam em valor monetário! E por não representarem o que não são! Pelo fato de que sua única vontade é ser mestre de seu ofício, com respeito por toda espécie de mestria e competência e implacável rejeição de tudo o que é aparente, semigenuíno, enfeitado, virtuosístico, demagógico e histriônico in litteris et artibus [nas letras e artes] — de tudo aquilo que não possa apresentar-se ante vocês com absoluta probidade de disciplina e aprendizado! (Mesmo o gênio não leva a compensar tal deficiência, por mais que saiba induzir a ignorá-la: isso compreendemos ao observar de perto os nossos mais talentosos pintores e compositores — que, quase sem exceção, com astuciosa engenhosidade de maneiras, de expedientes, mesmo de princípios, sabem adquirir depois, artificialmente, a APARÊNCIA desta probidade, desta solidez de educação e cultura, por certo que sem enganar a si mesmos, sem calar permanentemente sua própria má consciência. Pois, vocês sabem, todos os grandes artistas modernos sofrem de má consciência…) Gaia Ciência LIVRO V 366

Por que não somos idealistas. — Houve tempo em que os filósofos temeram os sentidos: teríamos nós talvez — desaprendido demais esse temor? Hoje somos todos sensualistas, nós, homens do presente e do futuro na filosofia, não conforme a teoria, mas na prática, praticamente… Eles, por outro lado, achavam que os sentidos os atraíam para fora do seu mundo, do frio reino das “ideias”, rumo a uma perigosa ilha do Sul: na qual, temiam, suas virtudes filosóficas se derreteriam como neve ao sol. “Cera nos ouvidos” era, naquele tempo, quase que condição para o filosofar; um verdadeiro filósofo não escutava mais a vida, na medida em que esta é música, ele negava a música da vida — trata-se de uma velha superstição filosófica, a de que toda música é música de sereias. — Hoje seríamos inclinados ao julgamento oposto (que bem pode ser igualmente falso): isto é, que as ideias são sedutoras piores que os sentidos, com toda a sua anêmica e fria APARÊNCIA, e nem mesmo apesar desta APARÊNCIA — elas sempre viveram do “sangue” do filósofo, consumiram os seus sentidos e até, se nos for dado crédito, o seu “coração”. Esses velhos filósofos não tinham coração: filosofar sempre foi uma espécie de vampirismo. Em tais figuras, mesmo em Spinoza, não sentem vocês algo profundamente inquietante e enigmático? Não veem o espetáculo que aí se desenrola, o constante empalidecimento — a dessensualização interpretada de forma cada vez mais idealista? Não pressentem, ao fundo, como que uma sanguessuga há muito tempo escondida, que começa por atacar os sentidos e enfim lhe restam — e ela deixa — apenas ossos e ruídos? quero dizer, fórmulas, palavras (pois, perdoem-me, aquilo que restou de Spinoza, amor intellectualis dei [amor intelectual a Deus], é um ruído, nada mais! O que é amor, o que é deus, se lhes falta qualquer gota de sangue?…). In summa [Em suma]: todo idealismo filosófico foi, até agora, algo como uma doença, quando não foi, como no caso de Platão, a cautela de uma saúde muito rica e perigosa, o temor ante sentidos muito poderosos, a prudência de um prudente socrático. — Talvez nós, modernos, não sejamos saudáveis o bastante para necessitar do idealismo de Platão? E não tememos os sentidos porque — Gaia Ciência LIVRO V 372

O imperecível / É apenas teu símile! / Deus, o insidioso / É manha de poetas… / A roda do mundo a girar / Roça uma meta após a outra: / “Aflição” — é o que diz o zangado, / Mas o louco chama a isso de “jogo”… / O jogo do mundo, imperioso, / Mistura ser e APARÊNCIA: — / O eterno-insano / Nos mistura dentro!… Gaia Ciência APÊNDICE Canções do príncipe Vogelfrei / A GOETHE

Entre os alemães sou imediatamente compreendido quando digo que o sangue teológico é a ruína da filosofia. O pastor protestante é o avô da filosofia alemã; o protestantismo em si é o peccatum originale. Definição do protestantismo: paralisia hemiplégica do cristianismo — e da razão… Precisa-se apenas pronunciar as palavras “Escola de Tübingen” para compreender o que é, no fundo, a filosofia alemã — uma forma muito astuta de teologia… Os suevos são os melhores mentirosos da Alemanha; mentem com inocência… Qual o porquê de toda alegria que se estendeu pelo universo erudito da Alemanha — que é formado em três quartos por filhos de pastores e professores — com o aparecimento de Kant? Por que ainda ecoa na convicção alemã que com Kant houve uma mudança para melhor? O instinto teológico dos estudiosos alemães os fez enxergar nitidamente o que tinha se tornado possível novamente… Abria-se um caminho que conduzia de volta ao velho ideal; os conceitos de “mundo verdadeiro” e de moral como essência do mundo (— os dois erros mais viciosos que já existiram!) estavam, uma vez mais, graças a um ceticismo sutil e astucioso, se não demonstráveis, pelo menos irrefutáveis… A razão, o direito da razão, não vai tão longe… A realidade foi relegada a uma “APARÊNCIA”; um mundo absolutamente falso — o da essência — foi transformado na realidade… O sucesso de Kant foi um sucesso meramente teológico; assim como Lutero ou Leibniz, ele não foi senão um empecilho à já pouco estável integridade alemã.— O Anticristo X AO MISTRAL

— É tão pouco verdadeiro que mártires oferecem qualquer verossimilhança a uma causa que me sinto inclinado a negar que qualquer mártir já teve alguma coisa a ver com a verdade. No tom com que um mártir lança sua convicção à cara do mundo revela-se um grau tão baixo de probidade intelectual, tamanha insensibilidade ao problema da “verdade”, que nunca chega a ser necessário refutá-lo. A verdade não é algo que alguns homens têm e outros não: na melhor das hipóteses, só há camponeses e apóstolos de camponeses, da classe de Lutero, que possam pensar assim da verdade. Pode-se ter certeza de que, quanto maior for o grau de consciência intelectual de um homem, maior será sua modéstia, sua discrição neste ponto. Ser competente em cinco ou seis coisas e se recusar, com delicadeza, a saber algo mais… O entendimento que todos profetas, sectários, livres-pensadores, socialistas e homens de igreja têm da palavra “verdade” é simplesmente uma prova cabal de que nem sequer foi dado o primeiro passo em direção à disciplina intelectual e ao autocontrole necessários à descoberta da menor das verdades. — Os mártires, diga-se de passagem, foram uma grande desgraça na história: seduziram… A conclusão a que todos idiotas, mulheres e plebeus chegam é que deve haver algum valor em uma causa pela qual alguém afronta a morte (ou que, como o cristianismo primitivo, engendra uma epidemia de gente à procura da morte) — essa conclusão impede o exame os fatos, tolhe por inteiro o espírito investigativo e circunspeto. Os mártires danificaram a verdade… Mesmo hoje, basta uma certa dose de crueldade na perseguição para proporcionar uma honrável reputação ao mais vazio tipo de sectarismo. — Como? O valor de uma causa é alterado pelo fato alguém ter se sacrificado por ela? — Um erro que se torna honroso é simplesmente um erro que possui um encanto sedutor: julgais, senhores teólogos, que vos daremos a chance de serdes martirizados por vossas mentiras? — Melhor se refuta uma causa colocando-a, respeitosamente, no gelo — esse também é o melhor meio para refutar os teólogos… Foi precisamente esta a estupidez histórico-mundial de todos os perseguidores: deram uma APARÊNCIA honrosa à causa a que se opuseram — deram-lhe de presente a fascinação do martírio… Mulheres ainda se ajoelham ante um erro porque lhes disseram que um indivíduo morreu na cruz por ele. A cruz, então, é um argumento? — Mas sobre todas essas coisas um, e somente um, disse aquilo de que há milhares de anos se tinha necessidade — Zaratustra: Traçaram sinais de sangue pelo caminho que percorreram, e sua loucura ensinava que a verdade se prova através do sangue. Mas o sangue é, de todas, a pior testemunha da verdade; sangue envenena até a doutrina mais pura e a converte em insânia e ódio do coração. E quando alguém atravessa o fogo por sua doutrina — que isso prova? Mais vale, em verdade, que do nosso próprio incêndio venha a nossa doutrina! O Anticristo LIII AO MISTRAL
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