Página inicial > Modernidade > David Hume > Hume: Dos motivos que influenciam a vontade

Hume: Dos motivos que influenciam a vontade

sábado 29 de fevereiro de 2020, por Cardoso de Castro

  

Danowski

Nada é mais comum na filosofia, e mesmo na vida corrente, que falar no combate entre a paixão e a razão, dar preferência à razão e afirmar que os homens só são virtuosos quando se conformam a seus preceitos. Afirma-se que toda criatura racional é obrigada a regular suas ações pela razão; e se qualquer outro motivo ou princípio disputa a direção de sua conduta, a pessoa deve se opor a ele até subjugá-lo por completo ou, ao menos, até torná-lo conforme àquele princípio superior. A maior parte da filosofia moral, seja antiga ou moderna, parece estar fundada nesse modo de pensar. E não há campo mais vasto, tanto para argumentos metafísicos como para declamações populares, que essa suposta primazia da razão sobre a paixão. A eternidade, a invariabilidade e a origem divina da razão têm sido retratadas nas cores mais vantajosas; a cegueira, a inconstância e o caráter enganoso da paixão foram salientados com o mesmo vigor. Para mostrar a falácia de toda essa filosofia, procurarei provar, primeiramente, que a razão, sozinha, não pode nunca ser motivo para uma ação da vontade; e, em segundo lugar, que nunca poderia se opor à paixão na direção da vontade.

O entendimento se exerce de dois modos diferentes, conforme julgue por demonstração ou por probabilidade; isto é, conforme considere as relações abstratas entre nossas ideias ou as relações entre os objetos, que só conhecemos pela experiência. Acredito que dificilmente se afirmará que a primeira espécie de raciocínio pode ser, sozinha, a causa de uma ação. Como seu domínio próprio é o mundo das ideias, e como a vontade sempre nos põe no mundo das realidades, a demonstração e a volição parecem estar, por esse motivo, inteiramente separadas uma da outra. [...] O raciocínio abstrato ou demonstrativo, portanto, só influencia nossas ações enquanto dirige nosso juízo sobre causas e efeitos. Isso nos leva à segunda operação do entendimento.

É evidente que, quando temos a perspectiva de vir a sentir dor ou prazer por causa de um objeto, sentimos, em consequência disso, uma emoção de aversão ou de propensão, e somos levados a evitar ou a abraçar aquilo que nos proporcionará esse desprazer ou essa satisfação. Também é evidente que tal emoção não se limita a isso; ao contrário, faz que olhemos para todos os lados, abrangendo qualquer objeto que esteja conectado com o original pela relação de causa e efeito. É aqui, portanto, que o raciocínio tem lugar, ou seja, para descobrir essa relação; e conforme nossos raciocínios variam, nossas ações sofrem uma variação subsequente. Mas é claro que, neste caso, o impulso não decorre da razão, sendo apenas dirigido por ela. É a perspectiva de dor ou prazer que gera a aversão ou propensão ao objeto; e essas emoções se estendem àquilo que a razão e a experiência nos apontam como as causas e os efeitos desse objeto. Nunca teríamos o menor interesse em saber que tais objetos são causas e tais outros são efeitos, se tanto as causas como os efeitos nos fossem indiferentes. Quando os próprios objetos não nos afetam, sua conexão jamais pode lhes dar uma influência; e é claro que, como a razão não é senão a descoberta dessa conexão, não pode ser por meio dela que os objetos são capazes de nos afetar.

Uma vez que a razão sozinha não pode produzir nenhuma ação nem gerar uma volição, infiro que essa mesma faculdade é igualmente incapaz de impedir uma volição ou de disputar nossa preferência com qualquer paixão ou emoção. Essa é uma consequência necessária. A única possibilidade de a razão ter esse efeito de impedir a volição seria conferindo um impulso em direção contrária à de nossa paixão; e esse impulso, se operasse isoladamente, teria sido capaz de produzir a volição. Nada pode se opor ao impulso da paixão, ou retardá-lo, senão um impulso contrário; e para que esse impulso contrário pudesse alguma vez resultar da razão, esta última faculdade teria de exercer uma influência original sobre a vontade e ser capaz de causar, bem como de impedir, qualquer ato volitivo. Mas se a razão não possui uma influência original, é impossível que possa fazer frente a um princípio com essa eficácia, ou que possa manter a mente em suspenso por um instante sequer. Vemos, portanto, que o princípio que se opõe a nossa paixão não pode ser o mesmo que a razão, sendo assim denominado apenas em um sentido impróprio. Quando nos referimos ao combate entre paixão e razão, não estamos falando de uma maneira filosófica e rigorosa. A razão é, e deve ser, apenas a escrava das paixões, e não pode aspirar a outra função além de servir e obedecer a elas.

Original

Nothing is more usual in philosophy, and even in common life, than to talk of the combat of passion and reason, to give the preference to reason, and assert that men are only so far virtuous as they conform themselves to its dictates. Every rational creature, it is said, is obliged to regulate his actions by reason; and if any other motive or principle challenge the direction of his conduct, he ought to oppose it, till it be entirely subdued, or at least brought to a conformity with that superior principle. On this method of thinking the greatest part of moral philosophy, antient and modern, seems to be founded; nor is there an ampler field, as well for metaphysical arguments, as popular declamations, than this supposed pre-eminence of reason above passion. The eternity, invariableness, and divine origin of the former have been displayed to the best advantage: The blindness, unconstancy, and deceitfulness of the latter have been as strongly insisted on. In order to shew the fallacy of all this philosophy, I shall endeavour to prove first, that reason alone can never be a motive to any action of the will; and secondly, that it can never oppose passion in the direction of the will.

The understanding exerts itself after two different ways, as it judges from demonstration or probability; as it regards the abstract relations of our ideas, or those relations of objects, of which experience only gives us information. I believe it scarce will be asserted, that the first species of reasoning alone is ever the cause of any action. As its proper province is the world of ideas, and as the will always places us in that of realities, demonstration and volition seem, upon that account, to be totally removed, from each other. [...] Abstract or demonstrative reasoning, therefore, never influences any of our actions, but only as it directs our judgment concerning causes and effects; which leads us to the second operation of the understanding.

It is obvious, that when we have the prospect of pain or pleasure from any object, we feel a consequent emotion of aversion or propensity, and are carryed to avoid or embrace what will give us this uneasines or satisfaction. It is also obvious, that this emotion rests not here, but making us cast our view on every side, comprehends whatever objects are connected with its original one by the relation of cause and effect. Here then reasoning takes place to discover this relation; and according as our reasoning varies, our actions receive a subsequent variation. But it is evident in this case that the impulse arises not from reason, but is only directed by it. It is from the prospect of pain or pleasure that the aversion or propensity arises towards any object: And these emotions extend themselves to the causes and effects of that object, as they are pointed out to us by reason and experience. It can never in the least concern us to know, that such objects are causes, and such others effects, if both the causes and effects be indifferent to us. Where the objects themselves do not affect us, their connexion can never give them any influence; and it is plain, that as reason is nothing but the discovery of this connexion, it cannot be by its means that the objects are able to affect us.

Since reason alone can never produce any action, or give rise to volition, I infer, that the same faculty is as incapable of preventing volition, or of disputing the preference with any passion or emotion. This consequence is necessary. It is impossible reason coued have the latter effect of preventing volition, but by giving an impulse in a contrary direction to our passion; and that impulse, had it operated alone, would have been able to produce volition. Nothing can oppose or retard the impulse of passion, but a contrary impulse; and if this contrary impulse ever arises from reason, that latter faculty must have an original influence on the will, and must be able to cause, as well as hinder any act of volition. But if reason has no original influence, it is impossible it can withstand any principle, which has such an efficacy, or ever keep the mind in suspence a moment. Thus it appears, that the principle, which opposes our passion, cannot be the same with reason, and is only called so in an improper sense. We speak not strictly and philosophically when we talk of the combat of passion and of reason. Reason is, and ought only to be the slave of the passions, and can never pretend to any other office than to serve and obey them.


Ver online : Tratado da natureza humana