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Descartes (DM) – As quatro regras do método

domingo 24 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

  

O primeiro era de nunca aceitar coisa alguma como verdadeira sem que a conhecesse evidentemente como tal; ou seja, evitar cuidadosamente a precipitação e a prevenção, e não incluir em meus juízos nada além daquilo que se apresentasse tão clara e distintamente a meu espírito, que eu não tivesse nenhuma ocasião de pô-lo em dúvida.

O segundo, dividir cada uma das dificuldades que examinasse em tantas parcelas quantas fosse possível e necessário para melhor resolvê-las.

O terceiro, conduzir por ordem meus pensamentos, começando pelos objetos mais simples e mais fáceis de conhecer [1], para subir pouco a pouco, como por degraus, até o conhecimento dos mais compostos; e supondo certa ordem mesmo entre aqueles que não se precedem naturalmente uns aos outros.

E, o último, fazer em tudo enumerações tão completas, e revisões tão gerais, que eu tivesse certeza de nada omitir.

Essas longas cadeias de razões, tão simples e fáceis, de que os geômetras costumam servir-se para chegar às suas mais difíceis demonstrações, levaram-me a imaginar que todas as coisas que podem cair sob o conhecimento dos homens encadeiam-se da mesma maneira, e que, com a única condição de nos abstermos de aceitar por verdadeira alguma que não o seja, e de observarmos sempre a ordem necessária para deduzi-las umas das outras, não pode haver nenhuma tão afastada que não acabemos por [23] chegar a ela e nem tão escondida que não a descubramos. E não tive muita dificuldade em concluir por quais era necessário começar, pois já sabia que era pelas mais simples e mais fáceis de conhecer; e, considerando que entre todos aqueles que até agora procuraram a verdade nas ciências, só os matemáticos puderam encontrar algumas demonstrações, isto é, algumas razões certas e evidentes, não duvidei de que deveria começar pelas mesmas coisas que eles examinaram; embora delas não esperasse nenhuma outra utilidade a não ser a de acostumarem meu espírito a alimentar-se de verdades e a não se contentar com falsas razões. Mas com isso não tive a intenção de procurar aprender todas essas ciências particulares chamadas comumente matemáticas [2]; e, vendo que embora seus objetos sejam diferentes todas coincidem em só considerarem as diversas relações e proporções que neles se encontram, pensei que era melhor examinar somente essas proporções em geral, supondo-as apenas nas matérias que servissem para tornar-me seu conhecimento mais fácil; mesmo assim, sem as limitar de modo algum a essas matérias, a fim de poder melhor aplicá-las depois a todas as outras às quais conviessem. Depois, tento atentado que, para conhecê-las, eu precisaria às vezes considerar cada uma em particular, e outras vezes somente decorá-las, ou compreender várias ao mesmo tempo, pensei que, para melhor considerá-las em particular, teria de supô-las como linhas, porque não [24] encontrava nada mais simples nem que pudesse representar mais distintamente à minha imaginação e aos meus sentidos; mas, para reter e compreender várias ao mesmo tempo, eu precisava explicá-las por alguns sinais, os mais curtos possíveis, e que, deste modo, aproveitaria o melhor da análise geométrica e da álgebra e corrigiria todos os defeitos de uma pela outra [3].


Ver online : Discurso do Método


[1Um objeto ou ideia simples não é o que exige menos esforço. Para Descartes, as ideias simples são as irredutíveis a outras, e representam ou essências separadas (Deus, a alma, o corpo), ou relações (maior, menor, igual, etc.).

[2Os escolásticos distinguiam as matemáticas puras (aritmética, geometria) das matemáticas mistas (astronomia, música, óptica, mecânica, etc.).

[3Alusão à geometria analítica, que reduz as figuras (linhas) a equações (números). Assim, ela conserva, da geometria, as figuras, o que permite recorrer à imaginação, e, da álgebra, a brevidade e a simplicidade.