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CEM: I.6 – não maleficência

sábado 15 de fevereiro de 2020, por Cardoso de Castro

  

[...] um fato básico acerca das condições de nossa existência: é mais fácil para nós prejudicar uns aos outros do que nos beneficiarmos. É mais fácil, por exemplo, matarmos uns aos outros do que salvarmos outras vidas, ferirmos uns aos outros do que nos curarmos. A condição de que prejudicar é mais fácil do que beneficiar é um fato particularmente importante porque, à medida que o poder de ação humano aumenta em consequência do desenvolvimento exponencial da tecnologia científica, o poder humano de malefício torna-se absolutamente avassalador. A tecnologia científica forneceu-nos armas de destruição cm massa capazes de acabar definitivamente com toda e qualquer vida que valha a pena no planeta. Ela também nos possibilitou uma exploração tão eficiente dos recursos naturais que atualmente somamos 7 bilhões colonizando o planeta inteiro e usando excessivamente seus mais importantes ecossistemas (segundo a Avaliação Ecossistêmica do Milênio, divulgada pelas Nações Unidas, em 2005). O problema resultante do desenvolvimento da tecnologia científica é o núcleo deste livro.

A constatação de que é mais fácil para nós prejudicar do que beneficiar revela-se em nossa vida emocional e em nossa moralidade. Segundo a moralidade comum, ou as normas básicas de moral cotidiana que regulam o comportamento humano em todas as culturas, a nossa responsabilidade baseia-se principalmente na causalidade, ou seja, sentimo-nos mais responsáveis por um determinado resultado quanto maior for nossa participação em sua causa. A implicação disso é que nós intuitivamente sentimos, por exemplo, que somos mais responsáveis pelo dano que provocamos do que pelos benefícios que falhamos em promover e, portanto, a nossa obrigação moral é a de não prejudicar, e não a de gerar benefício. Esses deveres negativos correspondem à existência de direitos negativos quanto a não ser prejudicado, mas não à existência de direitos positivos para benefícios. Nossa maior vulnerabilidade ao dano reflete-se também no fato de que nossa aversão a perdas é maior do que a nossa atração por ganhos comparáveis; de que a emoção negativa do medo pode ser bem mais forte do que sua contraparte positiva, a emoção da esperança e do desejo; de que a ira de um malfeitor pode ser mais forte do que a gratidão a um benfeitor, e assim por diante.

Outro aspecto importante de nossa psicologia é que somos todos pessoal e temporalmente “míopes”, dispostos a nos preocupar mais com o que acontece conosco e com nossos entes queridos num futuro próximo do que com o que pode acontecer conosco e com pessoas estranhas num futuro distante. Temos a tendência a desconsiderar o futuro mais distante e a ter empatia e a nos compadecer apenas com poucos indivíduos próximos, e não com grande número de indivíduos. Nossa disposição para envolvimento em atos de cooperação recíproca, que abranjam senso de justiça e equidade, é também limitada ao pequeno número de pessoas com as quais nos importamos e em quem confiamos. Desconhecidos, aqueles fora do grupo de indivíduos que conhecemos pessoalmente, geralmente são encarados com despreocupação e desconfiança, de forma que uma ofensa mínima pode tornar-se hostilidade absoluta. São essas características de nossa psicologia moral que acreditamos ser de grande relevância no contexto atual. Supomos a existência de explicações evolucionárias para elas, mas é o fato de nós as apresentarmos, muito mais do que suas origens, que importa mais ao nosso argumento.


Ver online : Código de Ética Médica