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Badiou (Ética:15-16) – ética e moralidade

quarta-feira 31 de maio de 2023, por Cardoso de Castro

  

Certas palavras eruditas, há muito confinadas aos dicionários e à prosa acadêmica, têm a sorte, ou o azar — um pouco como uma solteirona resignada que se torna, sem compreender por quê, a coqueluche de um salão —, de saírem subitamente ao ar livre, de serem plebiscitadas e publicitadas, impressas, televisadas, mencionadas até nos discursos governamentais. A palavra ética, que tão fortemente sabe a grego, a curso de filosofia, que evoca Aristóteles (Ética a Nicômaco, um bestseller famoso!), encontra-se hoje sob a luz dos holofotes.

Ética refere-se, em grego, à busca de uma boa “maneira de ser”, ou à sabedoria da ação. Desse modo, a ética é uma parte da filosofia, aquela que coordena a existência prática com a representação do Bem.

Foram sem dúvida os estoicos que com mais constância fizeram da ética não apenas uma parte, mas o próprio cerne da sabedoria filosófica. O sábio é aquele que, sabendo discriminar entre as coisas que dependem dele e aquelas que não dependem, organiza sua vontade ao redor das primeiras e suporta impassivelmente as segundas. Conta-se, aliás, que os estoicos tinham o costume de comparar a filosofia a um ovo, cuja casca era a Lógica, a clara era a Física e a gema, a Ética.

Para os modernos, para os quais a questão do sujeito, desde Descartes  , é central, ética é mais ou menos sinônimo de moralidade, ou — diria Kant   — de razão prática (diferenciada da razão teórica). Trata-se das relações da ação subjetiva, e de suas intenções representáveis, com uma Lei universal. A ética é o princípio de julgamento das práticas de um Sujeito, seja ele individual ou coletivo.

Notar-se-á que Hegel introduziu uma sutil distinção entre “ética” (Sittlichkeit) e “moralidade” (Moralität). Ele reserva o princípio ético à ação imediata, enquanto a moralidade concerne à ação refletida. Dirá, por exemplo, que “a ordem ética consiste essencialmente na decisão imediata”. [1]]

O atual “retorno à ética” toma essa palavra num sentido evidentemente difuso, mas certamente mais próximo de Kant (ética do juízo) que de Hegel (ética da decisão).

Na verdade, ética designa hoje um princípio de relação com “o que se passa”, uma vaga regulação de nossos comentários sobre as situações históricas (ética dos direitos humanos), situações técnico-científicas (ética do ser vivo, bioética), situações “sociais” (ética do estar-junto), situações ligadas à mídia (ética da comunicação) etc.

Essa norma de comentários e opiniões está apoiada em instituições e dispõe de sua própria autoridade: existem “comissões nacionais de ética” nomeadas pelo Estado. Todas as profissões se interrogam sobre sua “ética”. Organizam-se até mesmo expedições militares em nome da “ética dos direitos humanos”.


Ver online : Alain Badiou


[1Hegel, Phénomenologie de l’Esprit, Aubier, vol. 2, p. 32. Toda esta seção da Fenomenologia do Espírito é difícil, mas extremamente sugestiva. [As referências bibliográficas serão citadas doravante segundo o título original, quando houver menção de página; e em sua tradução ao português, no caso oposto. (N. do T.)