Página inicial > Modernidade > Bioética > CEM: I.2 - zelo e capacidade profissional (Max Weber)

CEM: I.2 - zelo e capacidade profissional (Max Weber)

quinta-feira 6 de fevereiro de 2020, por Cardoso de Castro

  

Voltando ao segundo princípio fundamental e sua convocação ao "zelo" (sendo "zelar" repetido no quarto princípio) e à "capacidade profissional", vem à lembrança o estudo consagrado de Max Weber  , A Ética Protestante e o "Espírito" do Capitalismo. O termo "zelo" já com todo peso da tradição ascética cristã, vai receber uma chancela maior do movimento protestante, associando-o à apologia do trabalho, qualquer que seja e em si mesmo, na sociedade moderna sob qualquer ideologia, como vocação profissional e meio para a graça divina, seja terrestre ou celeste. Será que este termo "zelo" ainda merece menção em se tratando de um código de ética?

[...] é claro que o conjunto da literatura ascética de quase todas as confissões religiosas está impregnado pelo ponto de vista segundo o qual o trabalho leal, ainda que mal remunerado, da parte daqueles a quem a vida não facultou outras possibilidades, era algo extremamente aprazível a Deus. Nesse particular a ascese protestante em si não trouxe nenhuma novidade. Só que: ela não apenas aprofundou ao máximo esse ponto de vista, como fez mais, produziu para essa norma exclusivamente aquilo que importava para sua eficácia, isto é, o estímulo psicológico, quando concebeu esse trabalho como vocação profissional, como o meio ótimo, muitas vezes como o único meio, de uma pessoa se certificar do estado de graça. [1] E, por outro lado, legalizou a exploração dessa disposição específica para o trabalho quando interpretou a atividade lucrativa do empresário também como “vocação profissional”. [2] É palpável o poder de que dispunha para fomentar a “produtividade” do trabalho no sentido capitalista da palavra a aspiração exclusiva pelo reino dos céus através do cumprimento do dever do trabalho profissional e da ascese rigorosa que a disciplina eclesiástica impingia como coisa natural, precisamente às classes não proprietárias. Tratar o trabalho como uma “vocação profissional” tornou-se tão característico para o trabalhador moderno, como, para o empresário, a correspondente vocação para o lucro. [Como reflexo desse novo estado de coisas, um observador anglicano tão atilado quanto Sir William Petty atribuía o poderio econômico holandês do século XVII ao fato de lá haver dissenters (calvinistas e batistas) em quantidade particularmente numerosa, os quais viam “trabalho e zelo industrial como um dever para com Deus”. [...]


Um dos elementos componentes do espírito capitalista [ moderno ] , e não só deste, mas da própria cultura moderna: a conduta de vida racional fundada na ideia de profissão como vocação, nasceu — como queria demonstrar esta exposição — do espírito da ascese cristã . Basta ler mais uma vez o tratado de Franklin citado no início deste ensaio para ver como os elementos essenciais da disposição ali designada de “espírito do capitalismo” são precisamente aqueles que aqui apuramos como conteúdo da ascese profissional puritana, embora sem a fundamentação religiosa, que já em Franklin se apagara. — A ideia de que o trabalho profissional moderno traz em si o cunho da ascese também não é nova. Restringir-se a um trabalho especializado e com isso renunciar ao tipo fáustico do homem universalista é, no mundo de hoje, o pressuposto da atividade que vale a pena de modo geral, pois atualmente “ação” e “renúncia” se condicionam uma à outra inevitavelmente: esse motivo ascético básico do estilo de vida burguês — se é que é estilo e não falta de estilo — também Goethe  , do alto de sua sabedoria de vida, nos quis ensinar com os Wanderjahre ( Anos de peregrinação ) e com o fim que deu à vida de Fausto. Para ele essa constatação significava um adeus de renúncia a uma época de plenitude e beleza da humanidade, que não mais se repetirá no decorrer do nosso desenvolvimento cultural como também não se repetiu a era do esplendor de Atenas na Antiguidade. O puritano queria ser um profissional — nós devemos sê-lo. Pois a ascese, ao se transferir das celas dos mosteiros para a vida profissional, passou a dominar a moralidade intramundana e assim contribuiu [ com sua parte ] para edificar esse poderoso cosmos da ordem econômica moderna ligado aos pressupostos técnicos e econômicos da produção pela máquina, que hoje determina com pressão avassaladora o estilo de vida de todos os indivíduos que nascem dentro dessa engrenagem — não só dos economicamente ativos — e talvez continue a determinar até que cesse de queimar a última porção de combustível fóssil. Na opinião de Baxter, o cuidado com os bens exteriores devia pesar sobre os ombros de seu santo apenas “qual leve manto de que se pudesse despir a qualquer momento”. Quis o destino, porém, que o manto virasse uma rija crosta de aço (na célebre tradução de Parsons: iron cage = jaula de ferro). No que a ascese se pôs a transformar o mundo e a produzir no mundo os seus efeitos, os bens exteriores deste mundo ganharam poder crescente e por fim irresistível sobre os seres humanos como nunca antes na história. Hoje seu espírito — quem sabe definitivamente? — safou-se dessa crosta. O capitalismo vitorioso, em todo caso, desde quando se apoia em bases mecânicas, não precisa mais desse arrimo. Também a rósea galhardia de sua risonha herdeira, a Ilustração, parece definitivamente fadada a empalidecer, e a ideia do “dever profissional” ronda nossa vida como um fantasma das crenças religiosas de outrora. A partir do momento em que não se pode remeter diretamente o “cumprimento do dever profissional” aos valores espirituais supremos da cultura — ou que, vice-versa, também não se pode mais experimentá-lo subjetivamente como uma simples coerção econômica —, aí então o indivíduo de hoje quase sempre renuncia a lhe dar uma interpretação de sentido. Nos Estados Unidos, território em que se acha mais à solta porquanto despida de seu sentido metafísico [ ou melhor: ético-religioso ] , a ambição de lucro tende a associar-se a paixões puramente agonísticas que não raro lhe imprimem até mesmo um caráter esportivo. Ninguém sabe ainda quem no futuro vai viver sob essa crosta e se ao cabo desse desenvolvimento monstro hão de surgir profetas inteiramente novos, ou um vigoroso renascer de velhas ideias e antigos ideais, ou — se nem uma coisa nem outra — o que vai restar não será uma petrificação chinesa [ ou melhor: mecanizada ] , arrematada com uma espécie convulsiva de autossuficiência. Então, para os “últimos homens” desse desenvolvimento cultural, bem poderiam tornar-se verdade as palavras: “Especialistas sem espírito, gozadores sem coração: esse Nada imagina ter chegado a um grau de humanidade nunca antes alcançado”.

Ver online : Código de Ética Médica


[1A atividade de Baxter em Kidderminster, uma congregação em estado de absoluta depravação quando de sua chegada, por ter alcançado êxito sem paralelo na história da cura de almas, constitui exemplo típico de como a ascese educava as massas para o trabalho — em termos marxistas: para a produção de “mais-valia” — e assim tornou possível sua valorização na relação de trabalho capitalista (indústria em domicílio, tecelagem). Tal é a relação de causalidade em termos bem gerais. — Da perspectiva de Baxter, a inserção de seus pupilos nas engrenagens do capitalismo estava a serviço de seus interesses ético-religiosos. Da perspectiva do desenvolvimento do capitalismo, estes últimos é que se puseram a serviço do desenvolvimento do “espírito” capitalista.

[2E mais: pode-se duvidar, afinal, de que fosse tão forte como fator psicológico a propalada “alegria” do artesão medieval com “a sua criação”. Não há dúvida de que sempre houve algo assim. Mas, em todo caso, a ascese despiu o trabalho do atrativo deste mundo terreno — hoje aniquilado para sempre pelo capitalismo — e dirigiu-o para o Outro Mundo. O trabalho profissional como tal é querido por Deus. A impessoalidade do trabalho nos dias de hoje: essa sua desalegre falta de sentido do ponto de vista do indivíduo é aqui transfigurada religiosamente, ainda. O capitalismo na época de seu surgimento precisava de trabalhadores que por dever de consciência se pusessem à disposição da exploração econômica. [Hoje está bem assentado e é capaz de impingir a vontade de trabalhar sem oferecer prêmios do Outro Mundo.]