(VallinEI)
A) Individualidade objetiva e fenômeno. O estatuto da individualidade no nível da ontologia mecanicista (cont.)
1) Individualidade, essência e fenômeno no nível das ciências físico-químicas (macrofísica clássica)
a) O fenômeno como propriedade e o problema da individuação no espaço (cont.)
Mas agora precisamos considerar mais precisamente as implicações da ontologia mecanicista que inspira os procedimentos da ciência, na medida em que ela tem como objeto o fenômeno-propriedade ou qualidade. Vimos que toda qualidade em geral se refere, em qualquer procedimento da ciência, à possibilidade de uma observação hic et nunc, ou seja, à realidade pelo menos implicitamente reconhecida das “qualidades secundárias”.
Mas acabamos de ver que a individuação das próprias qualidades secundárias depende de um fator não observável em si mesmo e que pertence ao domínio da quantidade descontínua: o número inteiro. É a possibilidade da medida, ou seja, da aplicação do número à qualidade pela mediação do espaço, que justifica, em última análise, a individuação no nível das “qualidades secundárias”.
E sabe-se que a ontologia mecanicista que inspira os procedimentos da ciência tende a considerar a totalidade do real cognoscível apenas sob o ângulo da quantidade, ou mais precisamente, a aplicar a medida a todos os fenômenos situados no espaço-tempo.
Daí o descrédito ontológico lançado sobre as qualidades secundárias — com as restrições inevitáveis que mencionamos anteriormente — e que corresponde ao desejo de admitir no fenômeno apenas o que pode justificar a aplicação a este último da medida concebida como determinação numérica. E sabe-se que a medida de qualquer quantidade sempre se reduz, em última análise, à medida do espaço pelo número, seja inteiro, seja generalizado.
O que há de cientificamente válido nas próprias qualidades secundárias são as determinações quantitativas às quais elas podem ser reduzidas. Isso significa que a essência objetiva da qual a qualidade secundária, enquanto fenômeno-propriedade, é a atualização, será aqui objeto, assim como a essência objetiva que se atualiza no fenômeno, de uma explicação ou reconstituição que a reduzirá a elementos puramente quantitativos. A aplicação da medida levanta, como se sabe, o problema da heterogeneidade dos dois modos, contínuo e descontínuo, da quantidade. O número, essencialmente descontínuo, teve que ser generalizado para que se pudesse tentar preencher esse fosso intransponível. Daí a inevitável indeterminação e o caráter aproximativo da medida do fenômeno em geral (propriedade e modificação), que devem ser destacados ao lado do absurdo do atomismo antigo, que pretendia modelar a realidade espacial e corpórea como tal sobre a descontinuidade própria aos números inteiros. A individualização numérica só pode ser rigorosa, como decorre de nossa análise anterior, na medida em que o número em si está ligado a uma essência transespacial, única capaz de trazer uma verdadeira descontinuidade na ordem do espaço. Uma realidade corpórea enquanto simplesmente espacial, ou seja, sem referência a alguma essência que a estrutura e a individualiza, não pode formar uma verdadeira unidade, mas aparece como indefinidamente divisível em tantas porções quanto se queira.
A determinação individualizante inerente ao número se vê aqui contrariada pela indefinição inerente ao contínuo como tal (contínuo espacial e temporal). Assim, a verdadeira rigorosidade do cientista talvez não esteja tanto na determinação precisa das quantidades em si mesmas (comprimento, massa, espaço, velocidade etc.), mas na correlação que ele estabelece na variação de diversas quantidades umas em função das outras.