Vallin (EI:73-76) – O problema da individualidade ao nível da esfera objetivante

(VallinEI)

A) Individualidade objetiva e fenômeno. O estatuto da individualidade no nível da ontologia mecanicista (cont.)

1) Individualidade, essência e fenômeno no nível das ciências físico-químicas (macrofísica clássica)

a) O fenômeno como propriedade e o problema da individuação no espaço (cont.)

Em que consiste, então, precisamente, a individuação inerente ao fenômeno ou, mais especificamente, à propriedade enquanto manifestação ou “existencialização” da essência objetiva? O fenômeno concebido como propriedade, e não como modificação, é uma atualização da essência no plano do espaço. A propriedade, enquanto percebida empiricamente, se desdobra em uma porção de espaço definida por certos limites. No entanto, é importante esclarecer que os limites espaciais que determinam a individuação da propriedade-fenômeno operam essa individuação secundária, por assim dizer, apenas em função de uma individuação mais fundamental que afeta o fenômeno-substância ou o fenômeno-estrutura que serve de suporte para a propriedade. Tal propriedade (como uma cor específica, por exemplo) é uma propriedade determinada e atualmente observada apenas porque pertence a um objeto determinado, cuja individualidade também repousa, como já observamos em nossa descrição geral da estrutura lógica, na atualização de uma essência objetiva. A encarnação espacializante da propriedade está ligada à encarnação espacializante do objeto ao qual ela é atribuída (seja qual for a natureza, forma, estrutura etc. desse objeto). Se tal vermelho observado pode aparecer como um exemplar da essência objetiva do vermelho, é porque ele é atribuído a um objeto determinado que é a atualização de uma essência “substancial” e que concerne a algo como uma realidade relativamente independente e existente “por si mesma”. Mas, se é por sua pertença ao objeto que a propriedade se desdobra no espaço, é importante notar que sua individuação se refere não apenas ao espaço, mas, mais profundamente, ao número. O espaço e o número são as duas condições fundamentais da individuação da essência objetiva em fenômeno-propriedade. Já podemos observar, para evitar uma separação muito artificial entre o fenômeno-propriedade e o fenômeno-modificação, que é por meio do número que se efetua a passagem de um para o outro; pois a unidade numérica que afeta tal fenômeno se refere tanto à multiplicidade atual dos exemplares de uma mesma essência no espaço quanto à sua possível multiplicação no tempo.

O espaço é um princípio efetivo de individuação apenas pela mediação do número, que se revela o modo fundamental da quantidade. A homogeneidade e a continuidade amorfa do espaço só adquirem determinação pelo desdobramento de uma essência que se atualiza em uma porção de espaço a partir de um ponto determinado, que é posto como numericamente distinto de outro. Uma porção de espaço exclui outra porção de espaço (partes extra partes) apenas pela mediação da distância mensurável que separa dois pontos numericamente distintos. É a medida resultante da aplicação do número, ou seja, da quantidade descontínua ao espaço ou quantidade contínua, que torna possível a individualização no espaço de toda realidade sensível ou corpórea, ou seja, do fenômeno em todos os sentidos que se pode reconhecer nessa palavra. Mais profundamente, pode-se dizer que o espaço, enquanto referido a uma realidade concreta, não como quantidade amorfa e abstrata, deve ser posto como se desdobrando a partir de um ponto que, ele mesmo, não está no espaço, mas o engendra, sendo que cada um dos pontos que se pode determinar no espaço pode indiferentemente desempenhar esse papel de centro gerador.

A possibilidade da individuação de um fenômeno no espaço está evidentemente ligada à consideração de um ponto cuja existência sozinha pode justificar a medida, ou seja, a aplicação do número inteiro ou descontínuo à continuidade amorfa do espaço. O que traz, portanto, a determinação individualizante é algo como um centro não material, inobservável, em via de manifestação ou atualização, uma espécie de quarta dimensão transespacial que justifica a expansão das três dimensões constitutivas do próprio espaço.

Situar um ponto qualquer no espaço implica a referência a essa profundidade transespacial que só pode explicar a imbricação recíproca dos dois modos da quantidade que torna possível a medida sobre a qual se fundará a ciência em geral e a ontologia mecanicista em particular.

Um ponto em si mesmo só pode ter valor de individualidade na medida em que está ao mesmo tempo dentro e fora do espaço. Um corpo que estivesse apenas no espaço nunca poderia ser rigorosamente individualizado; pois não poderia participar do número.

Uma porção de espaço só pode ser medida na medida em que é unificada e limitada por um ato que sobrevoa, por assim dizer, a multiplicidade amorfa que lhe é inerente: aplicar uma unidade de medida a uma porção de espaço para medir o número de unidades que ela contém implica um sobrevoo que, necessariamente realizado pela subjetividade conhecedora e encarnada, pode ser ignorado pelo físico mecanicista pouco familiarizado com as sutilezas da reflexão sobre si mesmo. A força espiritual da subjetividade conhecedora é o mínimo indispensável para a medida do espaço pelo número. A aplicação arbitrária de unidades quaisquer de medida não implica, de fato, a referência a uma espécie de centro espiritual objetivo, mas é importante notar que o esquema fundamental permanece o mesmo quando se passa à consideração de unidades físicas reais se desdobrando no espaço (organismos, átomos, moléculas etc.).

Trata-se sempre do desdobramento do espaço a partir de um ponto determinado que é sempre o análogo do centro espiritual de minha subjetividade encarnada, por cuja expansão se constitui o espaço em geral. O espaço, aliás, só pode passar por uma continuidade amorfa pelo esquecimento quase natural da pressuposição necessária de sua gênese constituinte a partir da subjetividade encarnada. Ele está sempre, desde já, estruturado devido à sua necessária referência a esta última.

A porção de espaço na qual se manifesta, por exemplo, uma propriedade como a cor só pode, portanto, ser individualizada e distinguida de outra porção de espaço graças ao limite introduzido pelo número. A introdução do número em si implica ou a simples referência à subjetividade conhecedora e encarnada — quando se trata da abstração da realidade geométrica — ou a dupla referência à subjetividade conhecedora e a uma essência objetiva em geral, quando se trata do espaço de um corpo real concreto e observável.

O “fenômeno-propriedade” só é, portanto, individualizado por sua pertença a um centro transespacial que funda tanto sua unidade quanto seus limites. Perceber tal cor em um local bem definido no espaço (a cor verde deste caderno que está aqui) supõe a inserção dessa cor em um objeto numericamente distinto de outro. A medida numérica só pode ser aplicada ao fenômeno-propriedade que se desdobra no espaço por referência ao centro transespacial que faz o espaço do corpo ao qual essa propriedade é atribuída se desdobrar.

Observemos, além disso, que se essa individualização pelo número introduz no espaço uma descontinuidade e uma certa estrutura que se opõe à homogeneidade da “substância estendida” amorfa, ela constitui, sem dúvida, o que se poderia chamar de individualização mínima, pois tal qualidade-fenômeno, enquanto percebida, só se distingue de uma qualidade análoga solo numero, como diz Leibniz, ou seja, essa distinção puramente quantitativa repousa sobre uma identidade qualitativa.

 

 

Abellio, Raymond (31) Agamben, Giorgio (19) Antiguidade (31) Aristotelismo (28) Baader, Franz von (19) Barbuy, Heraldo (46) Berdyaev, N A (29) Bioética (118) Brun, Jean (22) Byung-Chul Han (17) Coomaraswamy, Ananda (432) Deleuze, Gilles (38) Espinosa, Baruch (42) Evola, Julius (106) Faivre, Antoine (24) Fernandes, Sergio L de C (80) Ferreira da Silva, Vicente (21) Ferreira dos Santos, Mario (46) Festugière, André-Jean (38) Gordon, Pierre (23) Guénon, René (196) Henry, Michel (82) Jaspers, Karl (25) Jowett – Plato (501) Kant, Immanuel (17) Kierkegaard, Søren Aabye (43) Lavelle, Louis (35) Merleau-Ponty, Maurice (23) Mito – Mistérios – Logos (129) Modernidade (149) Neoplatonismo (19) Nietzsche, Friedrich (64) Ortega y Gasset, José (47) Plotino (séc. III) (22) Pré-socráticos (213) Rosenzweig, Franz (20) Saint-Martin, Louis-Claude de (28) Schelling, Friedrich (34) Schopenhauer, Arthur (98) Schuon, Frithjof (354) Schérer, René (20) Sophia Perennis (123) Sousa, Eudoro de (36) Vallin, Georges (30) Wittgenstein, Ludwig (24)