Vallin (EI:69-71) – O problema da individualidade ao nível da esfera objetivante

(VallinEI)

A) Individualidade objetiva e fenômeno. O estatuto da individualidade no nível da ontologia mecanicista

A intencionalidade objetivante mais manifesta, aquela que nos parece traduzir com mais vigor a vontade de poder da subjetividade lógica, é a que inspira a elaboração da ontologia que determina o desvelamento do mundo como um conjunto de fenômenos submetidos a leis.

Aqui, tomamos a noção de fenômeno no sentido de uma realidade não apenas sensível, ou seja, que se manifesta no plano do observável, do espaço-temporal, mas que exige, para sua determinação ontológica, apenas outras realidades igualmente sensíveis às quais está ligada em virtude de leis.

Por outro lado, o fenômeno não é considerado aqui em um sentido platônico como a manifestação contingente de alguma essência transespacial e intemporal (por exemplo, a cor azul como manifestação da essência do azul) nem como integrado em um plano ontológico mais profundo que lhe conferiria seu ser e seu significado (por exemplo, o fenômeno físico-químico como subordinado a uma “forma transespacial”, a uma “essência” biológica). Isso não significa, no entanto, que o fenômeno assim concebido seja desprovido de qualquer referência a um plano essencial — uma vez que vimos anteriormente que a subjetividade objetivante tinha como tarefa fundamental desvelar uma essência objetiva “existencializada” no plano espaço-temporal.

Mas, no nível da ontologia mecanicista, que inspira de forma mais ou menos explícita todas as descrições e explicações da “macrofísica” clássica e mesmo a maior parte das especulações da microfísica contemporânea, a subjetividade tende a separar o fenômeno da essência objetiva que ele serviria para manifestar ou que seria o princípio de sua unidade e de seu dinamismo internos. O real visado pela intencionalidade objetivante em sua forma mais extrema é despojado ao máximo de toda interioridade, de toda subjetividade: ele é essencialmente fenômeno.

Isso significa que o fenômeno não exige ser completado por uma hipotética e inacessível coisa em si. O fenômeno — quaisquer que sejam suas modalidades — não tem um “interior”: ele consiste inteiramente em sua relação com outros fenômenos: a) Relações de sucessão temporal ou de causalidade mecânica, em virtude das quais um fenômeno é determinado por outro fenômeno (ou mais precisamente por um conjunto de condições) de acordo com certas leis (plano do fenômeno propriamente dito); b) Relações de coordenação ou subordinação entre fenômenos que se manifestam simultaneamente (domínio das estruturas).

Esse caráter essencialmente relacional do fenômeno exclui a posição de uma poeira descontínua de fenômenos. Enquanto objeto de um conhecimento científico rigoroso, a microfísica descontinuista também não pode escapar a essa exigência fundamental. Nem o átomo, nem o elétron, nem o fóton têm um “interior”, uma subjetividade do ponto de vista da ontologia mecanicista da física matemática: a ciência não pode pensá-los independentemente de sua realidade relacional.

Isso não significa que a ontologia mecanicista se desenvolva necessariamente em idealismo, pois, embora o idealismo pareça ser sua inclinação natural, não se pode ignorar a exigência realista que preside os procedimentos da ciência: se o fenômeno não tem um “interior”, se não é referido a uma espécie de interioridade objetiva existente por si mesma fora da consciência, ele não deixa de ser posto como ser, se é verdade que não é idêntico a um ser. Há um ser do fenômeno como tal, e é esse ser que é visado no término da intencionalidade objetivante inerente à ontologia mecanicista.

Não se poderia, portanto, falar aqui de uma essência objetiva (em modo platônico ou aristotélico) que se encarnaria no fenômeno e que formaria uma espécie de universo secreto e subjetivo além das aparências perceptíveis.

Mas observamos que o fenômeno não é desprovido de toda referência a uma realidade essencial. Em que consiste, então, exatamente essa referência, e qual é o estatuto ontológico preciso dos diversos planos que são assim postos em relação?

Antes de responder a essa questão, é necessário insistir em uma distinção importante que nos parece indispensável estabelecer no significado do termo muito geral de “fenômeno”. Por um lado, o fenômeno pode ser definido como qualidade, propriedade, estado, ou como evento ou modificação observável (o volume, a dilatação) que caracterizam ou modificam a substância de um corpo em geral (uma barra de metal). Mas o “corpo” em si pode ser concebido, ora como uma simples substância que serve de suporte ao “fenômeno” e que designa simplesmente uma realidade em geral possuidora de certas propriedades (por exemplo, o ponto material da mecânica clássica), ora como uma estrutura, ou seja, uma totalidade artificial ou natural implicando relações internas de coordenação ou subordinação entre certos elementos que formam as partes de um todo e que podem ser eles mesmos estruturas (por exemplo, um cristal, um átomo, um organismo vegetal ou animal, etc.).

No primeiro caso, temos o que chamaremos de fenômeno propriamente dito. No segundo, falaremos antes de “estrutura”, no sentido em que R. Ruyer1 emprega esse termo em oposição ao de “forma”. Examinaremos sucessivamente as relações que o fenômeno propriamente dito, e depois o fenômeno no sentido de estrutura, mantêm com a essência.

 


  1. Elementos de psicobiologia, p. 4 e seg. 

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