Vallin (EI:6-10) – A perspectiva metafísica e a superação do panteísmo

(VallinEI)

A perspectiva metafísica e o princípio de individuação


A) A Transcendência como interioridade absoluta. Transcendência, subjetividade e via negativa (Os fundamentos metafísicos da “individuação de interioridade”)

A noção do Absoluto que caracteriza a perspectiva metafísica repousa sobre uma concepção integral da Transcendência. Se o Absoluto, concebido em estilo metafísico, em oposição ao Absoluto concebido em estilo “religioso”, escapa rigorosamente, enquanto considerado em si mesmo, a toda relatividade, a toda limitação, mesmo interna ou principial, é porque ele se “situa”, por assim dizer, no extremo limite do movimento de transascendência que coincide com o que propomos chamar analogicamente de individuação de interioridade. Ele está no término de uma “interiorização” do ser, que é sem dúvida possível de ser realizada a partir dos “objetos” da experiência sensível, mas que se enxerta preferencialmente sobre um aprofundamento da consciência de si.

A perspectiva metafísica, que, como mostramos em outro lugar 1, ultrapassa a alternativa do idealismo e do realismo, realiza plenamente o significado do Absoluto que ela visa apenas no quadro de uma via aparentemente subjetiva, que se expressa essencialmente em termos de consciência e interioridade. A serenidade objetiva do conhecimento, assim como sua universalidade, pressupõem uma interiorização prévia. É isso que nos parece conferir ao aspecto vedantico da perspectiva metafísica uma certa superioridade sobre o aspecto neoplatônico, particularmente plotiniano, que lhe é, no entanto, cremos, essencialmente equivalente 2. Mas essa interiorização, que se pretende radical, ultrapassa, na verdade, a dualidade entre o interior e o exterior, e é apenas por razões metodológicas, ligadas ao ponto de partida da própria experiência, que a linguagem da consciência e da interioridade é a menos inadequada. Assim, uma reflexão sobre o Cogito cartesiano pode nos assegurar que a passagem ao Absoluto só pode se realizar a partir da interioridade do sujeito pensante. Se se emprega a linguagem da “exterioridade”, é sem dúvida por razões mais “psicológicas” do que profundamente “doutrinais” 3. A exterioridade pressupõe a interioridade, a consciência do mundo pressupõe a consciência de si, enquanto esta não pressupõe aquela. Descartes demonstrou bem essa verdade, embora talvez não tenha descoberto suas implicações essenciais. Para passar do relativo ao Absoluto, é necessário primeiro passar da exterioridade à interioridade, ou seja, à subjetividade. Isso nos explica por que a “prova” fundamental da “existência” do Absoluto está centrada, em Shankara, em uma espécie de Cogito 4. Trata-se de despir progressivamente a consciência de si de tudo o que não é o puro Sujeito, a Testemunha, o Espectador, que deve ser cuidadosamente “discriminado” do “Espectáculo” 5. Mas a interioridade da consciência de si implica ainda uma relatividade. Assim, a interiorização levada ao seu extremo conduz a uma interioridade esvaziada, por assim dizer, de toda relação com um “fora”, e mesmo um “fora” que estaria situado “dentro” dela mesma. A interiorização absoluta resulta então, não rigorosamente na Consciência absoluta, mas na transcendência absoluta de um Absoluto realizado a partir da consciência de si. Em outras palavras, se o Absoluto é interioridade absoluta, ele está necessariamente além da Consciência, enquanto esta permanece consciência de si, assim como está além da própria oposição entre o exterior e o interior. É isso que o uso de um pronome da terceira pessoa indica bem: Atman, o Si, para designar de maneira positiva, embora evidentemente analógica, o termo visado por essa verdadeira passagem ao limite da interiorização. Se se pode aplicar analogicamente o termo Consciência (Chit) 6, trata-se de uma consciência que escapa à lei que parece se aplicar a toda consciência em geral, e mesmo à de “Deus”, e segundo a qual toda consciência é consciência de algo 7, e isso não por causa de uma deficiência ontológica, mas por plenitude. A consciência, enquanto consciência absoluta, não é um ser ao qual a “espiritualidade” se acrescentaria misteriosamente por causa de não se sabe qual cataclismo metafísico. Ela possui eminentemente a dimensão de interioridade que é essencial à consciência. Mas essa interioridade, que é propriamente infinita, portanto além de toda relatividade, em virtude de sua plenitude e de sua atualidade ontológica, ultrapassa a Consciência de si, conduzindo até seu termo o movimento de interiorização pelo qual a consciência começa por se apreender a si mesma como distinta de seus objetos. Isso é o que se pode chamar de aspecto de “espiritualidade” ou de “interioridade” do Absoluto concebido em estilo metafísico 8. A Transcendência absoluta é, antes de tudo, interioridade absoluta, subjetividade infinita, mas subjetividade transpessoal e transsubjetiva, não limitada pela consciência que ela teria de si. É apenas a esse preço que a interiorização radical pode desembocar em um Absoluto rigorosamente ilimitado, ou seja, idêntico à infinita plenitude atual do ser 9. O real não pode, portanto, ser encontrado fora da Subjetividade assim concebida, uma vez que a interioridade absoluta ultrapassa a distinção entre dentro e fora. Essa é a razão pela qual o ser não é deduzido a partir da dimensão de “interioridade”, mas coincide rigorosamente com ela. Se o Absoluto metafísico pode ser posto como universalidade concreta e atual do ser, é precisamente em razão de sua interioridade, de sua espiritualidade “meta-espiritual”, de sua interioridade que transcende a concepção dogmática que o “espiritualismo” costuma fazer do Espírito.

Vê-se, portanto, em que sentido se poderia falar de uma individuação absoluta da Transcendência assim concebida. O Absoluto metafísico é, em certo sentido, o Indivíduo absoluto, que possui a indivisível plenitude da interioridade.

Compreende-se facilmente que a interiorização absoluta, que desemboca na Transcendência absoluta, coincide com uma negação integral, ou seja, com um superamento ontológico concreto — e radical — de toda relatividade, de toda multiplicidade, mesmo “interior”. É por isso que o apofatismo da via negationis se revela o instrumento por excelência da dialética propriamente metafísica. Não que essa negação se refira evidentemente ao próprio ser do Absoluto, pelo menos em seu aspecto mais profundo. Ela é apenas o instrumento necessário de uma transascendência ao mesmo tempo epistemológica e existencial, que se realiza de fato a partir da multiplicidade e da relatividade empíricas. Trata-se de negar a negação, ou seja, a limitação constitutiva de toda realidade empírica, para chegar à plenitude positiva, que, considerada em si mesma, é afirmação absoluta, realidade infinita, ens absolute indeterminatum, etc.

Mas nem sempre se teve consciência das implicações mais importantes dessa negação. Assim, a teologia negativa é concebida pelo homem religioso em função de uma negação, ou seja, de uma transascendência mais intencional e abstrata do que efetiva. A via negativa reveste, aliás, na perspectiva religiosa, duas funções essenciais:

1. No plano “dialético” da teologia natural de um São Tomás, por exemplo, ela aparece como o simples complemento da teologia catafática, destinado a despir de seu antropomorfismo as qualidades que esta atribui por analogia a Deus, ou seja, ao Absoluto pessoal. Ela não é concebida por São Tomás como um instrumento destinado a superar o que a teologia oriental, mais metafísica, chama de “Energias” em direção à “Essência” de Deus. Ela é concebida apenas em função da “via da analogia”, que está, aliás, em estreita relação com a técnica das provas a posteriori, que partem do mundo para chegar a Deus e que concebem Deus apenas em função de sua relação com o mundo, ou seja, como Causa criadora. Deve-se notar, além disso, que o superamento tomista da teologia natural em direção à teologia trinitária “revelada” não consegue (e nem busca) superar essa “relatividade”, ao mesmo tempo que pretende visar a “vida íntima” da divindade 10.

2. No plano “existencial” da “teologia mística” de um São João da Cruz, o método negativo aparece inicialmente como a recusa voluntária deste mundo, à realidade substancial do qual o espiritual foi invencivelmente levado a acreditar, daí a negatividade passional da angústia e das trevas da “noite” sanjoanista.

A negação metafísica é ao mesmo tempo integral e concreta. Ela vai realmente até o limite da transascendência, e é por isso que atinge natural e necessariamente esse aspecto de irrelatividade e de interioridade radicais do Absoluto que constitui a Subjetividade transpessoal 11.

 

 

  1. A perspectiva metafísica, op. cit., Parte III, cap. I.[]
  2. Essa superioridade se manifesta especialmente na aplicação da doutrina à realização espiritual. A interioridade do Si, pressuposta pela “teoria” vedantica, é como um convite a realizar, a “tornar-se” aquilo que eu sou, enquanto a “objetividade” do Uno produz inicialmente uma espécie de reflexo de recuo.[]
  3. Plotino, em um estilo ocidental, falará do Uno ou do Bem, em vez do Si ou da Não-dualidade.[]
  4. Cf. Lacombe, O Absoluto segundo o Vêdânta, p. 229 sq.[]
  5. Cf. “Como discriminar o espectador do Espectáculo”, Tratado vedantico, Ed. Maisonneuve.[]
  6. Cf. o ternário clássico: Ser-Consciência-Beatitude (Sat-Chit-Ananda), que é atribuído por Shankara ao aspecto “transpessoal” do Absoluto.[]
  7. Seja consciência do “mundo”, seja consciência de si.[]
  8. É essa dimensão que Spinoza parece ter negligenciado, enquanto ela não está ausente do neoplatonismo, apesar do aspecto “extático” do “contato com o Uno”.[]
  9. Esse aspecto de atualidade infinita do ser implica evidentemente o aspecto de “eternidade”.[]
  10. A teologia mística da Igreja Oriental nos parece reservar, graças ao seu apofatismo, àquele que é capaz de superar as exigências passionais da consciência religiosa, a possibilidade de uma compreensão propriamente metafísica dos “mistérios” da Trindade.[]
  11. Sabe-se que o apofatismo da perspectiva metafísica se traduz pelo uso de termos de estrutura negativa para designar o Absoluto metafísico: Não-dualidade vedantica, Não-ação taoísta, Não-Ser guenoniano, etc. (cf. A perspectiva metafísica, op. cit., Parte I, cap. II).[]

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