Vallin (EI:3-6) – A perspectiva metafísica e a superação do panteísmo

(VallinEI)

Da perspectiva religiosa à perspectiva metafísica

Um olhar lúcido sobre o mundo moderno nos revela, como um fato incontestável, o desaparecimento crescente da diversidade qualitativa das coletividades e das individualidades humanas. A uniformização resultante dos avanços da ciência e da técnica não se limita apenas à ordem dos meios utilizados pelo homem contemporâneo, mas também à raiz subjetiva de suas motivações. A objetivação uniformizadora do mundo parece caminhar lado a lado com a desindividualização do homem. A filosofia da história, por vezes, conseguiu transformar essa necessidade em virtude, ao convocar o indivíduo singular a se integrar em Totalidades que eram apresentadas como sua essência e verdade. O sistema de Hegel exemplifica de forma brilhante esse panteísmo prometeico do homem moderno.

No entanto, é evidente que a desindividualização factual do homem moderno está correlacionada com uma individualização baseada na quantidade. A integração do indivíduo em Totalidades panteístas pressupõe o princípio da “individuação pela matéria”. Assim, a individualidade revela-se como uma noção ambígua. Além da clássica individuação pela matéria, é necessário admitir uma individuação qualitativa, que diz respeito essencialmente à subjetividade humana e cujos fundamentos nos propomos investigar.

Por muito tempo, acreditamos encontrar esses fundamentos na filosofia da existência de Kierkegaard. A reflexão sobre a obra do pensador dinamarquês nos fez compreender a importância decisiva de sua categoria do Indivíduo 1. E nos parecia [4] que as relações da subjetividade humana com a Transcendência, ou mais precisamente, com o Absoluto posto como transcendente, no “temor e tremor” de uma “fé” baseada na “consciência do pecado”, eram as únicas capazes de preservar o indivíduo da integração panteísta a que o destinava o Sistema hegeliano.

A individuação qualitativa, que neste caso coincidia com uma “personalização”, nos aparecia profundamente ligada a uma interiorização da subjetividade, fundamentada em uma certa experiência espiritual da Transcendência do Absoluto e na recusa de encerrar o homem no círculo do dogmatismo humanista. Essa individuação qualitativa ou “de interioridade”, profundamente distinta da individuação de exterioridade baseada no princípio da “individuação pela matéria”, equivale ao que poderíamos chamar de uma transascendência 2 interiorizante da subjetividade humana.

Ainda nos parece evidente que essa transascendência interiorizante constitui o fundamento da individuação qualitativa.

No entanto, a descoberta de certos aspectos da metafísica oriental, particularmente do Não-dualismo do Vêdânta 3, bem como uma releitura dos textos neoplatônicos 4, nos levou a perceber as limitações dessa “transascendência” no existencialismo de Kierkegaard.

À luz do que propusemos chamar de “perspectiva metafísica” 5, o percurso espiritual de Kierkegaard nos pareceu ligado a pressupostos dogmáticos que impedem uma superação efetiva do panteísmo hegeliano. Esse percurso se insere no que chamaremos de perspectiva religiosa, que engloba certos tipos de experiência espiritual (desde a “exotérica” do charbonnier até certos cumes da experiência mística) e que inclui tanto o teísmo personalista do Vêdântin “dualista” Ramanuja quanto o de Lutero e de São Tomás de Aquino.

Sem analisar detalhadamente as diversas [5] modalidades dessa experiência de tipo religioso 6, às quais dedicaremos um próximo trabalho 7, limitar-nos-emos a observar que:

1° A perspectiva religiosa se distingue da perspectiva metafísica tanto no plano da experiência espiritual quanto no das pressuposições doutrinais;

a) Enquanto a perspectiva metafísica se baseia em uma experiência espiritual centrada no Conhecimento, pelo qual a subjetividade humana se identifica com um Absoluto “transpessoal” ou “suprapessoal” 8 que constitui seu “Eu” ou sua “Essência” íntima 9, a perspectiva religiosa resulta em uma experiência espiritual fundamentada no Amor, pelo qual a subjetividade humana, despojada de seu orgulho, mas não de seu ego, se une à Pessoa divina, da qual permanece para sempre separada por um abismo intransponível.

b) Enquanto a perspectiva metafísica implica uma concepção integral da Transcendência do Absoluto, que se revela correlativa de sua imanência radical ao manifestado, de modo que o mundo e o homem são postos como reflexos do Princípio e não como substâncias, nem mesmo como efeitos ou modos, a perspectiva religiosa se caracteriza por uma concepção fragmentária ou abstrata da Transcendência: o Absoluto não é visto como o Eu ou a Essência das realidades finitas, mas apenas como sua Causa produtora ou criadora. A limitação do Absoluto, concebido apenas como Causa do Múltiplo, aparece então correlativa à limitação das “criaturas”, cuja condição constitui a essência. O mundo e o homem aparecem seja como modos (no emanatismo teísta de um Ramanuja) ou como criaturas, mas sempre como efeitos, e não como reflexos. A essência do homem se identifica aqui com a condição humana. Essa perspectiva, portanto, repousa sobre uma exterioridade recíproca irredutível 10 do “criado” e do “incriado”.

[6] 2° Na perspectiva religiosa, o movimento de “transascendência interiorizante”, que nos parece atingir seu ápice na perspectiva metafísica, é limitado por essa exterioridade recíproca, que encerra a subjetividade humana, assim como a “subjetividade” divina, em uma determinação ou negação personalizante (a pessoa finita estando ao mesmo tempo unida e separada da Pessoa infinita). Dentro da perspectiva religiosa, a limitação da interiorização pode assumir dois aspectos diferentes, dependendo de se enfatiza o aspecto “união” e “amor” ou o aspecto “separação” e “consciência do pecado”. Enquanto os cumes da mística sanjuanista e o itinerário da espiritualidade de um Gregório de Nysse 11 estão centrados na união personalizante da alma humana com Deus, a espiritualidade kierkegaardiana, onde a se reduz a um puro movimento da Vontade despojada de toda luz intelectual, está muito distante da “gnose” metafísica do Vêdânta ou do Neoplatonismo, devido ao seu subjetivismo voluntarista centrado no “temor” mais do que no amor a Deus, na angustiante consciência do “pecado” mais do que na certeza apaziguadora da “graça”. Assim, o Indivíduo kierkegaardiano nos pareceu, à luz da perspectiva metafísica, como um aspecto limitado de uma realidade mais universal, à qual é necessário se referir para que a individuação qualitativa ou a individuação de interioridade encontre seu verdadeiro sentido e fundamento.

 

  1. Cf. J. Wahl, Estudos kierkegaardianos, p. 270: A solidão da Existência: a categoria do Único.[]
  2. Termo que emprestamos de J. Wahl, em Existência humana e transcendência.[]
  3. Encontra-se em nossa obra A perspectiva metafísica, P.U.F., 1959, uma bibliografia que permite uma iniciação ao pensamento vêdântico, especialmente à doutrina não-dualista de Shankara.[]
  4. Especialmente de Plotino à luz do Não-dualismo vêdântico.[]
  5. É importante notar que a perspectiva metafísica pode se expressar (cf. Mestre Eckhart) em tradições espirituais de tipo religioso no sentido estrito (monoteísmo judaico-cristão e islâmico), assim como, inversamente, a perspectiva religiosa pode se expressar em tradições espirituais de tipo “mitológico-metafísico”. Cf. o Vêdântin “dualista” Ramanuja.[]
  6. Cf. nosso artigo: Essência e formas da teologia negativa na Revista de metafísica e moral (abril 1958), onde esboçamos dois aspectos diferentes dessa experiência (São João da Cruz e Gregório de Nissa).[]
  7. A experiência espiritual da Transcendência.[]
  8. E não “impessoal”.[]
  9. A experiência espiritual de estilo metafísico se insere, na Índia tradicional, no que os vedantinos chamam de “Caminho do Conhecimento” (Jnana marga), que se distingue do caminho do Amor (bhakti marga), onde a experiência espiritual é de estilo religioso.[]
  10. Essa exterioridade é efetivamente recíproca, pois se é evidente que “Deus” está além não apenas da existência, mas da própria essência da “criatura”, parece igualmente claro que a criatura, como tal, está necessariamente, sob algum aspecto, fora de um Absoluto que, por essência, a “cria” e a conserva em seu ser de criatura.[]
  11. Cf. J. Daniélou, Platonismo e teologia mística (Aubier).[]

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