(VallinEI)
A perspectiva metafísica e o princípio de individuação (cont.)
B) A imanência do Absoluto metafísico e a origem da negação. Significação e justificação metafísicas da “individuação pela matéria” (cont.)
1. O aspecto positivo da individuação de exterioridade. A “Matéria inteligível”. (cont.)
A imanência do Absoluto no manifestado coincide com o que chamaremos de generalização metafísica do princípio de individuação pela matéria. Vimos que o “Nada” ou a “Matéria” não é verdadeiramente diferente do Absoluto, nem verdadeiramente idêntico a ele. Nem real, nem irreal, essa natureza enganadora não é, portanto, apenas enganadora. Isso é o que se esquece com frequência ao se referir à imagem um tanto simplista que o Ocidente, seguindo Schopenhauer, tende a fazer da Maya vedantica. Ela nos parece rigorosamente idêntica, como mostramos em outro lugar, à Matéria plotiniana, da qual assume o duplo aspecto. O nada, enquanto não-diferente do Absoluto, aparece como princípio positivo de individuação. Ele equivale ao que chamaremos de aspecto positivo da individuação de exterioridade, entendendo-se que a individuação, no sentido rigoroso do termo, se reduz a esta última 1.
Esse aspecto positivo se traduz de diversas maneiras. Ele corresponde ao que Plotino chamou de Matéria inteligível, que se revela a condição da produção das Ideias ou da Inteligência, ou seja, dessa determinação eminentemente positiva que é o Ser enquanto Unidade do Múltiplo, enquanto multiplicidade inteligível 2. A matéria inteligível aparece em Plotino como a raiz da infinita multiplicidade das Ideias. Em Shankara, Maya é a raiz do “Senhor” (Ishvara), ou seja, de Deus como causa primeira, produtor do mundo, correspondendo ao Intelecto universal do platonismo. Ela aparece como a fonte de um aspecto eminentemente positivo do Infinito. Não como potência de ilusão, mas como onipotência produtora, Energia, Mãe divina 3. No tantrismo, é esse aspecto do Absoluto que prevalecerá, mas enquanto integrado ao aspecto de interioridade, de pura não-dualidade. A perspectiva religiosa se limita exclusivamente a esse aspecto do Absoluto, e é nesse sentido que a individuação “de exterioridade” pela “matéria inteligível” pode ser posta como o princípio metafísico da Pessoa, ou seja, da Consciência de si. A “negatividade” ou, antes, a “Onipotência” do Absoluto, que é paradoxalmente idêntica e não idêntica a este último, o conduz a se manifestar a si mesmo na infinita multiplicidade dos aspectos inteligíveis de seu Verbo. A Matéria inteligível é o aspecto de infinitude, de expansão infinita, do Absoluto, mas que permanece (por assim dizer) na própria sombra do Absoluto 4. Multiplicidade não dispersiva, multiplicidade de riqueza, princípio “criador” ou, antes, “manifestador”, pois ele apenas revela, pela multiplicidade das ideias, a infinita plenitude do Absoluto.
É nesse nível que se encontra o aspecto qualitativo ou essencial do limite, em virtude do qual o limite, ou seja, a Essência, a Ideia, distingue os seres sem separá-los, os une sem confundi-los. A alteridade “inteligível” inerente à Ideia platônica desempenha um papel positivo na ordenação do cosmos a partir da potencialidade cósmica, que é constituída pelo reflexo invertido dessa “matéria inteligível”, ou seja, pelo aspecto propriamente “negativo” do Nada. Essa “Alteridade” é idêntica à potência infinita do “Pai” que gera desde toda a eternidade o “Filho”, ou seja, o Verbo eterno da teologia trinitária do Cristianismo. É esse aspecto, de certa forma positivo, do “Nada” que se encontra nas diversas formas de “essências”. E é em virtude de sua participação mais ou menos profunda na “Alteridade inteligível”, na Essência concebida não mais em sua pura interioridade, mas em sua exteriorização principial, que a subjetividade e as realidades que ela visa no mundo assumem um aspecto de determinação positiva.
O aspecto positivo 5 da consciência de si, que caracteriza a estrutura da Pessoa espiritual no quadro da perspectiva religiosa, nos parece a forma mais importante da positividade dessa Alteridade inteligível 6.
Mas o que constitui, na perspectiva metafísica, a real positividade da Matéria inteligível é sua “conversão ao Uno”, como diz Plotino. É sua orientação para a interiorização absoluta que confere a essa principial individuação de exterioridade seu aspecto positivo.
É apenas nessa perspectiva, em que a transcendência absoluta do Infinito envolve sua imanência absoluta, que se revela possível uma misteriosa (mais do que paradoxal) coincidência desses opostos que são a Universalidade do Ser e a singularidade do indivíduo aparentemente submetido à separatividade da “matéria”. É a não-dualidade da perspectiva metafísica que nos parece fundamentar e justificar mais profundamente a singularidade qualitativa dos seres. É porque o Intelecto plotiniano é apenas uma exteriorização principial do Uno ou do Si que sua imanência radical à manifestação permite fazer corresponder cada um dos indivíduos singulares a um dos inúmeros aspectos incluídos na universalidade concreta do mundo inteligível 7.
O indivíduo deve ser concebido como pertencendo, para falar a linguagem de Plotino, ao inteligível pela parte superior de seu ser, para que os eventos e os acidentes singulares que ritmam seu devir possam ser “deduzidos” de sua essência.
Para isso, é necessário que a realidade desse indivíduo, tal como concebida por Deus, seja realmente — e não apenas verbalmente — mais do que sua projeção no cosmos. E ela só pode ser realmente mais do que isso se o aspecto pessoal do Deus criador for transcendido em direção ao aspecto suprapessoal do Si, shankariano da “Deidade” eckhartiana. Em outras palavras, a criatura só pode ser interiorizada ao ponto de justificar metafisicamente a Ideia divina de um ser singular se a interiorização do próprio Criador, assim como a dela, for levada ao seu limite 8. É necessário que a criatura e o criador se interiorizem na transpersonalidade absoluta do Si para que haja uma justificação verdadeiramente integral, ou uma integração no sentido mais metafísico do termo, da infinita multiplicidade qualitativa dos acidentes singulares que caracterizam um ser individual. Somente a esse preço os seres e os eventos singulares podem ter, como em Nicolau de Cusa, “um valor teofânico” 9. Deus só podia saber que César cruzaria o Rubicão porque, nele e acima dele, sua Deidade era mais do que sua Pessoa.
- O que chamamos de individuação de interioridade é, portanto, designado apenas impropriamente por essa expressão. Tratava-se mais do princípio de interiorização. Mas a própria possibilidade de empregar legitimamente esta última é um sinal da ambiguidade dessa noção fundamental, que reflete apenas a ambiguidade do princípio metafísico de individuação em si mesmo, desse Nada, dessa “Matéria” ou dessa “Maya”, que é ao mesmo tempo a potência tenebrosa que afasta (ilusoriamente) do Absoluto (individuação de exterioridade) e a potência atrativa que reconduz a ele a manifestação (individuação de interioridade).[↩]
- Cf. Enéadas, II, 4, 5.[↩]
- Cf. o culto à Mãe divina no Hinduísmo.[↩]
- Isso explica a interpretação unilateral, mas perfeitamente válida, que o teísta Ramanuja faz da Maya vêdântica, e que também se encontra na “potência maravilhosa” que circula, na inteligibilidade de que fala Plotino em Enéadas, II, 9, 8.[↩]
- Em oposição ao aspecto “negativo”, que se expandirá ao máximo no temporalismo niilista de um Sartre.[↩]
- Essa análise nos ajuda a compreender que não há essência pura de toda “matéria”, senão a raiz “essencial” de todas as essências, que se situa ela mesma “além da essência”, segundo a fórmula de Platão. A perspectiva metafísica, não retida por restrições sentimentais, nos conduz, portanto, a reconhecer que Deus, enquanto “criador” do mundo, é material em algum grau.[↩]
- Daí a teoria plotiniana das “Ideias dos Indivíduos”. Cf. Enéadas, V, 7.[↩]
- Em outras palavras, só há uma verdadeira integração do indefinido por meio de uma coincidência paradoxal entre a imanência absoluta e a transcendência absoluta. Somente a esse preço a lógica segundo o entendimento de Aristóteles pode ser verdadeiramente superada. É Plotino ou Nicolau de Cusa que realmente supera a lógica de Aristóteles, e não Leibniz ou Hegel.[↩]
- Segundo a expressão de M. de Gandillac, em Œuvres choisies, de N. de Cusa, p. 38 (ed. Aubier).[↩]