Schuback (1998:92-94) – intuição intelectual [Anschauung]

É no Sistema do idealismo transcendental (1800) que Schelling vai apresentar o primeiro grande embasamento do termo intuição intelectual enquanto visão do começo absoluto de deus, da irrupção do absoluto em mundo e natureza. Este embasamento propicia as linhas fundamentais da chamada primeira filosofia ou filosofia negativa, que se define como tentativa de sistematização do movimento absoluto de deus para o mundo e natureza, do princípio para as coisas, do começo para o fim. A intuição intelectual delimita-se como a visão da identidade absoluta de começo e fim, o que significa, como visão da identidade absoluta de espírito e natureza, de deus e mundo, de sujeito e objeto.

“Chamou-se de intuição intelectual o ato porque aqui sujeito e objeto são o mesmo e não o diverso como na intuição sensível” (Schelling, G.n.P., p. 164).

Enquanto “ato”, a intuição intelectual é um termo essencialmente referido ao idealismo fichteano segundo o qual o “eu” deixa de ser assumido como puro fato empírico, como mera certeza imediatamente empírica, para se apresentar como ação, a ação de colocar a si mesmo como sujeito em tudo o que coloca como objeto. De acordo com o que já se observou, este sentido dinâmico e processual do “eu” não é, porém, capaz de explicar a passagem do “sujeito” para o “objeto”, e, em última instância, de deus para o mundo, uma vez que supõe o mundo exterior como mera consciência do eu, ou, mais exatamente, como mera dinâmica de conscientização de si mesmo do eu, do eterno colocar a si mesmo do eu em tudo o que coloca. Para Fichte, este ato do eu pelo qual o eu “produz” o mundo exterior mediante o processo de conscientização de si mesmo constitui a própria natureza do eu. Para Schelling, este é, na verdade, o grande limite do idealismo fichteano. Pois entendendo-se o ato do eu como sua natureza, exclui-se do eu a vontade de colocar a si mesmo em tudo o que coloca e, portanto, a sua liberdade. À medida que se exclui a liberdade de colocar-se, exclui-se, igualmente, a possibilidade de um não colocar-se, de um “não-ser” e onde se nega o não-ser nega-se, fundamentalmente, toda possibilidade de devir. O argumento de Schelling constrói-se na apreensão deste ato do eu como ato de liberdade e, por conseguinte, na inclusão essencial de um não como condição do devir de sujeito para objeto, do eu para o mundo exterior, de deus para o mundo. Pois nada impede que se suponha no processo de autoconsciência (precisamente por ser ato processual) um momento em que o eu não possua consciência de si, um momento em que o eu não se tenha colocado a si, enfim, uma região para além da consciência agora dada, cuja atividade gere produtos capazes de alcançar a consciência. Esta produção de uma esfera para além da consciência agora dada pode ser igualmente assumida como “mundo exterior”, como uma produção que se coloca ao lado da produção da consciência e que só pode, por sua vez, tornar-se consciente para o eu enquanto o que está ali presente juntamente com o eu (idem). A suposição de um passado transcendental do eu enquanto tentativa de explicação da “passagem” necessária do absoluto para o finito constitui a visão de base da intuição intelectual na identidade absoluta de sujeito-objetο, de sua in-diferença. Se o eu se define, com Fichte, como o ato de colocar a si mesmo, então o eu pressupõe, necessariamente, um fora de si. “Pois o eu sou é, de fato, apenas a expressão do próprio vir a si — portanto, este vir a si que se pronuncia no eu sou pressupõe um ter sido fora e antes de si. Pois somente o que antes era fora de si pode vir a si” (Idem, p. 170).

(SCHUBACK, Marcia S. C. O Começo De Deus. Petrópolis: Editora Vozes, 2021)

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