Schuback (1998:35-38) – “Eras do mundo” [Weltalter]

A filosofia tardia de Schelling, a sua filosofia “positiva” ou da liberdade está, de certa forma, ancorada no escrito inacabado que ele denominou de Eras do mundo. Tendo sido planejadas três grandes seções — passado, presente e futuroSchelling só redigiu, de fato, a primeira, “O passado”, em duas versões (1811 e 1813). A inconclusão desta obra “prometida” não se deve, todavia, à falta de sistematicidade que, segundo muitos, caracteriza a filosofia de Schelling e nem, tampouco, aos chamados “anos de silêncio” que viveu após a morte de Caroline, sua primeira esposa. As Eras do mundo consistem na grande obra da inconclusão e é esta filosofia da inconclusão, do devir, da constituição do mundo que se desdobrará em toda a sua reflexão posterior. Numa carta datada de 29 de janeiro (35) de 1819 ao poeta sueco Atterbom, que lhe solicitava o escrito para tradução, Schelling explica a inconclusão “uma vez que sempre senti não ser possível seguir, como gostaria, a totalidade de maneira tão plena e total, segundo minha compreensão1. As Eras do mundo significam, portanto, a movimentação de devir de mundo e totalidade. O tempo do mundo, o tempo da totalidade é a questão fundamental do Romantismo, que elegeu para sua narração a expressãoalma do mundo”. Este termo, que remonta, na verdade, a Platão, foi definido com toda acuidade poética por Novalis quando diz: “A alma do mundo, esta poderosa nostalgia do transitório”2. Esta nostalgia, este imperativo de retorno não fala, porém, de voltar atrás para o modo em que algo foi, mas sim de retornar ao que propicia a passagem, de retornar à condição de ser, ao não de si mesmo e que, somente assim compreendido, pode significar deixar vigorar o passado como origem e começo.

As Eras do mundo consistem na primeira grande reflexão sobre a base ontológica do devir, enquanto passo para um mundo que, formalmente, se enuncia como “nada é sem um passado”. A negatividade implícita neste passo delimita-se, mais precisamente, como um “contra si”, um “contrário a si mesmo”. Embora entenda-se, de início, passo para… como um passo ou para frente ou para trás, é preciso, contudo, lembrar que nenhum passo se faz, quer para frente, quer para trás, sem que se passe pelo seu contrário. Basta examinar com vagar toda a sequência de um saltador. Com isso se diz, positivamente, que tudo o que é, é em voltando-se contra si. Esta é a significação literal da palavra latina universum, usada, presumivelmente, pela primeira vez por Lucrécio em Da natureza ainda na fórmula primitiva de universio. Assim, pode-se mais uma vez converter a assertiva inicial de que nada é sem mundo em “nada é sem um universo”. Uni-versio define, pois, o mundo (36) na circunstância de sua origem, no voltar-se contra si mesmo do passado, da condição. O voltar-se contra si, dimensionado na experiência de uni-versio, fala, porém, de um voltar-se contra que é, mais propriamente, um encontrar-se em si mesmo, indicando, deste modo, a simultaneidade de um sim e de um não. Esta simultaneidade, para ser ao mesmo tempo, implica diferença, em contrário e, portanto, em luta. Não se trata, porém, de briga que se pretende resolver com o extermínio de um ou outro. Nada é sem universo indica, em contrapartida, que, em seu começo, tudo o que é jamais pode aniquilar o passado em sua dinâmica de passagens e ultrapassagens. É uma luta que se alimenta da indecisão de um e outro, ou seja, o começo só tem começo, só é vitorioso, à medida que preserva o que não o deixa ter começo. Schelling explicita esta luta da seguinte maneira: “O estado intermediário, a saber, de separação e união, que em nenhum dos dois advém decidido, é a luta3. Trata-se de uma luta que une e somente assim constitui, dá começo. O modo próprio da luta indecisa de começo e passado, do passo para além de si de maneira a retornar para si mesmo, é o que Schelling delimita, de modo esclarecedor, como atração (Anziehung). Em sua conotação existencial de atração entre os sexos, de atração criadora, o termo atração indica a essência desta luta indecisa como um modo de pertencimento. O modo onde pertencer depende de uma conquista, de um embate. A palavra alemã An-ziehung (a-tração) está, etimologicamente, ligada à criação (Zeugung). A atração criadora que define, ontologicamente, todo movimento de origem como copertinência de seu passado, em seu universo, releva um modo de ser que não se pronuncia nem como “ser-em” e nem como “ser-para” mas como um ser-junto-a (si mesmo) e um ser-antes-de (em si mesmo). Enquanto universio, a estrutura de remissão, a estrutura de mundo, determina-se, pois, para Schelling, como um ser-junto-a si mesmo em toda sua configuração possível (atração) que se (37) apresenta, irreversivelmente, como passado, como ser antes de ser (pertencimento). Com esta determinação, Schelling dispõe a base de uma metafísica da criação como projeto de compreensão dos entes em sua totalidade, partindo de uma crítica fundadora do sentido tradicional de criação.

  1. Cit. por Kuno Fischer em Schellings Leben, Werke und Lehre, Heidelberg, Carl Winters Universitätsbuchhandlung, 1902, p. 165.[]
  2. Novalis, “Die Lehrling zu Sais”, em Werke, Briefe, Dokumente, Heidelberg, Lambert Schneider, 1957, p. 268-269.[]
  3. Schelling, Weltalter, p. 249.[]

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