Francis Wolff (2011:7-9) – como defines o homem?

Um belo dia, no fim do século passado, o homem mudou. Considerado à luz da Psicanálise ou da Antropologia Cultural havia cerca de trinta anos, estava sujeito ao peso das estruturas, era determinado pelas condições sociais e familiares, governado por desejos inconscientes, dependente da história, da cultura e da língua. Era, em suma, um “sujeito sujeitado”. Esse homem das Ciências Humanas e Sociais que, em meados do século, florescia no paradigma estruturalista de Lévi-Strauss, Benveniste ou Lacan, e ainda triunfava em Bourdieu, esse homem desapareceu furtivamente da paisagem. Novas ciências falavam-nos de um novo homem. Eram as Neurociências, as Ciências Cognitivas, a Biologia da evolução. O homem por elas delineado nada tinha a ver com o anterior: estava sujeito ao peso da evolução das espécies, era determinado pelos genes e dependente do desempenho do cérebro. Era, em suma, um “animal como os outros”. Passara do “homem estrutural” ao “homem neuronal”, segundo o título do marcante livro de Jean-Pierre Changeux [L’Homme neuronal]. Havia-se, como dizem, “mudado de paradigma”. Sem dúvida, para definir as condições de nossa humanidade, continuava havendo psicanalistas, linguistas ou antropólogos, mas também, a partir de então, e cada vez mais, psicólogos evolucionistas, linguistas cognitivistas e paleoantropólogos.

A controvérsia entre eles, que ainda persiste, não é apenas teórica: estão em jogo questões práticas. Um exemplo: o autismo. Na época do “homem estrutural”, na França, o autismo era da competência da Psicanálise: era uma “doença mental” catalogada entre as “psicoses”. A fortaleza vazia, de Bruno Bettelheim, e sua noção de “mães geladeiras”, tomada de Léo Kanner (o inventor da síndrome de “autismo infantil precoce”), faziam autoridade. Os lacanianos propunham diversos conceitos descritivos ou explicativos que, todos eles, relacionavam o autismo a uma falha na relação com a mãe (com seu “significado”), a uma carência da simbolização primária etc. Uma ou duas gerações mais tarde, na era do “homem neuronal”, a Alta Autoridade em Saúde e a Federação Francesa de Psiquiatria, reportando-se à classificação das doenças pela Organização Mundial da Saúde, o CID 10, recomendaram, em outubro de 2005, que se passasse a considerar o autismo uma perturbação ligada ao desenvolvimento neurológico. Do mesmo modo, em dezembro de 2007, a Comunidade Europeia definiu o autismo como uma patologia de origem biológica. Não se trata apenas de uma mudança nosológica, nem sequer de uma mutação epistemológica. É também uma guinada “ética”, como mostra o parecer 102 do Comitê Consultivo Nacional de Ética, de novembro de 2007.1

Este é só um exemplo, e poderíamos citar muitos outros. Pois a nossa maneira de tratar os anoréxicos, de reprimir ou tratar a homossexualidade, ou justamente de não reprimi-la nem tratá-la, de educar os filhos ou de punir os delinquentes, de cuidar dos animais ou de medir o poder das máquinas, depende da definição que dermos ao homem. Trata-se de determinar quais seres são dotados de “direitos”. Alguns, ontem, no tempo do “homem estrutural”, denunciavam a ideia mesma de “direitos humanos” como um engodo destinado a mascarar a realidade das relações sociais ou a relatividade das culturas; outros, hoje, nos tempos do “homem neuronal”, não hesitam em estender os direitos para além das fronteiras da humanidade, em nome da comunidade natural que formamos com os animais. Ao mudar de humanidade, abalamos as nossas grades de avaliação moral e jurídica. Devemos ficar contentes? Devemos lamentar? Cumpre primeiro constatar, procurar as razões e medir os efeitos. Pois da resposta à perguntaO que é o homem?” depende, talvez, tudo o que podemos conhecer e tudo o que devemos fazer.

No fundo, é o que afirmava Kant. Para ele, as interrogações humanas fundamentais são as seguintes: “O que posso saber? (questão metafísica); “O que devo fazer?” (questão moral); “O que posso esperar?” (questão religiosa). Todas elas dependem, porém, de uma quarta: “O que é o homem?” Com efeito, “poderíamos, no fundo, reduzir as outras à questão antropológica, pois as três primeiras estão vinculadas à última”.2 Responder à questão do homem seria, por assim dizer, a melhor maneira, talvez a única possível, de responder às questões que o homem se coloca.

Levemos a sério essa observação. Meçamos, por exemplo, as consequências últimas da definição do homem como “criatura divina”. Se o homem for, essencialmente e nada além disso, uma criatura divina, então não só o sentido da existência humana se vê esclarecido, mas as três outras questões são praticamente resolvidas: sei que posso esperar a imortalidade e a salvação (ou a danação); sei também o que posso saber: tudo o que foi revelado por Deus aos homens em seus livros, por seus profetas ou por meio de suas diversas manifestações diretas; e sei também o que devo fazer e não fazer: tudo o que é ordenado ou proibido por Deus, por um de seus mediadores reconhecidos ou pelos escritos em que foram registradas as suas vontades (ou as que lhe atribuem os intérpretes legítimos) — desde a maneira de cozinhar as carnes ou de escolher o cônjuge até a maneira de tratar as mulheres, os ladrões, os heréticos ou os descrentes.

Outros exemplos, claro, são possíveis. Suponhamos que o homem seja definido como “um ser essencialmente histórico”. Não sabe ele então o que deve fazer: cumprir seu destino “desde sempre já” inscrito em sua essência? Não sabe também o que pode esperar: a realização dessa essência, por exemplo, a redenção de sua condição mortal, a ressurreição, a vitória definitiva do proletariado etc.? Outro exemplo, mais comum: se os seres humanos, os verdadeiros, são “o povo daqui”, em oposição àqueles sub-homens de lá — os negros, os bárbaros, os judeus, os ciganos —, ou se, mais geralmente, os únicos homens somos “nós”, simplesmente, “nós outros, o povo da tribo” (pois em muitas línguas se designa com a mesma palavra seu próprio grupo e a humanidade em geral), em oposição a “eles”, os outros, então esses seres vivos bípedes que balbuciam uma algaravia ridícula são com certeza animais daninhos, ou talvez divindades maravilhosas. (Enquanto o espanhol, recorda Lévi-Strauss, alternava investigações minuciosas e extermínios sistemáticos para saber se o indígena era um animal ou um homem — definido como “ser vivo dotado de alma imortal” —, o indígena buscava verificar se os brancos eram mesmo aqueles seres vivos imortais que pretendiam ser, submergindo os prisioneiros para ver se o cadáver estava ou não sujeito à putrefação).3 Diga-me, pois, como define o homem, eu lhe direi o que você crê poder saber, o que julga dever fazer e o que pode esperar.

  1. Ver adiante, Capítulo 10, p.256-8.[]
  2. Kant, Logique, p.25.[]
  3. Lévi-Strauss, “Race et histoire”. In:———-, Anthropologie structurale, II, p.384.[]

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