Francis Wolff (2011:10-13) – definições do humano, dependentes de exigências epistemológicas

Partamos não mais das teorias e práticas científicas, mas das definições filosóficas do homem. Perguntemos quais são as mais comuns e as mais influentes da História. Da Antiguidade chegou até nós a ideia de que o homem é um “animal racional”, isto é, um organismo vivo distinto de todos os outros, porque dotado de logos (linguagem? razão?). Essa ideia, que tem origem na filosofia de Aristóteles, encontrou de que se alimentar e se desenvolver no Estoicismo, depois atravessou os séculos, passou para os padres da Igreja, em especial Santo Agostinho, em cuja obra a fórmula assumiu uma feição claramente dualista – sendo a animalidade o destino do homem depois da queda e a racionalidade a marca do espírito; foi retomada na filosofia tomista, onde recuperou um sentido mais aristotélico – sendo a racionalidade entendida como a forma da animalidade; depois foi criticada por Descartes. Da Idade Clássica, e justamente [11] de Descartes, bem como de todos os que se inscreveram no rastro de sua filosofia, chegou-nos outra definição metafísica do homem, como sendo “a estreita união de uma alma e de um corpo”; quase poderíamos confundir essa definição com certas interpretações da anterior, com a diferença de que ela é claramente dualista, pois o principal problema dos cartesianos consistia em saber como o homem pode ser um todo, sendo a união de duas substâncias heterogêneas, uma alma pensante e um corpo espacial.

Essas são duas das definições mais marcantes da História da Filosofia. Têm origem em Aristóteles e Descartes, respectivamente o “inventor” da Metafísica na Antiguidade e seu reinventor moderno.

Mas Aristóteles e Descartes não são só metafísicos. São também cientistas, físicos, ainda que evidentemente em sentidos diferentes: a Ciência Natural fundada e praticada por Aristóteles na Antiguidade (essencialmente o que chamaríamos de Biologia, em especial a Zoologia) é muito diferente da fundada e praticada por Descartes na Idade Clássica (a Física Matemática). E, porém, inegável que eles se consideravam pelo menos tanto “físicos” quanto filósofos ou metafísicos. A tese que queremos defender a respeito deles, ou melhor, a respeito das famosas concepções do homem que eles desenvolvem em suas filosofias é que, para além de seu sentido inegavelmente metafísico, ao qual em geral foram confinadas, tais definições só podem ser compreendidas no âmbito de seus respectivos projetos epistemológicos, ou seja, da revolução nas Ciências Naturais que elas pretendiam fundar. Dito inversamente: a Ciência antiga da natureza concebida por Aristóteles baseou-se em certa concepção do homem – aquela que a tradição reteve por meio da fórmula simplificada “animal racional” —, que era para ele o objeto por excelência do conhecimento científico. Do mesmo modo, a Ciência moderna da natureza que Descartes se propunha fundar obteve garantia na ideia de que o homem era “a estreita união de uma alma e de um corpo”, os quais representavam para ele os dois polos, respectivamente subjetivo e objetivo, da nova Física. Em ambos os casos, essas concepções do homem, correlatos necessários de um processo científico, tinham consequências morais e políticas: Aristóteles e Descartes, eles mesmos, as consideravam em sua filosofia, outros depois deles as desenvolveram. O animal racional da Antiguidade e a união da alma e do corpo da Idade Clássica se nos apareceram, portanto, como duas outras “figuras do homem”, no sentido que damos a esta expressão: o entrelaçar-se de exigências científicas e morais.

Desejamos, pois, mostrar que, nesses quatro casos, existe uma estreita correlação entre certas definições filosóficas do homemanimal racional, união de uma alma e de um corpo, sujeito sujeitado, animal como os outros – e certas [12] grandes mutações na ordem do saber – nascimento da Ciência Natural na Antiguidade, nascimento da Física moderna na Idade Clássica, unificação estruturalista das Ciências Humanas no século XX, naturalização dos métodos de conhecimento do homem no século XXI.

Parece, porém, pelo menos à primeira vista, que essa correlação é inversa nas duas primeiras e nas duas últimas figuras. No caso de Aristóteles e Descartes, as definições são explícitas. Elas aparecem num discurso filosófico que parece ter sua autonomia, determinadas por meio de razões essencialmente metafísicas e sem vínculo direto com exigências científicas. O que propomos é retornar para sua razão implícita de ser: um projeto científico de conhecimento da natureza. Nessas duas figuras, a definição filosófica do homem funda ou pelo menos garante o projeto científico, ou seja, a adequação da teoria, o valor do método ou a exatidão dos conhecimentos. É porque o homem é X que tal ciência está garantida. Nas duas outras figuras, as do homem estrutural ou neuronal, parece que tudo se inverte. As definições filosóficas são implícitas, pois as Ciências Humanas se pretendem independentes de toda concepção “metafísica” do homem, e são determinadas por meio de razões propriamente positivas, apenas científicas. O que propomos é “tornar a descer” à definição do homem em que, implicitamente, elas convergem. Neste caso, é, portanto, o projeto científico (a teoria defendida, o método usado, os conhecimentos adquiridos) que funda ou pelo menos garante certa definição do homem. É porque tal grupo de ciências garante que o homem é X. As coisas apresentam-se, portanto, assim: nas duas primeiras figuras, uma definição filosófica do homem permite fundar um projeto científico, ao passo que, nas duas últimas, é a definição filosófica do homem que é cientificamente fundada. A correlação parece mesmo invertida.

Será, porém, assim tão simples? No caso das duas primeiras figuras, ao contrário de sua autonomia aparente no discurso filosófico, as definições do homem são, na realidade, dependentes de exigências epistemológicas. Mas é possível também que, em contrapartida, essas figuras do homem permitam a esses filósofos fundarem seu projeto científico: certa figura do homem era necessária à sua concepção da Ciência. O mesmo acontece, muta-tis mutandis, nas duas últimas figuras: os discursos científicos que parecem determinar, com plena autonomia, os contornos singulares de certa figura do homem, serão eles tão independentes como pretendem de uma figura do homem colocada apriori? No fundo, devemos contentar-nos em dizer – por exemplo – que a Sociologia ressalta os traços irredutivelmente sociais da humanidade? Não podemos também afirmar, inversamente, que ela deve colocar apriori o caráter social de certas ações ou instituições para legitimar [13] seus próprios métodos de investigação e se legitimar a si mesma? Outro exemplo: devemos contentar-nos em dizer que as Ciências Cognitivas mostram que o pensamento humano pode ser descrito como uma sequência de operações lógicas efetuadas sobre símbolos abstratos? Não é lícito supor que é preciso representar-se o pensamento humano como um cálculo para poder justificar o paradigma cognitivista? Qual é o primeiro e qual funda o outro? A ideia que fazemos do homem ou a ideia do que deva ser o conhecimento? Contentemo-nos, por enquanto, em colocar esta pergunta, que está no centro de nossa primeira parte.

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