Ferreira da Silva (2010:76-78) — imaginação

Em todos os campos das formações culturais, assistimos a essa transfiguração do simplesmente dado a uma livre transformação do material encontrado. Não só, entretanto, nas produções objetivas da cultura deparamos com esse trabalho da fantasia, mas, no mesmo grau, vislumbramos esse poder na vida psicossomática. O nosso corpo, enquanto aparato expressivo fisionômico, o que é senão o teatro de uma contínua atividade imaginativa?

As mãos e o rosto oferecem a esse respeito oportunidades para desenvolvimentos dramáticos e expressivos, os mais surpreendentes. A fantasia das mãos e do rosto, a fantasia coreográfica do nosso corpo, constitui a livre disponibilidade para comunicações sociais e culturais inacessíveis a outros tipos de linguagem. Podemos dizer em princípio que nada se furta à profunda operação formativa da imaginação, constituindo essa o poder soberano da existência. O que denominamos liberdade, a noção e a realidade de autodeterminação da consciência, está essencialmente ligada à facultas imaginandi. É, no fundo, a imaginação que desdobra diante de nós as diversas alternativas de uma dada situação, o território opcional onde pode aprofundar-se a nossa escolha. O domínio de jogo das nossas possibilidades de ação nasce da prospecção operada pela consciência e pela fantasia das diversas fases e aspectos de uma dada conjuntura. Ninguém pode ser livre enquanto simples coisa solidária e consecutiva em relação ao conjunto do dado. Ser livre significa um ir-além-de-si-mesmo, um dépassement do conjunto do já realizado e do já dado. Ora, esse dépassement nasce da estrutura projetivo-imaginativa da consciência ou, como afirma Herman Glockener, da “idealidade” ou da referência aos possíveis do nosso “Eu”.1 O próprio conhecimento [176] das coisas que nos rodeiam, a própria percepção ou representação dos objetos circundantes nos remete a uma contínua abertura de virtualidades de conhecimentos e ação, na prospecção imaginativa das ações possíveis que se estampam e delineiam no perfil do percebido. Nesse sentido as próprias coisas já são “imagens” enquanto nos devolvem continuamente, como imagens refletidas e na forma de meios e utensílios, às potencialidades dormentes de uma ação; e quem diz ação na escala humana refere-se ao cumprimento de finalidades ou teleologias bosquejadas pelo Eu cultural. A potência criadora da imaginação que transforma o nosso corpo num aparato semântico, transforma uma acepção universal e total, o universo das coisas ou pré-coisas, num universo apropriado e possuído pelo Espírito. A imaginação é nesse sentido um processo de transcendência e ação. “Todo o nosso desenvolvimento”, afirma Nietzsche, “é percebido por uma imagem ideal, produto de nossa imaginação; a evolução verdadeira é-nos desconhecida. Nós somos constrangidos a traçar essa imagem”. 2 Na concatenação profunda do pensamento de Nietzsche, a potência da imaginação criadora representa um papel filosófico primordial. A vontade de poder, realidade última das coisas, “fato último ao qual nós podemos aceder”, é para ele uma vontade de plasmação artística, é um aperfeiçoamento total das coisas pela vis poetica, pela subjetividade artístico-metafísica.

Essa força não é para ele um apanágio humano, não está centrado no homem, como podemos depreender desses enunciados do filósofo: “A subjetividade do universo não é uma subjetividade antropomórfica, mas cósmica, nós somos os personagens que passam no sonho de um deus e que se tornam o que ele sonha”. Essa subjetividade não poderia ser, segundo Nietzsche, vinculada ao eu humano, desde que o próprio sujeito, o Ego, a alma, não são para ele senão ficções, criações, representações fluidas no vir a ser histórico. Para Nietzsche o [177] próprio Eu (Ich, Selbst) é posto pelo pensamento ou imaginação macroscópica que interpreta e projeta o mundo.

  1. Cf. “Zum Freiheits Problem, Meditationen.” ln: Zeitschrifffur Philosophische Forschung, Band XIV, Heft 4, oktober-dezember 1960, p. 553-570. (N. A.)[]
  2. Nietzsche, La Volonté de Puissance: I. Texto de F. Wurzbach. Trad. de G. Bianquis. Paris, Gallimard, 1942. (N. A.)[]

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