A verdade da história e a verdade individual e interior não coincidem, crescendo em direções diversas. A categoria da história macroscópica é a categoria da quantidade, da eficácia a todo o custo, da forma arrebatadora, enquanto que o domínio da interioridade subjetiva não é precedido pelos clarins da história mundial. Em resumo, o homem subjetivo do pensador dinamarquês não é um frequentador do teatro da história mundi, não é [462] uma personalidade genial, nem um grande do século, mas unicamente um grande diante de Deus.
E assim ele se propõe a desmontar esse cenário de papelão da história universal, e desarticular o processo global em proveito da pontualidade dos destinos individuais ou da verdade subjetiva. A história assim se apresenta como uma ficção criada pela mente construtiva dos eruditos e professores, ao arrumarem o infinito dos fatos acontecidos numa tela fantástica e irreal. “No processo da história mundial”, diz Kierkegaard, “os mortos não são chamados à vida, mas unicamente a uma vida objetiva e fantástica, e Deus se comporta num sentido fantástico como a alma desse processo”. No processo da história o homem aliena a sua autoconsciência existencial, sacrifica suas possibilidades concretas e intransferíveis em tributo a um ídolo espectral e ilusório, a história. Não é aí que devemos descobrir quais as nossas tarefas existenciais próprias e qual o código ético que devemos seguir. A ética é um assunto de interioridade, e de realização personalíssima. Para o homem interior o que importa é a palavra de Deus, é o significativo em e para Deus e não o genialismo da história mundial com sua tragicidade estética e teatral. A verdade subjetiva pregada por Kierkegaard implica portanto num transcender a forma de exterioridade da história e a história como tribunal do mundo. Para o homem subjetivo, que está em relação com o Eterno, a história e o tempo constituem uma sombra falaz da eternidade, um estar-fora-de-si, um não-ser. O homem kierkegaardiano vive no instante, é um ser concreto e existente, que não é o homem em geral, mas sim esse homem singular, único, concentrado em si mesmo. Mas esse homem deve conquistar-se sempre a partir da exterioridade abstrata do das Man, do homem em geral, do homem decaído na banalidade com sua concepção própria das coisas e da vida. O homem em geral, em nosso tempo, é o homem massa, a plebe, o poder abstrato da omnitude e todas as formas de nivelamento e abastardamento da verdade individual. Em seu livro Crítica da Época Presente, Kierkegaard aduz ideias muito afins às de Nietzsche em relação ao fenômeno do nivelamento e [463] do ressentimento. As forças que colimam o aplatissement universal do espírito em níveis cada vez mais inferiores nutrem-se do ressentimento por tudo que é único e excelso. O nivelamento é, segundo Kierkegaard, a supremacia absoluta da abstração sobre o individual, da categoria do gênero sobre a categoria do indivíduo e em geral o prestígio incontestado da ideia de massa e igualdade matemática. Entretanto, o nivelamento é a outra face da falta de paixão e de caráter do homem contemporâneo. Em um de seus livros, Kierkegaard afirmou que o Absoluto separa, destaca, pontualiza em consonância aliás com sua doutrina da verdade subjetiva. Pelo contrário, o predomínio desse “espantoso nada” do nivelamento da massa, a vitória do Público, significa a não-verdade e a não-existencialidade da vida atual. Esse público e essa massa é constituída pelos homens nos momentos em que não são nada, nos instantes, dias e anos em que renegam a sua consciência de si e se põem como inermes fantasmas. A dialética existencial se desenvolve aqui como um movimento vis-à-vis do poder abstrato do nivelamento. O existencialismo seria o único antídoto filosófico à invasão do nivelamento e do comportamento multitudinário. Esse comportamento não é sinal de força, paixão e desenvolvimento, mas sim de astenia, indolência e irresponsabilidade. O nivelamento é o crescimento do objeto, da forma objetiva de ser, da omnitude, representa o adelgaçamento ontológico e a nulidade do homem massa. Possuído pelo fantasma do homem objetivo, o homem rodopia e erra cada vez mais longe de si mesmo, cada vez mais alienado a si, no rebanho devorador da multidão. O seu pensamento é o pensamento de todos, o seu agir é o agir de todos e assim o seu sentir. Mas esse pensar, agir e sentir não têm qualquer verdade, é um poder abstrato, desde que toda a verdade reside na subjetividade. Esse é o homem sem Absoluto, o homem infinitamente leve, o homem sombra, o homem nada. Ao se conquistar sobre o público, a plebe, a massa e a omnitude, a consciência volta a adquirir o Absoluto e volta a relacionar-se com Deus que é também interioridade e subjetividade em grau infinito. Essa conquista não é uma luta fora de mim, uma luta com os outros, mas sim uma luta em mim desde que esse poder do homem objetivo se [464] aninha em cada um de nós. O transcender da subjetividade subjetivante é um ir além da forma de omnitude e da objetividade que se expressa continuamente no meu agir e pensar. A verdade ou a subjetividade como verdade é o resultado de um salto que nos devolve a nós mesmos, que nos devolve porque nos conduz às origens, ou à Origem, a Deus, ao não objeto Absoluto. Esse tornar-se subjetivo é para o pensador dinamarquês uma conquista laboriosa, um devir contínuo, porque todo o parar é um cair em poder da abstração e do objeto. A verdade subjetiva é em consequência um militar, um transcender que só existe em ato. A área conquistada somos nós mesmos, mas nós só existimos no salto, na escolha que nos constitui. Essa é a doutrina da verdade, segundo Kierkegaard.