Canguilhem (NP:35-36) – doença

Carvalho Barrocas

A invalidade da opinião do doente em relação à realidade de sua própria doença é um argumento de peso em uma recente teoria da doença; teoria, às vezes, um pouco imprecisa, porém cheia de sutilezas, concreta e profunda, a teoria de R. Leriche, que nos parece necessário expor e examinar, depois da teoria precedente, da qual, em certo sentido, ela é um prolongamento, mas da qual se afasta nitidamente em outros pontos. “A saúde, diz Leriche, é a vida no silêncio dos órgãos” (73, 6.16-1). Inversamente, a “doença é aquilo que perturba os homens no exercício normal de sua vida e em suas ocupações e, sobretudo, aquilo que os faz sofrer” (73, 6.22-3). O estado de saúde, para o indivíduo, é a inconsciência de seu próprio corpo. Inversamente, tem-se a consciência do corpo pela sensação dos limites, das ameaças, dos obstáculos à saúde. Tomando essas afirmações em seu sentido pleno, elas significam que a noção de normal que se tem depende da possibilidade de infrações à norma. Estamos, enfim, diante de definições que não são absolutamente verbais, em que a relatividade dos termos opostos é correta. O termo primitivo nem por isso é positivo, e o termo negativo nem por isso é nulo. A saúde é positiva, mas não é primitiva; a doença é negativa, mas sob a forma de oposição (perturbação), e não de privação.

No entanto, apesar de ulteriormente não terem sido feitas reservas nem correções à definição de saúde, a definição de doença foi imediatamente retificada. Pois essa definição da doença é a definição do doente, e não a do médico. Apesar de válida do ponto de vista da consciência, ela não o é do ponto de vista da ciência. Com efeito, Leriche demonstra que o silêncio dos órgãos não equivale necessariamente à ausência de doença; que existem no organismo lesões ou perturbações funcionais que, durante muito tempo, são imperceptíveis para aqueles cuja vida tais perturbações estão colocando em perigo. O atraso com que muitas vezes sentimos nossos distúrbios internos é o preço que pagamos pela prodigalidade com a qual nosso organismo foi construído, tendo em excesso todos os tecidos: mais pulmão do que, em última análise, é necessário para respirar, mais rim do que é necessário para segregar a urina sem chegar à intoxicação etc. A conclusão é que “se quisermos definir a doença será preciso desumanizá-la” (73, 6.22-3); e, exprimindo-se mais brutalmente ainda, que, “na doença, o que há de menos importante, no fundo, é o homem” (73, 6.22-4). Portanto, não são mais a dor ou a incapacidade funcional e a enfermidade social que fazem a doença, e sim a alteração anatômica ou o distúrbio fisiológico. A doença ocorre no nível do tecido e, nesse sentido, não pode haver doença sem doente. Tomemos como exemplo um homem cuja vida — sem incidente patológico por ele conhecido — tenha sido interrompida por um assassinato ou um acidente. Segundo a teoria de Leriche, se uma autópsia para fins médico-legais revelasse um câncer do rim ignorado por seu portador já falecido, deveriamos concluir que havia uma doença, apesar de não ser possível atribuída a pessoa alguma: nem ao cadáver —já que um morto não é mais capaz de ter doenças — nem, retroativamente, ao vivo de outrora, que a ignorava, tendo terminado sua vida antes do estágio evolutivo do câncer em que, segundo as probabilidades clínicas, as dores teriam enfim criado o mal.

A doença, que jamais tinha existido na consciência do homem, passa a existir na ciência do médico. Ora, achamos que não há nada na ciência que antes não tenha aparecido na consciência e que, especialmente no caso que nos interessa, é o ponto de vista do doente que, no fundo, é verdadeiro. E eis o motivo: médicos e cirurgiões dispõem de informações clínicas e utilizam também, às vezes, técnicas de laboratório que lhes permitem saber que estão doentes pessoas que não se sentem doentes. É um fato. Mas um fato a ser interpretado. Ora, é unicamente por serem os herdeiros de uma cultura médica transmitida pelos clínicos do passado que os médicos de hoje em dia podem se adiantar e ultrapassar em perspicácia clínica seus clientes habituais ou ocasionais. Pensando bem, sempre houve um momento em que a atenção dos médicos foi atraída para certos sintomas, mesmo que unicamente objetivos, por homens que se queixavam de sofrer ou de não serem normais, isto é, idênticos a seu passado. E se, hoje em dia, o conhecimento que o médico tem a respeito da doença pode impedir que o doente passe pela experiência da doença, é porque outrora (35) essa mesma experiência chamou a atenção do médico, suscitando o conhecimento que hoje tem. Sempre se admitiu, e atualmente é uma realidade incontestável, que a medicina existe porque há homens que se sentem doentes, e não porque existem médicos que os informam de suas doenças. A evolução histórica das relações entre o médico e o doente na consulta clínica não muda em nada a relação normal permanente entre o doente e a doença.

Essa crítica pode ser proposta com tanta audácia porque Leriche, reconsiderando o que suas primeiras afirmações tinham de um pouco extremado, a confirma em parte. Distinguindo cuidadosamente o ponto de vista estático do ponto de vista dinâmico, em patologia, Leriche reivindica para o segundo uma completa primazia. Aos que identificam doença com lesão, Leriche objeta que o fato anatômico deve ser considerado, na realidade, como “segundo e secundário: segundo, por ser produzido por um desvio originariamente funcional da vida dos tecidos; secundário, por ser apenas um elemento da doença, e não o elemento dominante” (73, 6.76-6). Em consequência disso, é a doença do ponto de vista do doente que, de modo bastante inesperado, volta a ser o conceito adequado de doença, mais adequado, em todo caso, que o conceito dos anatomopatologistas. “Impõe-se a noção de que a doença do doente não é a mesma que a doença anatômica do médico. Uma pedra em uma vesícula biliar atrófica pode não provocar sintomas durante anos e, por conseguinte, não criar uma doença, quando, no entanto, há um estado anatomopatológico… Sob as mesmas aparências anatômicas, pode-se ser ou não ser doente… Não se deve encobrir a dificuldade dizendo simplesmente que há formas silenciosas e larvadas de doenças: isto não passa de verbalismo. A lesão talvez não baste para constituir a doença clínica, a doença do doente. Esta é algo diverso da doença do anatomopatologista” (73, 6.76-6). No entanto, convém não atribuir a Leriche mais do que ele está disposto a aceitar. Com efeito, o que ele entende por doente é muito mais o organismo em ação, em funções, do que o indivíduo consciente de suas funções orgânicas. O doente, nessa nova definição, não é exatamente o doente da primeira, o homem concreto, consciente de uma situação favorável ou desfavorável na existência. O doente deixou de ser uma entidade de anatomista, mas continua sendo uma entidade de fisiologista, pois Leriche esclarece: “Essa nova representação da doença leva o médico a entrar em contato mais estreito com a fisiologia, isto é, com a ciência das funções, a tratar de fisiologia patológica tanto ou mais que de anatomia patológica” (73, 6.76-6). Assim, a coincidência da doença com o doente ocorre na ciência do fisiologista, mas não ainda na consciência do homem concreto. E, no entanto, essa primeira coincidência nos basta, pois o próprio Leriche nos fornece os meios de, por meio dela, obter a segunda.

Original

[Excerto de CANGUILHEM, Georges. O Normal e o Patológico. Tr. Maria Thereza Redig de Carvalho Barrocas. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2009, p. 35-36]

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