- Bento Prado
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Bento Prado
Qual é essa intuição? Se o filósofo não pôde formulá-la, não seremos nós que o conseguiremos. Mas o que conseguiremos recuperar e fixar é uma certa imagem intermediária entre a simplicidade da intuição concreta e a complexidade das abstrações que a traduzem, imagem fugidia e evanescente que assombra, despercebida talvez, o espírito do filósofo, que o segue como se fosse sua [126] sombra através de todas as voltas e reviravoltas de seu pensamento e que, se não é a própria intuição, dela se aproxima bem mais que a expressão conceitual, necessariamente simbólica, à qual a intuição deve recorrer para fornecer “explicações”. Olhemos bem essa sombra: adivinharemos a atitude do corpo que a projeta. E se nos esforçarmos no sentido de imitar essa atitude, ou antes, de nela nos inserirmos, iremos rever, na medida do possível, aquilo que o filósofo viu.
O que caracteriza primeiro essa imagem é a potência de negação que traz em si. Vocês se lembram como procedia o demônio de Sócrates: antes bloqueava a vontade do filósofo em um dado momento e o impedia de agir do que prescrevia o que lhe cabia fazer. Parece-me que a intuição frequentemente se comporta, em matéria especulativa, como o demônio de Sócrates na vida prática; e pelo menos sob essa forma que principia, sob essa forma também que continua a dar suas manifestações as mais nítidas: ela proíbe. Diante de ideias correntemente aceitas, de teses que parecem evidentes, de afirmações que haviam passado até então por científicas, assopra no ouvido do filósofo a palavra: Impossível. Impossível, ainda mesmo que os fatos e as razões pareçam te convidar a crer que isso seja possível e real e certo. Impossível, porque uma certa experiência, confusa, talvez, mas decisiva, fala contigo através de minha voz, e diz que ela é incompatível com os fatos que se alegam e as razões que são dadas, e que, desde então, esses fatos devem ter sido mal observados, esses raciocínios devem ser falsos. Força singular, essa potência intuitiva de negação! Como foi possível que não atraísse mais a atenção dos historiadores da filosofia? Acaso não é visível que a primeira manobra do filósofo, quando seu pensamento ainda está pouco [127] seguro e nada há de definitivo em sua doutrina, consiste em rejeitar certas coisas definitivamente? Mais tarde, poderá variar naquilo que afirmar; não variará muito naquilo que nega. E se varia naquilo que afirma, será ainda em virtude da potência de negação imanente à intuição ou à sua imagem. Ter-se-á deixado ir preguiçosamente na dedução de consequências segundo as regras de uma lógica retilínea; e eis que, de repente, diante de sua própria afirmação, experimenta o mesmo sentimento de impossibilidade que de início lhe havia advindo diante da afirmação de outrem. Com efeito, tendo deixado a curva de seu pensamento para seguir reto pela tangente, tornou-se exterior a si mesmo. Volta para dentro de si quando volta à intuição. Dessas saídas e desses retornos são feitos os ziguezagues de uma doutrina que “se desenvolve”, isto é, que se perde, se reencontra e se corrige indefinidamente a si mesma.
Libertemo-nos dessa complicação, remontemos para a intuição simples ou pelo menos para a imagem que a traduz: ao fazê-lo, vemos a doutrina libertar-se das condições de tempo e de lugar das quais parecia depender. Sem dúvida, os problemas dos quais o filósofo se ocupou são os problemas que se punham em seu tempo; a ciência que utilizou ou criticou era a ciência de seu tempo; nas teorias que expõe, poderemos até mesmo reencontrar, se ali as procurarmos, as ideias de seus contemporâneos e de seus precursores. Como podería ser de outra forma? Para fazer compreender o novo, por força há que exprimi-lo em função do antigo; e os problemas já postos, as soluções que lhes haviam sido fornecidas, a filosofia e a ciência do tempo no qual ele viveu, foram, para cada grande pensador, a matéria que ele era obrigado a utilizar para dar uma forma concreta a seu pensamento. [BERGSON. Henri. O Pensamento e o Movente. Tr. Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 125-127]