Bergson (EDIC) – os atos livres

Assim compreendidos, os actos livres são raros, mesmo por parte dos que mais têm o costume de se observar e de raciocinar sobre o que fazem. Mostrámos que nos apercebíamos, a maioria das vezes, por refração através do espaço, que os nossos estados de consciência se solidificavam em palavras, e que o nosso eu concreto, o nosso eu vivo, se recobria com uma crosta exterior de factos psicológicos nitidamente desenhados, separados uns dos outros, por consequência fixos. Acrescentámos que, para a comodidade da linguagem e a facilidade das relações sociais, tínhamos todo o interesse em não abrir esta crosta e em admitir que ela desenha exactamente a forma do objecto que cobre. Agora, diremos que as nossas acções diárias se inspiram muito menos nos nossos próprios sentimentos, infinitamente móveis, do que em imagens invariáveis a que estes sentimentos aderem. De manhã, quando soa a hora a que por hábito me levanto, poderia receber essa impressão ξὺν ὅλη τῆ ψυχῆ 1, segundo a expressão de Platão; poderia permitir-lhe fundir—se na massa confusa das impressões que me ocupam; talvez então ela não me determinasse a agir. Mas quase sempre esta impressão, em vez de abalar toda a minha consciência como uma pedra que cai na água de um tanque, se limita a agitar uma ideia, por assim dizer, solidificada à superfície, a ideia de me levantar e de me entregar às minhas ocupações habituais. Esta impressão e esta ideia acabaram por se ligar uma à outra. Por isso, o acto segue a impressão sem que a minha personalidade nisso se interesse: sou aqui um autônomo consciente, e sou-o porque tenho toda a vantagem nisso. Ver-se-ia então que a maior parte das nossas acções diárias se executam assim e que, graças à solidificação, na nossa memória, de certas sensações, de certos sentimentos, de certas ideias, as impressões de fora provocam em nós movimentos que, conscientes e até inteligentes, se assemelham, sob muitos aspectos, a actos reflexos. É a estas acções muito numerosas, mas insignificantes para a maioria, que a teoria associacionista se aplica. Constituem, reunidas, o substrato da nossa actividade livre, e desempenham em relação a esta actividade o mesmo papel que as nossas funções orgânicas relativamente ao conjunto da nossa vida consciente. Concederemos, aliás, ao determinismo que abdicamos muitas vezes da nossa liberdade em circunstâncias mais graves e que, por inércia ou moleza, deixamos que este mesmo processo local se realize, quando toda a nossa personalidade deveria, por assim dizer, vibrar. Quando os nossos amigos mais seguros concordam em nos aconselhar um acto importante, os sentimentos que exprimem com tanta insistência vêm pôr-se à superfície do nosso eu, e aí se solidificam como as ideias, de que há pouco falávamos. Pouco a pouco, formarão uma crosta espessa que cobrirá os nossos sentimentos pessoais; julgávamos agir livremente, e só quando mais tarde refletirmos nisso é que reconheceremos o nosso erro. Mas por isso, no momento em que o acto se vai realizar, não é raro que uma revolta se produza.

É o eu de baixo que sobe à superfície. É a crosta exterior que estala, cedendo a um irresistível impulso. Operava-se, pois, nas profundezas deste eu, e sob estes argumentos muito razoavelmente justapostos, uma efervescência e, por isso mesmo, uma tensão crescente de sentimentos e de ideias, não inconscientes, sem dúvida, mas que não queríamos advertir. Refletindo bem, acolhendo cuidadosamente as nossas recordações, veremos que nós próprios formámos essas ideias, vivemos esses sentimentos, mas que, por uma inexplicável repugnância em querer, os tínhamos repelido para as profundidades obscuras do nosso ser, sempre que emergiam à superfície. E é por isso que em vão procuramos explicar a nossa brusca mudança de resolução pelas circunstâncias aparentes que a precederam. Queremos saber por que razão nos decidimos, e descobrimos que o fizemos sem razão, talvez até contra toda a razão. Mas aí reside, em certos casos, precisamente a melhor das razões. A acção efectuada já não exprime então tal ideia superficial, quase exterior a nós, distinta e fácil de exprimir: corresponde ao conjunto dos nossos sentimentos, dos nossos pensamentos e das nossas aspirações mais íntimas, à concepção particular da vida que é o equivalente de toda a nossa experiência passada, em síntese, à nossa ideia pessoal da felicidade e da honra. Por isso, foi um erro, para provar que o homem é capaz de escolher sem motivo, ir buscar exemplos a circunstâncias normais e até indiferentes da vida. Mostrar-se-ia facilmente que estas acções insignificantes estão relacionadas com algum motivo determinante. É nas circunstâncias solenes, quando se trata da opinião que de nós daremos aos outros e, sobretudo, a nós próprios, que escolhemos a despeito do que se convencionou chamar um motivo; e esta ausência de toda a razão tangível é tanto mais flagrante quanto mais formos profundamente livres. (EDIC)

  1. Autrement dit : « avec toute l’âme » ; c’est ainsi qu’il faut aller vers la vérité, selon Socrate dans La République de Platon (VII, 518c).[]

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