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arete (Caeiro)

domingo 1º de setembro de 2024

  

CAEIRO, António de Castro  . A arete como possibilidade extrema do humano. Fenomenologia da práxis em Platão e Aristóteles. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002., p. 17-19

Esta dissertação tem como objectivo a exposição do horizonte da situação humana (πρᾶξις) por forma a nele se poder encontrar e realizar a sua possibilidade extrema, a excelência (άρετή). É nessa conformidade que pretendemos promover a identificação e o isolamento do sentido da excelência (άρετή), em geral, e da excelência (άρετή) da situação humana (πρᾶξις), em especial, tanto em Platão quanto em Aristóteles. A execução dessa tarefa faz-se pelo constante contraste entre o horizonte da situação humana (πρᾶξις) e o horizonte de acontecimento da natureza (φύσις). O contraste apurado não deixa de reconhecer uma mesma forma de acesso comum a ambos. Esta forma de acesso habitual às coisas não deixa ver olhos nos olhos o sentido nuclear que está em causa. Por isso, cumpre num primeiro momento identificar a inautenticidade do acesso habitual a estes dois horizontes. A tematização e o desvelamento da situação humana (πρᾶξις) são feitos em contraposição com a perspectiva que tem a natureza (φύσις) em vista.

Decorrente do confronto com o fenômeno da πρᾶξις e da sua possibilidade extrema, a ἀρετή, é necessário estabelecer a base fenomenal desta constelação problemática. É o que faremos em duas frentes, a partir dos diálogos Protágoras   e Górgias  , onde se procuram identificar e isolar, respectivamente, os desdobramentos possíveis da possibilidade extrema prática da ἀρετή, a perseverança constante da coragem (άνδρεία) e da justiça justificadora (δικαιοσύνη-σωφροσύνη). Em ambos os desdobramentos, estamos confrontados com possibilidades extremas com as quais a existência humana se debate.

São essas possibilidades extremas que apelam para uma resolução das situações críticas em que de cada vez nos achamos e encontramos. Em ambos os casos, a possibilidade da excelência (αρετή) é dada por uma convocação desse sentido, levada a cabo em situações críticas e aparentemente incontomáveis. Experimentadas na sua não anulabilidade.

A excelência (αρετή) enquanto perseverança corajosa (άνδρεία) é a possibilidade única que existe para autenticamente resolvermos uma situação destrutiva e perversiva (κακία) provocada pelo medo terrível (φοβός, δέος) que a vida nos pode trazer, em que ela nos pode fazer cair. A excelência (αρετή), enquanto justiça justificada (δικαιοσύνη), é a possibilidade única a escolher, quando nos encontramos na situação destruidora e perversa provocada pela presença do desejo de prazer (ἡδονής, επιθυμία) na nossa existência. O desejo de prazer pelo prazer só é superado na nossa existência quando escolhemos a possibilidade que lhe dá sentido e o permite ultrapassar, não nos deixando sucumbir ao efeito surtido pela sua ação.

Tanto a perseverança corajosa (άνδρεία) como a justiça justificadora (δικαιοσύνη) ou o olhar a salvo do coração (σωφροσύνη) são as completudes (τέλη) em vista das quais é possível dar o sentido e a direção que nos orientam em situações aparentemente sem sentido, bloqueadas pela crise. Elas correspondem a uma outra forma de olhar que transcende a mera patologia do instante, cuja lógica decide o para sempre da qualidade do instante vivido. A excelência (αρετή) corresponde ao olhar para o único objetivo que nos pode dar um projeto de vida que resolve a situação hermética de toda e qualquer afectação patológica.

A presentificação das situações patológicas de sofrimento (λύπη) e de prazer (ἡδονή) permite-nos fazer a identificação da estrutura prática, localizando-a numa dimensão irreal. Uma tal presentifiçação permite-nos igualmente perceber que a eclosão da excelência (άρετή) se verifica num plano atemático que não está dado à partida. O ponto de vista que põe a descoberto a excelência (άρετή) da situação humana (πρᾶξις) ultrapassa a potência de toda e qualquer aparição patológica e procura dar compreensão às situações de cada vez criadas. As nossas análises permitem a concretização fenomenal do sentido da excelência (άρετή) em Platão como sendo organização estrutural (τάξις) e ordenação constitutiva (κόσμος).

Da interpretação e compreensão da excelência (άρετή) como organização estrutural (τάξις) e ordenação constitutiva (κόσμος) resulta a crítica aristotélica. E que esta interpretação tem como resultado um olhar técnico sobre a realidade prática, isto é, segundo Aristóteles uma redução de todos os horizontes de ser, quaisquer que eles sejam, a um ideal que vê os seus temas na sua diferença. Quer dizer, em última análise esbatem-se os contornos dos horizontes físico e prático com vista à constituição de um acesso aos entes enquanto tais.

O nosso percurso em Aristóteles procura identificar o seu paralelismo relativamente ao platônico: na neutralização do horizonte dos entes que são por natureza (τά φύσει όντα) relativamente ao horizonte da situação humana específica (πρᾶξις); na apresentação dos elementos para uma analítica da excelência (αρετή), como sendo a oposição do horizonte patológico e dos seus limites prazer-sofrimento (ἡδονή-λύπη), ao horizonte do λόγος onde se pode constituir uma disposição da lucidez humana (ψυχή) que visa uma completude para a vida humana; no modo como se experimenta a verdade desocultante (αλήθεια) da situação humana (πρᾶξις), enquanto limite da dimensão da vida situada (πρακτική ζωή), a partir da convocação do λόγος que permita não destruir a habitabilidade no mundo. O nosso percurso visa, por último, o isolamento do ponto de vista da consciência situacional (φρόνησις), enquanto a apercepção intuitiva (αἴσθησις) do momento oportuno (καιρός) e da condição de possibilidade de fazer a escolha antecipada (προαίρεσις), que é decisiva para a resolução de uma determinada situação humana (πρᾶξις) identificada como uma movimentação (κίνησις) em direção à completude (τελείωσις) e à possibilidade de passar bem (εύπραξία). A excelência situacional (φρόνησις) corresponde, portanto, à perspectiva que põe a descoberto a possibilidade da excelência (άρετή) da situação humana (πρᾶξις).