Que a obra de arte seja outra coisa, diferente do que nela é simples coisa, é, por fim, óbvio demais, e é isso que os gregos exprimiam no conceito de alegoria : a obra de arte ἄλλο ἀγορεύει, comunica outra coisa, é outra em relação à matéria que a contém 1]. Mas há objetos – por exemplo, um bloco de pedra, uma gota d’água e, em geral, todas as coisas naturais – nas quais parece que a forma é determinada e quase apagada pela matéria, e outros – um vaso, uma enxada ou qualquer outro objeto produzido pelo homem – nos quais parece que é a forma que determina a matéria. O sonho do terror é a criação de obras que estejam no mundo como nele está o bloco de pedra ou a gota d’água, de um produto que exista segundo o estatuto da coisa. “Les chefs-d’oeuvre sont bêtes”, escrevia Flaubert, “ils ont la mine tranquille comme les productions mêmes de la nature, comme les grands animaux et les montagnes”2 ; e Degas : “C’est plat comme la belle peinture”3]. (AgambenH)
- Cf. HEIDEGGER, Martin. Der Ursprung des Kunstwerkes. In : Holzwege GA5 (1950), p. 9. [Tradução portuguesa : A origem da obra de arte. In : Caminhos de floresta. Coordenação científica da edição e tradução de Irene Borges-Duarte. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 2002. p. 11.[↩]
- Em francês, no original. Tradução : “As obras-primas são tolas, elas têm o aspecto tranquilo, como as próprias produções da natureza, como os grandes animais e as montanhas”. (N. T.)[↩]
- [Em francês, no original. Tradução : “É banal como a bela pintura”.] Citado em VALÉRY, Paul. Tel quel, I, 11 [In : Oeuvres. Ed. Jean Hytier. Paris : Gallimard, 1960. v. 2. p. 474.] Uma análoga tendência para aquela que se poderia definir como a “platitude do absoluto” se reencontra na aspiração de Baudelaire em criar um lugar-comum : “Créer un poncif, c’est le génie. Je dois créer un poncif” (Fusées XX). [Em francês, no original. Tradução : “Criar um lugar-comum é a genialidade. Eu devo criar um lugar-comum”. BAUDELAIRE, Charles. Fusées. In : Oeuvres complètes. Ed. Claude Pichois. Paris : Gallimard, 1975. v. 1. p. 662.[↩]