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Sampaio Bruno Deus

segunda-feira 28 de março de 2022

  

Excertos do estudo de Maria Helena Varela  , "O Heterologo em língua portuguesa"

Desde que Deus se entenda como temporariamente não onipotente, todas as dificuldades desaparecem qual por encanto, as antinomias de Kant   logo se resolvem. Sampaio Bruno, A Ideia de Deus

Desde que Deus se entenda como temporariamente não onipotente, todas as dificuldades desaparecem qual por encanto, as antinomias de Kant logo se resolvem. Sampaio Bruno, A Ideia de Deus

Se o século XIX proclamou abruptamente a morte de Deus através de Nietzsche  , o niilismo e a crise da metafísica que esta metáfora representa na cultura ocidental refletem ainda a dificuldade do homem assumir à escala humana o mal, o tempo e a morte, já que sempre aspirou a essa onipotência e eternidade, agora negadas ao próprio divino. À morte de Deus não tardará a suceder-se esse homicídio antropológico de que fala Foucault  , ou o último homem que ameaçamos ser e perecer, atolados nesse vazio axiológico que é o ocaso dos humanismos. Em Portugal, embora Nietzsche seja citado por Sampaio Bruno em A Ideia de Deus, não chega a discutir-se a ausência ou inexistência de Deus. Neste esboço de teodiceia heterodoxa que inicia a segunda navegação gnósica, o autor parece perder-se nas coordenadas ônticas da cisão, do tempo e do mal, numa espécie de teurgismo ou teosofismo, próximo das correntes gnósticas, em que o Deus decaído perde a onipotência no mistério da cisão primordial, permitindo e padecendo Ele próprio a existência do mal, num tempo degradado, espaço chamado.

No contexto dissolvente do século XIX ocidental, em que, implícita ou explicitamente, do racional ao imaginário, a metafísica permanece, A Ideia de Deus surge como uma espécie de súmula ontoteológica do heterologos português, na sua vertente débil e heterodoxa. Dedicada a Amorim Viana, matemático e pensador solar, aparentemente ortodoxo, mais conhecido em Portugal pela sua obra A análise do racionalismo e defesa da fé, Sampaio Bruno pretende essencialmente em A Ideia de Deus refutar a perspectiva otimizante e leibniziana daquele autor, enquanto nega a essência real do mal. Através desta refutação e consequente afirmação do primado ontofenomenológico do mal, procura encontrar uma prova singular e essencial da existência de Deus, ou seja uma justificação para a procura do absoluto, quanto mais negado pelos ateísmos niilistas, tanto mais implícito na insatisfação e angústia humanas. Heterodoxo, este esboço de teodiceia aproxima-se mais das teurgias e teosofias no seu misticismo filosofante, como afirmam Joel Serrão e José Marinho, do que das teologias reveladas e confessionais; metafísico, mantem-se à margem da metafísica clássica, numa espécie de reformulação gnóstica da metafísica.

Numa perspectiva heterodoxa, entre o místico e o esotérico, Bruno defende que Deus não é objeto da ciência teológica, mas de uma revelação à alma humana, numa espécie de êxtase contemplativo dos gnósticos  , permitindo-lhe uma ascese progressiva até à unidade divina donde tudo proveio, ou seja, à plena espiritualização. Assim, partindo da existência do mal, José Pereira Sampaio constrói a sua teodiceia heterodoxa, à margem do criacionismo, urdindo uma teia complexa e quase herética em que o esoterismo judaico da Kaballah, a teosofia de Martinez Pasqualis, o misticismo de Jacob Boehme  , e o panteísmo de Espinosa   são influências a considerar, embora a dos pensadores e poetas românticos, no seu irracionalismo hermético de inspiração gnóstica, constitua talvez a mais implícita, embora menos evidente.

Segundo Bruno, o Deus homogêneo, o espírito puro, onipotente e onisciente, num segundo ekstase temporal, correspondente à queda, ou cisão misteriosa, perdeu a onipotência, embora tenha mantido a onisciência. Daí a existência real do mal que passará a afetar o universo e todas as criaturas, incluindo o próprio Espírito decaído, estendendo-se do cosmos ao plano teológico. Afetando as criaturas e o criador, a cisão propicia a existência do mal, num mundo de erro e exílio, que o Deus decaído se limita a contemplar sem poder intervir, num tempo degradado, diminuído, espaço chamado. Assim se harmoniza a suprema perfeição do absoluto, com a natureza imperfeita da sua obra, justificando-se as antinomias kantianas numa dialética transcendental, enigmática e esotérica, sem qualquer suporte sensível ou material no plano gnosiológico:

Desde que Deus se entenda como não onipotente, todas as dificuldades desaparecem qual por encanto; e as antinomias de Kant logo logo se resolvem. Nem Deus é indiferente à nossa dor nem a sua maldade possível nos alucina. Ele não goza duma plena felicidade egoísta; também ele sofre, da diminuição do espírito puro e do mal da criatura, espírito alterado, ascendendo na sua convergência de regressão. [1]

A cisão permite, à maneira pré-socrática, explicar a passagem do uno ao múltiplo, do homogêneo ao heterogêneo, do tempo puro ao tempo degradado, espaço chamado. Transforma o Deus sive natura de Espinosa, o uno e homogêneo, no múltiplo e heterogêneo, já que a queda inaugural é geradora de profundas alterações ontológicas: um ser puro, mas diminuido e um ser separado, ou universo; um tempo imóvel ou eternidade e um tempo alterado, espaço chamado. Assim, dirá:

No princípio era a Perfeição, o espírito homogêneo e puro. No segundo momento, mercê do efeito dum mistério, temos o espírito diminuído e a seu par a diferença que se tornou heterogênea, isto é o mundo. No terceiro momento, reintegrar-se-á o espírito puro, pela absorção final de todo o heterogêneo. Assim, três são os instantes supremos do crescimento. Um: é o espírito homogêneo e puro, que foi e há-de voltar a ser. Eis o ponto de partida e eis o ponto de chegada. Outro: é o espírito puro mas diminuído atualmente, pelo destaque separativo do Universo. Enfim, o outro ainda: é esse Universo, que aspira a regressar ao homogêneo inicial.

Nós não podemos compreender como foi esse mistério da diferenciação de parte do espírito puro. Porém, que ele dado se houvesse é necessário: para que, um tanto inteligentemente o enigma universal nos seja, ainda que em seu limiar, acessível (Op. cit., p. 343-344).

Situando o mistério no início de toda a ciência humana e divina, aceitando a queda misteriosa no seio da própria perfeição, Bruno parece deslocar as origens solares da filosofia, para as suas profundidades crepusculares ocultas. No princípio era a cisão misteriosa, ou o mistério como princípio seminal da filosofia. A partir do mistério da cisão, o mal e o erro tornam-se, então, noções fundamentais, reais e razoáveis na sua irracionalidade, já que a queda que afeta o Espírito puro, afeta também a Verdade e o Bem, podendo considerar-se Sampaio Bruno, como diz José Marinho, "o nosso primeiro filósofo da negação e da negatividade" [2].



Ver online : Sampaio Bruno


[1Sampaio Bruno. A Ideia de Deus. Porto, Lello & Irmão, 1987. p. 348.

[2Marinho, José. Verdade, condição e destino no pensamento português contemporâneo. Porto, Lello & Irmão, 1976. p. 88.