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Patocka (2002:4) – quando há o princípio vital pode o ente mostrar-se
domingo 11 de junho de 2023
O problema da aparição do ente foi formulado tentativamente por Aristóteles, em Peri psyches, 431b 20 e sgs. [1] Para que as coisas apareçam, quer [13] dizer, para que a sua forma surja e se mostre, é necessário um ente de natureza particular, a saber, a psique, o princípio vital [Lebendigkeit]. Apenas quando há o princípio vital pode o ente mostrar-se. O princípio vital é, porém, a disposição activa para a obra de um corpo orgânico [Leib] não produzido, o qual está dotado de todas as coisas com as quais pode ser mantido em função. Uma das funções (operações) mais efectivas que distingue os seres animados é, contudo, precisamente, o deixar-aparecer [Erscheinenlassen]. Há, porém, um deixar-aparecer, por um lado, daquelas coisas que são mutáveis, pois estão num aqui e num agora, e, portanto, apenas se podem encontrar num aqui-agora (aisthesis), e, por outro lado, daquelas outras acerca das quais o agora não tem qualquer sentido, que são, neste sentido, supratemporais (noesis). Sob o ponto de vista do aparecer, tudo o que é (ta pragmata) se vê repartido em aistheta e noeta, e certamente tanto segundo a sua possibilidade quanto segundo a sua realidade.
Por que razão é a alma inevitavelmente necessária para a aparição das coisas? Porque as formas das coisas, porquanto não aparecem, estão em alguma parte, isto é, nas coisas — não há mesmo nenhumas formas para ta megethe e quando elas surgem como formas puramente para si, necessitam de um lugar. Este lugar deve ter ele próprio uma forma, um viso [Aussehen] [2] de um tipo singular — deve ser algo que possa receber outras formas, deve ser eidos eidon, para que possa devir lugar dos eide. Dito em palavras modernas: deve ter um lado “noemático”, deve poder contrapor-se ele próprio “objectivamente” no interior da alma. Isto expressa-o Aristóteles por meio de uma analogia singular, segundo a qual a alma é qualquer coisa como uma mão, que é instrumento dos instrumentos, isto é, que dá à partida o carácter instrumental a tudo o que pode servir como instrumento — sem mão, não haveria qualquer instrumento, cada instrumento devém um utensílio primeiramente pela mão, e assim a alma faz também de todas as formas propriamente formas, isto é, coisas aparecentes; mas, com isto, a mão não altera de modo algum aquilo que manipula, isso permanece aquilo que era e [14] devém, graças à manipulação, aquilo que é, aquilo que continha de disposição, de possibilidade.
Deste modo, pode ser dito que as coisas aparecem na alma sem por isso perderem a sua forma própria, a sua essência. Isto é válido tanto para os ais theta como para os noeta. Assim, tanto aquilo que é singular, encontrado numa situação, como o geral-supratemporal aparecem na alma.
Contudo, é isto suficiente para podermos dizer: a alma é de alguma maneira (ainda por investigar) as coisas? Quer dizer, no seu deixar-aparecer, a alma não é diferente das coisas. Na sua manipulação do instrumento, a mão permanece deste distinta, ela não se identifica de modo nenhum com martelo e agulha, de cuja presença independente ela, pelo contrário, precisa. Aqui reside, por conseguinte, uma distinção: a mão é certamente uma boa analogia para o lugar, mas não para a identidade, melhor, para a identificação; e, no entanto, dela fala Aristóteles porquanto diz: he psyche ta onta pos estin.
A identificação, que tem lugar no interior da alma, não pode ser compreendida se não estiver na alma o poder de ter o mesmo de modos diferentes e, neste quadro, de efectuar uma identificação.
Com a sua tese de que a alma é, de algum modo misterioso, o ente, Aristóteles apreende conjuntamente não apenas a essência da chamada “intencionalidade”, mas também a doutrina acerca dos diversos modos de aparição do mesmo.
Apenas que estes diversos modos de aparição do mesmo são imediatamente limitados em Aristóteles a um tipo que, tal como em Platão, determina uma sobrecarga do ente que aparece relativamente ao modo como aparece. O mesmo, que aí aparece, é interrogado por via da relação do estético ao noético, da relação entre o que é para encontrar [des zu Begegnenden] e o que sempre já é [Immerschön-Seiendes]. Mostra-se que a alma, para se poder ressentir daquilo a respeito do qual o tempo é irrelevante, deve ter tido uma aisthesis e ter-se dela servido numa modificação da phantasia. Assim, a doutrina acerca dos diversos modos de aparição toma-se outra vez uma doutrina dos graus de conhecimento que a alma deve percorrer para se elevar da “superfície sensível” até à altura da essência do ente.
PATOCKA, Jan. O subjectivismo da fenomenologia husserliana e a possibilidade de uma fenomenologia "assubjectiva". Phainomenon, [S.I.], n. 4, p. 149-165, oct. 2002. ISSN 2183-0142. Tradução de Pedro M. S. Alves
[1] Porque a passagem de Aristóteles é pormenorizadamente comentada por Patocka, inserimo-la aqui para comodidade do leitor: «Agora, resumindo aquilo que foi dito acerca da alma, afirmemos de novo que a alma é, de certa maneira, todos os seres. De facto, os seres ou são sensíveis ou inteligíveis; e, de certa maneira, o conhecimento é o que é cognoscível, e a sensação o que é sensível. Mas temos de investigar de que maneira é isto assim. O conhecimento e a sensação estão divididos pelas coisas, o que é em potência pelo que é em potência, o que é em acto pelo que é em acto; e as faculdades sensitiva e cognitiva da alma são estas coisas em potência, a saber, o cognoscível e o sensível; é necessário, pois, que sejam ou estas coisas ou as suas formas. Mas não são estas coisas; de facto, não é a pedra que está na alma, mas a forma da pedra. A alma é como uma mão; com efeito, a mão é um instrumento de instrumentos, e o intelecto é uma forma de formas, assim como a sensação é uma forma dos sensíveis. Ora, como parece que nenhuma coisa é separada a não ser a extensão sensível, as coisas inteleccionáveis — quer as chamadas abstracções, quer todas as disposições e afecções dos sensíveis — estão nas formas sensíveis. Por via disto, ninguém pode aprender nem compreender nada sem o sensoriar; quando contempla, é necessário que contemple simultaneamente uma imagem mental: de facto, as imagens mentais são como as sensações, só que sem a matéria. Mas a imaginação é diferente da afirmação e da negação; pois a verdade ou falsidade são combinações de intelecções. E em que é que as primeiras intelecções diferem das imagens mentais? Nem elas nem as outras são imagens mentais, mas não podem ocorrer sem as imagens mentais» (tradução do grego de Maria José Figueiredo) [N. do T.].
[2] Aussehen significa aqui um “parecer”, um “aspecto” ou “semblante”. Para manter a referência directa ao ver, que Patocka explora no seu texto em conexão com o grego eidos, preferimos a expressão “viso”, algo inusitada mas pertencente ao léxico do português, a qual, significando “aparência“ ou “rosto”, tem a vantagem de transmitir imediatamente a ideia daquilo que de uma coisa está disponível para a visão, é nela visível, mesmo que nenhum olhar actual sobre ela incida [N. do T.].