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Descartes (MFP) – ideias inatas, adventícias e fatícias

domingo 24 de outubro de 2021, por Cardoso de Castro

  

tradução

Entre as ideias, umas parece-me que me são inatas [1], que nasceram comigo; outras, que são adventícias e vieram de fora; outras, finalmente, que foram feitas e inventadas por mim. Pois, que eu tenha a faculdade de conceber uma coisa, ou uma verdade, ou um pensamento, parece-me que a não tenho senão de mim, da minha própria natureza. Se ouço, porém, qualquer ruído, se vejo o Sol, se sinto calor, cri até hoje que tais sensações procediam de coisas que estão fora de mim. E, enfim, afiguro-me que os hipogrifos e as sereias, e outras quimeras semelhantes, são ficções e invenções do espírito. Mas posso porventura persuadir-me de que todas as minhas ideias, afinal, são do gênero das que chamei adventícias; ou que todas são inatas; ou que foram todas inventadas por mim: pois não descobri ainda claramente qual seja a natureza das ideias. [...]

Resta tão-só a ideia de Deus, a qual cumpre agora considerar, para ver se haverá nela qualquer coisa que não possa ter vindo de mim próprio.

Entendo pelo nome de Deus uma substância infinita, eterna, imutável, independente, omnisciente, omnipotente, pela qual eu próprio v as cousas que existem (se algumas existem) foram criadas e produzidas. Ora estas qualidades são de tal ordem, tão grandes são e tão eminentes, que quanto mais nelas faço reparo menos me convenço de que a ideia delas possa ter origem só em mim. E portanto, de tudo que anteriormente eu disse aqui, forçoso é concluir que Deus existe. Pois, se bem que eu tenha a ideia de substância pelo fato de que sou uma substância, não teria contudo a de uma substância infinita — eu que sou finito — se ela não houvesse sido posta em mim por uma substância verdadeiramente infinita. [...]

Resta [...] tão-somente examinar de que maneira eu adquiri essa ideia. Não a recebi pelos sentidos, e nunca se me ofereceu sem que eu a esperasse, tal como sucede, por via de regra, com as ideias que temos das coisas sensíveis, quando estas se apresentam (ou parece que o fazem) aos órgãos exteriores dos nossos sentidos; não é também uma pura ficção, uma mera produção do meu espírito, por isso mesmo que não está em mim o aumentar ou diminuir qualquer coisa nela: e só resta, portanto, que admitamos que essa ideia de Deus nasceu comigo, que me é inata, como a ideia de mim próprio me é também inata.

R. Descartes  , Meditações Metafísicas, III, trad. de António Sérgio, pp. 46-66.

Original

Or de ces idées les unes me semblent être nées avec moi, les autres être étrangères et venir de dehors, et les autres être faites et inventées par moi-même. Car, que j’aie la faculté de concevoir ce que c’est qu’on nomme en général une chose, ou une vérité, ou une pensée, il me semble que je ne tiens point cela d’ailleurs que de ma nature propre ; mais si j’ouïs maintenant quelque bruit, si je vois le soleil, (30) si je sens de la chaleur, jusqu’à cette heure j’ai jugé que ces sentiments procédaient de quelques choses qui existent hors de moi ; et enfin il me semble que les sirènes, les hippogriffes et toutes les autres semblables chimères sont des fictions et inventions de mon esprit. Mais aussi peut-être me puis-je persuader que toutes ces idées sont du genre de celles que j’appelle étrangères, et qui viennent de dehors, ou bien qu’elles sont toutes nées avec moi, ou bien qu’elles ont toutes été faites par moi ; car je n’ai point encore clairement découvert leur véritable origine. Et ce que j’ai principalement à faire en cet endroit, est de considérer, touchant celles qui me semblent venir de quelques objets qui sont hors de moi, quelles sont les raisons qui m’obligent à les croire semblables à ces objets.

[...]

Partant il ne reste que la seule idée de Dieu, dans laquelle il faut considérer s’il y a quelque chose qui n’ait pu venir de moi-même. Par le nom de Dieu j’entends une substance infinie, éternelle, (36) immuable, indépendante, toute connaissante, toute puissante, et par laquelle moi-même, et toutes les autres choses qui sont (s’il est vrai qu’il y en ait qui existent) ont été créées et produites. Or ces avantages sont si grands et si éminents, que plus attentivement je les considère, et moins je me persuade que l’idée que j’en ai puisse tirer son origine de moi seul. Et par conséquent il faut nécessairement conclure de tout ce que j’ai dit auparavant, que Dieu existe ; car, encore que l’idée de la substance soit en moi, de cela même que je suis une substance, je n’aurais pas néanmoins l’idée d’une substance infinie, moi qui suis un être fini, si elle n’avait été mise en moi par quelque substance qui fût véritablement infinie.

[...]

Il me reste seulement à examiner de quelle façon j’ai acquis cette idée. Car je ne l’ai pas reçue par les sens, et jamais elle ne s’est offerte à moi contre mon attente, ainsi que font les idées des choses sensibles, lorsque ces choses se présentent ou semblent se présenter aux organes extérieurs de mes sens. (41) Elle n’est pas aussi une pure production ou fiction de mon esprit ; car il n’est pas en mon pouvoir d’y diminuer ni d’y ajouter aucune chose. Et par conséquent il ne reste plus autre chose à dire, sinon que, comme l’idée de moi-même, elle est née et produite avec moi dès lors que j’ai été créé.


[1Segundo Descartes, o inato compreende simultaneamente o que chamamos fatos de consciência, experiência interna e aquilo a que chamamos leis ou formas o priori do conhecimento. Leibniz ainda não distinguia estas duas espécies de dados mentais (Novos Ensaios, II; Monadologia, § 30). Hoje, estas duas ideias devem ser cuidadosamente separadas; e tal distinção, que se baseia na diferença entre a ordem psicológica e a ordem lógica, não deve ser confundida com a distinção dos caracteres imediatamente inatos, isto é, que aparecem desde o nascimento, e virtualmente inatos, isto é, que apenas se desenvolvem ulteriormente (André Lalande (philosophe), Vocabulaire .... PP- 500-501).