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Derrida (R:20-21) – moralidade como "fé que reflete"

domingo 28 de fevereiro de 2021

  

[...] no entender de Kant   - ele diz isso propositadamente - só existem duas famílias de religião e, em suma, duas fontes ou dois troncos da religião - e, portanto, duas genealogias a respeito das quais ainda se deve perguntar por que motivo compartilham o mesmo nome, próprio ou comum: a religião de mero culto (des blossen Cultus) procura os "favores de Deus", mas essencialmente, não age, limita-se a ensinar a oração e o desejo. O homem não tem de se tornar melhor, ainda que seja pela remissão dos pecados. Quanto à religião moral (moralische), visa à boa conduta da vida (die Religion des guten Lebenswandels); comanda ο fazer, dissociando-o do saber o qual lhe está subordinado, e prescreve o tornar-se melhor agindo para tal fim exatamente onde “o seguinte princípio conserva seu valor: ’Não é essencial nem, por conseguinte, necessário, que alguém saiba o que Deus faz ou fez para a [20] sua salvação’, mas antes o que ele mesmo deve fazer para se tornar digno dessa ajuda". É assim que Kant define uma "fé que reflete" (reflektierende), isto é, um conceito cuja possibilidade podería abrir perfeitamente o próprio espaço de nossa discussão. Por não depender essencialmente de qualquer revelação histórica e, assim, estar de acordo com a racionalidade da razão pura prática, a fé que reflete favorece a boa vontade para além do saber. Desse modo, opõe-se à fé "dogmática" (dogmatische). Se ela se demarca em relação a essa "fé dogmática", é porque esta pretende saber e, portanto, ignora a diferença entre fé e saber.

Ora, o princípio de tal oposição - é a razão pela qual insisto neste ponto - poderia não ser apenas definidor, taxinômico ou teórico; ele não nos serve somente para classificar religiões heterogêneas sob o mesmo nome; poderia também definir, ainda para nós, hoje, um lugar de conflito, senão de guerra, no sentido kantiano. Ainda hoje, nem que fosse provisoriamente, poderia nos ajudar a estruturar uma problemática.

Estaremos preparados para medir sem fraquejar as implicações e consequências da tese kantiana? Esta parece ser forte, simples e vertiginosa: a religião cristã seria a única religião propriamente “moral"; ser-lhe-ia reservada exclusivamente uma missão: libertar uma “fé que reflete". Portanto, segue-se necessariamente que a moralidade pura e o cristianismo são indissociáveis em sua essência e em seu conceito. Se não existe cristianismo sem moralidade pura, é porque a revelação cristã nos ensina algo de essencial quanto à própria ideia da moralidade. Desde então, a ideia de uma moral pura, mas não cristã, seria absurda; ela passaria o entendimento e a razão, isso seria uma contradição em si. A universalidade incondicional do imperativo categórico é evangélica. A lei moral inscreve-se no fundo de nossos corações como uma memória da Paixão. Quando se dirige a nós, fala o idioma do cristão - ou cala-se. [DERRIDA  , Jacques e VATTIMO  , Gianni (org.). A religião : o seminário de Capri. São Paulo  : Estação Liberdade, 2000, p. 20-21]


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