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Bergson (EC:1-3) – existência
quinta-feira 30 de julho de 2020, por
Bento Prado Neto
A existência de que estamos mais certos e que melhor conhecemos é incontestavelmente a nossa, pois de todos os outros objetos temos noções que podem ser julgadas exteriores e superficiais, ao passo que percebemos a nós mesmos interiormente, profundamente. Que constatamos então? Qual é, nesse caso privilegiado, o sentido preciso da palavra "existir"?...
Constato em primeiro lugar que passo, de um estado para outro. Tenho calor ou tenho frio, estou alegre ou estou triste, trabalho ou não faço nada, olho o que está à minha volta ou penso em outra coisa. Sensações, sentimentos, volições, representações, são essas as modificações entre as quais minha existência se divide e que a colorem alternadamente. Portanto, mudo sem cessar. Mas isso não é tudo. A mudança é bem mais radical do que se poderia pensar num primeiro momento.
Com efeito, falo de cada um de meus estados como se formasse um bloco. Embora diga que mudo, parece-me que a mudança reside na passagem de um estado ao estado seguinte: no que se refere a cada estado, tomado em separado, quero crer que continua o mesmo durante todo o tempo em que se produz. Contudo, um leve esforço de atenção revelar-me-ia que não há afeto, não há representação ou volição que não se modifique a todo instante; se um estado de alma cessasse de variar, sua duração deixaria de fluir. Tomemos o mais estável dos estados internos, a percepção visual de um objeto exterior imóvel. Por mais que o objeto permaneça o mesmo, por mais que eu olhe para ele do mesmo lado, pelo mesmo ângulo, sob a mesma luz, a visão que tenho dele não difere menos daquela que acabo de ter, quando mais não seja porque ela está um instante mais velha. Minha memória está aí, empurrando algo desse passado para dentro desse presente. Meu estado de alma, ao avançar pela estrada do tempo, infla-se continuamente com a duração que vai reunindo; por assim dizer, faz bola de neve consigo mesmo. Com mais forte razão isso ocorre com os estados mais profundamente interiores, sensações, afetos, desejos etc., que não correspondem, como uma simples percepção visual, a um objeto exterior invariável. Mas é cômodo não prestar atenção a essa mudança ininterrupta e só notá-la quando se torna grande o suficiente para imprimir uma nova atitude ao corpo, uma nova direção à atenção. Nesse momento preciso, descobrimos que mudamos de estado. A verdade é que mudamos sem cessar e que o próprio estado já é mudança.
Quer dizer que não há diferença essencial entre passar de um estado a outro e persistir no mesmo estado. Se, por um lado, o estado que "continua o mesmo" é mais variado do que achamos que seja, a passagem de um estado a outro, pelo contrário, parece-se mais do que imaginamos com um mesmo estado que se prolonga; a transição é contínua. Mas, precisamente por fecharmos os olhos à incessante variação de cada estado psicológico, somos obrigados, quando a variação se tomou tão considerável que se impõe à nossa atenção, a falar como se um novo estado tivesse se justaposto ao precedente. Supomos que este, por sua vez, permanece invariável, e assim por diante, indefinidamente. A aparente descontinuidade da vida psicológica decorre, pois, do fato de que nossa atenção se fixa nela por uma série de atos descontínuos: ali onde há apenas uma suave ladeira, cremos perceber, ao seguirmos a linha quebrada de nossos atos de atenção, os degraus de uma escada. É verdade que nossa vida psicológica é cheia de imprevistos. Surgem mil e um incidentes que parecem contrastar com o que os precede e não se vincular àquilo que os segue. Mas a descontinuidade com que aparecem destaca-se sobre a continuidade de um fundo onde eles se desenham e ao qual devem os próprios intervalos que os separam: são os toques de timbale ressoando de quando em quando na sinfonia. Nossa atenção se fixa neles porque a interessam mais, mas cada um deles vem inserido na massa fluida de nossa existência psicológica inteira. Cada um deles não é senão o ponto mais bem iluminado de uma zona movente que compreende tudo o que sentimos, pensamos, queremos, tudo o que somos, enfim, num determinado momento. É essa zona inteira que, na verdade, constitui nosso estado. Mas, de estados assim definidos, pode-se dizer que não são elementos distintos. Continuam-se uns aos outros num escoamento sem fim.
Original
L’existence dont nous sommes le plus assurés et que nous connaissons le mieux est incontestablement la nôtre, car de tous les autres objets nous avons des notions qu’on pourra juger extérieures et superficielles, tandis que nous nous percevons nous-mêmes intérieurement, profondément. Que constatons-nous alors ? Quel est, dans ce cas privilégié, le sens précis du mot « exister » ? Rappelons ici, en deux mots, les conclusions d’un travail antérieur.
Je constate d’abord que je passe d’état en état. J’ai chaud ou j’ai froid, je suis gai ou je suis triste, je travaille ou je ne fais rien, je regarde ce qui m’entoure Ou je pense à autre chose. Sensations, sentiments, volitions, représentations, voilà les modifications entre lesquelles mon existence se partage et qui la colorent tour à tour. Je change donc sans cesse. Mais ce n’est pas assez dire. Le changement est bien plus radical qu’on ne le croirait d’abord.
Je parle en effet de chacun de mes états comme s’il formait un bloc. Je dis bien que je change, mais le changement m’a l’air de résider dans le passage d’un état à l’état suivant : de chaque état, pris à part, j’aime à croire qu’il reste ce qu’il est pendant tout le temps qu’il se produit. Pourtant, un léger effort d’attention me révèlerait qu’il n’y a pas d’affection, pas de représentation, pas de volition qui ne se modifie à tout moment, si un état d’âme cessait de varier, sa durée cesserait de couler. Prenons le plus stable des états internes, la perception visuelle d’un objet extérieur immobile. L’objet a beau rester le même, j’ai beau le regarder du même côté, sous le même angle, au même jour : la vision que j’ai n’en diffère pas moins de celle que je viens d’avoir, quand ce ne serait que parce qu’elle a vieilli d’un instant. Ma mémoire est là, qui pousse quelque chose de ce passé dans ce présent, Mon état d’âme, en avançant sur la route du temps, s’enfle continuellement de la durée qu’il ramasse ; il fait, pour ainsi dire, boule de neige avec lui-même. A plus forte raison en est-il ainsi des états plus profondément intérieurs, sensations, affections, désirs, etc., qui ne correspondent pas, comme une simple perception visuelle, à un objet extérieur invariable. Mais il est commode de ne pas faire attention à ce changement ininterrompu, et de ne le remarquer que lorsqu’il devient assez gros pour imprimer au corps une nouvelle attitude, à l’attention une direction nouvelle. A ce moment précis on trouve qu’on a changé d’état. La vérité est qu’on change sans cesse, et que l’état lui-même est déjà du changement.
C’est dire qu’il n’y a pas de différence essentielle entre passer d’un état à un autre et persister dans le même état. Si l’état qui « reste le même » est plus varié qu’on ne le croit, inversement le passage d’un état a un autre ressemble plus qu’on ne se l’imagine à un même état qui se prolonge ; la transition est continue. Mais, précisément parce que nous fermons les yeux sur l’incessante variation de chaque état psychologique, nous sommes obligés, quand la variation est devenue si considérable qu’elle s’impose à notre attention, de parier comme si un nouvel état s’était juxtaposé au précédent. De celui-ci nous supposons qu’il demeure invariable à son tour, et ainsi de suite indéfiniment. L’apparente discontinuité de la vie psychologique tient donc à ce que notre attention se fixe sur elle par une série d’actes discontinus : où il n’y a qu’une pente douce, nous croyons apercevoir, en suivant la ligne brisée de nos actes d’attention, les marches d’un escalier. Il est vrai que notre vie psychologique est pleine d’imprévu. Mille incidents surgissent, qui semblent trancher sur ce qui les précède, ne point se rattacher à ce qui les suit. Mais la discontinuité de leurs apparitions se détache sur la continuité d’un fond où ils se dessinent et auquel ils doivent les intervalles mêmes qui les séparent : ce sont les coups de timbale qui éclatent de loin en loin dans la symphonie. Notre attention se fixe sur eux parce qu’ils l’intéressent davantage, mais chacun d’eux est porté par la masse fluide de notre existence psychologique tout entière. Chacun d’eux n’est que le point le mieux éclairé d’une zone mouvante qui comprend tout ce que nous sentons, pensons, voulons, tout ce que nous sommes enfin à un moment donné. C’est cette zone entière qui constitue, en réalité, notre état. Or, des états ainsi définis on peut dire qu’ils ne sont pas des éléments distincts. Ils se continuent les uns les autres en un écoulement sans fin.
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