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Apólogo de Pródico de Ceos
segunda-feira 9 de setembro de 2024, por
Originalmente publicado em Seara Nova, revista de doutrina e crítica. Lisboa, ano XII, n. 344,25 de maio de 1933, p. 120-21. Assinado com o pseudônimo Marcos
Eis como Clariel, meu mestre, traduziu o apólogo de Pródico de Ceos:
Da margem do rio, que se recortava cadenciadamente sobre as águas tranquilas, partiam dois caminhos. O efebo hesitava: um deles, liso e claro, desenrolava-se sobre a planura à sombra das acácias e dos plátanos; e, dourando-se ao sol nascente, pairava sobre ele um voo rítmico de pombas; o outro, pelo contrário, era desigual e fragoso, todo aberto em asperezas de rocha e hostilidades de silveirais; e, logo à entrada, sobre uma oliveira carcomida e cinzenta, um mocho parecia meditar um sonho de espectros.
Subitamente, diante do moço, que não sentiu nem medo nem espanto, apareceram duas figuras de mulher, cada uma à entrada de seu caminho; a da estrada plana e risonha, conheceu o efebo, pela nudez do corpo e pela calma voluptuosidade do sorriso, que era Afrodite, a que surgiu das águas na primavera do mundo; à outra, que se apoiava de leve na lança e cujo manto caía, rigidamente, em pregas, até o solo, saudou-a com o nome de Palas Atena, filha de Zeus.
A primeira falou e disse: “Cálicles, os deuses amam-te e deram-te a beleza, a graça, o domínio do amor e da vida; sabes, como Hermes, a harmonia das sete cordas e, como ele também, o mágico segredo das palavras; és generoso e brando, e venceste no pugilato e na corrida os mais sólidos atletas da cidade. Vem, tudo se abre diante de ti, fácil e acolhedor; dar-te-ei, como a Páris, a mais bela mulher do mundo, cumular-te-ei de riquezas, farei que domines o povo que escolheres, que todos te elogiem, que o teu nome seja familiar aos Hiperbóreos e aos Etíopes, que a Fama para sempre te apregoe aos séculos futuros, entre a raça dos mortais e entre a raça magnífica dos deuses.”
Então Palas, fitando-o com os seus olhos glaucos, dirigiu-lhe estas palavras:
“O Cálicles, é certo que os deuses te amam e que a Moira decidiu que tu próprio um dia serás admitido aos banquetes dos imortais. Mas tudo se perderá para ti, se te deixares vencer pelas seduções do amor, da riqueza e da glória; muitos possuíram já aquilo que te oferecem e, no entanto, as suas almas vagam, tristes, lamentando-se, pelas margens do rio desolador. O caminho que te apontam é, ao princípio, como o vês, alegre e doce; não te fatigarás ao trilhá-lo, irás como num sonho, entre os perfumes e as flores; mas, depois, tudo se transforma; fogem as pombas e tombam os plátanos, escurece-se o céu, rompem as pedras para te ferirem os pés, afiam-se as folhas para te rasgarem a carne. Cálicles, lembra-te das lições do teu mestre, despreza o que tem apenas um brilho passageiro, o que assenta somente em frágil vaidade; ama o eterno, o que verdadeiramente tornará o teu nome conhecido da inumerável e vária humanidade e daqueles que habitam o Olimpo. O caminho a que te convido começa no trabalho e na dor, mas é o único que dentro em breve te poderá levar, por uma larga, suave e fragrante avenida, ao convívio dos deuses.”
Proferiam os lábios da Virgem as últimas palavras aladas, quando estacou em frente do efebo o filho de Alcmena; e disse:
“Cálicles, se verdadeiramente queres ser um homem, deixa de confiar nos deuses e, ainda mais, de ter como suprema recompensa sentares-te aos banquetes dos imortais; porque, nessa altura, terás deixado de lutar contra eles e contra a Moira, terás deixado de acompanhar os teus irmãos, e toda a raça dos humanos será varrida pelo teu esquecimento, como as folhas dos bosques pelos ventos do outono. Uma e outra deusa te enganam: se Afrodite deseja que todo te percas nos prazeres do amor e do mando, Palas Atena quer matar em ti o sentimento de que és um homem, anseia por convencer-te de que possuis o máximo de virtude ou o máximo de ciência e de que, por amor delas, te deves alhear de todas as preocupações que tornam bela a vida dos mortais. E é por inveja que o fazem; porque os deuses, ó Cálicles, têm inveja dos sofrimentos dos homens, da esplêndida incerteza em que vivem, da sublime dúvida que os atormenta; não há nada pior do que possuir a Verdade. Se escolheres o caminho de Afrodite, sentirás a monotonia da facilidade e, no fim, o remorso de te não teres batido, como dia a dia o fazem os outros homens, como teu pai e como teu irmão; se acederes à vontade de Palas, todo o prazer que te poderá dar a aspereza da estrada há de ser turvado pela segurança em que estás de que adiante o piso se tornará igual e no extremo do extremo te espera o carro divino. Não, Cálicles, o bom caminho não te dará nenhuma alegria; mas tê-las-ás, e imensa, se, por onde tiveres tu passado, o caminho ficar melhor para os outros homens. Vai, e não te limites, não tenhas medo de Afrodite, por amor de Palas, nem de Palas por amor de Afrodite: entrega-te a todas as atividades humanas, desfaz-te e renova-te como uma chama, sempre subindo, Cálicles, sempre subindo; ama as dificuldades, não faças como Palas, que as considera um sofrimento; lembra-te de que a norma não é um obstáculo, é uma força; se um dia governares um povo — é, no entanto, preferível, ó Cálicles, que apenas inspires os governantes —, se um dia o fizeres, exige que te vigiem, que te sigam passo a passo, que te tratem com viril rudeza: prefere sempre o sal ao incenso, verás como a tua inteligência se eleva, como a tua sabedoria se enriquece. E não esperes recompensas: a tua única recompensa, depois de teres dado um passo no caminho de Homem, estará na possibilidade heroica que sentes dentro em ti de dares um outro ainda, com a mesma calma e o mesmo sorriso.”
Então o efebo estendeu as mãos para Héracles e disse:
“Ó Herói, eu quero ser um homem; mostra-me o caminho.”
Mas o filho de Alcmena apontou-lhe o mato espesso e rude e replicou apenas: “Abre-o!”
E docemente, na doçura da manhã, se fundiram as deusas.
Ver online : Agostinho da Silva
SILVA, Agostinho da. Filosofia enquanto poesia: sete cartas a um jovem filósofo, conversação com Diotima,filosofia nova e outros escritos. São Paulo: É Realizações Editora, 2019.