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Chaui (NR2) – perfeição em Espinosa

quarta-feira 15 de setembro de 2021, por Cardoso de Castro

  

Do conatus vieram as definições do apetite e do desejo e sua identidade; dele decorrem, agora, as definições dos afetos que Espinosa  , juntamente com o desejo (cupiditas), designa como “afetos primários”, dos quais se derivam todos os outros: a alegria (laetitia) e a tristeza (tristitia). Esses afetos são designados paixões da mente:

Por alegria, entenderei na sequência a paixão pela qual a mente passa (transit) a uma maior perfeição. Por tristeza, a paixão pela qual ela passa (transit) a uma menor perfeição. (E III, Propo. XI, Escólio)

Alegria, portanto, é o aumento da potência da mente; tristeza, sua diminuição. Duas observações cabem desde já. Ao definir o afeto como aumento ou diminuição da potência singular, Espinosa já indica algo que será nuclear para a compreensão das paixões: a contrariedade, apresentada na própria definição de alegria e de tristeza como afetos primários dos quais todos os outros se derivam. Isso esclarece por que, via de regra, as paixões são apresentadas como pares de opostos, conforme derivem da alegria ou da tristeza — amor e ódio, esperança e medo, soberba e abjeção, e assim por diante. Observemos, em segundo lugar, que, no final da Parte III, ao apresentar as Definições dos Afetos, Espinosa esclarece o emprego da noção de passagem (transitio) a uma perfeição maior ou menor, explicando que a alegria não é a própria perfeição da mente nem a tristeza, privação de maior perfeição, e sim o quantum do aumento ou da diminuição da perfeição, isto é, são estados pelos quais passa a essência da mente com a variação da intensidade de sua potência. Se nos lembrarmos de que, para Espinosa, perfeição é o mesmo que realidade e significa o que é completo e não um grau numa hierarquia de seres, toda essência é perfecta. Entretanto, tomada nela mesma, uma essência singular varia quanto ao acabamento ou à completude de sua realidade e essa variação é aqui indicada com a noção de passagem. Isso se comprova mais claramente, escreve Espinosa, a partir do afeto de tristeza, pois ninguém pode negar que a tristeza consiste na passagem a uma menor perfeição, e não na própria perfeição menor, visto que o homem, enquanto participa de alguma perfeição, não pode entristecer-se. E também não podemos dizer que a tristeza consista na privação de uma maior perfeição; pois a privação nada é, [1] ao passo que o afeto de tristeza é um ato, que por isso não pode ser nenhum outro senão o ato de passar a uma menor perfeição, isto é, o ato pelo qual a potência de agir do homem é diminuída ou coibida. (E III, Definições)

Não há, pois, passagem de uma perfeição a uma outra (maior ou menor) e sim aumento ou diminuição da perfeição, isto é, da realidade de uma essência, de maneira que a mudança quantitativa (aumento ou diminuição) é também qualitativa. A noção de passagem indica ainda que a essência de uma coisa singular passa por mudanças — há mudanças na essência dela —, porém ela não se transforma em outra — não há mudança de essência. [2]


Ver online : CHAUI - A Nervura do Real II


[1Como Espinosa explicara a Blijenbergh, privação significa que uma coisa singular estaria privada de algo que deveria pertencer à sua essência, mas isso supõe a referência a um modelo universal da essência, que serviria de critério para determinar se uma coisa singular é perfeita ou imperfeita, se não lhe falta ou lhe falta algo. Ora, visto que só há essências singulares, o que falta a uma essência é o que não pertence à sua natureza ou não a define. Portanto, a privação nada é.

[2Haveria mudança de essência se a coisa singular se tornasse outra. Os exemplos oferecidos por Espinosa são esclarecedores: plantas que falam, cavalos que voam, homens que viram pedra etc. Ou seja, as quimeras da imaginação e da superstição.