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Satz Lulio

segunda-feira 1º de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

  

Raimundo Lulio   — LIVRO DAS MARAVILHAS
Excertos do ensaio de Mario Satz   do livro "O Tesouro Interior"

Félix, do Livro das Maravilhas, é um herói do amor angelical, possuído pela semelhança, pela correspondência e pela inter-relação. Todos os seus episódios e aventuras o remetem ao Único, ao Criador, não separado de sua Criação, mas refletido nesta como num espelho, seguindo a pauta dupla dos liber Dei / liber mundi.

Poder-se-ia pensar que o maravilhoso é infantil e que o século XIII, de certa forma, também o era em relação ao nosso. Mas Llulio podia ter-se voltado para outra coisa, a peste, a fome ou as lutas dinásticas, em que sua personagem chamar-se-ia, digamos, Triste ou Melancho, mas não Félix. Para Llulio, assim como para qualquer outro grande poeta, cada nomen est omen, cada símbolo é um destino, exatamente como na Bíblia   ou em Homero  . Neste sentido, não há ambiguidades semânticas, nem em sua prosa nem em seus trabalhos doutrinários. Poder-se-ia também dizer que a obsessão pelo maravilhoso acaba por saturar sua própria percepção. Mas Llulio jamais se cansa. Mantém seu equilíbrio e segue, um pouco à maneira de seu tão amado São Francisco, chamando de maravilhoso tanto ao que é encantador como ao que é enigmático e terrível, e creio ser justamente ali, onde aflora nele a quieta ataraxia budista, uma luminosa aquiescência que o faz pensar e expressar, como entre os sufis, que, se se conhece a Deus, o Amado, se vem a conhecer tudo. Num espaço imaginário que coincide com o real, não pode haver nada de menos. O que mais sabe é o que menos tem: seu Blanquerna, o renunciante, ou seus ermitões sábios, seres em que toda a Criação se transforma em discurso. O que mais sabe é o que mais ama, e o amante, uma vez tornado amigo do Amado, simplesmente rememora aquilo que, existindo fora dele, também existe em seu interior: "Per açò era-li romàs tan solament lo remembrament, ab què remembrava son amat."

Remembrament significa união do que foi separado, ou disperso. Para Llulio, a ignorância é decorrente do esquecimento, e "não há maior ignorância que a falsa pluralidade de membros". Somos ou formamos todos parte de um corpus cosmicum, cujo fim último é a coneixença ou remembrament. Quando o santo ou o poeta, à maneira platônica através da anagnosia, ou islâmica com o zhkir, se lembra, ele se maravilha. Ele se maravilha com seu maravilhar-se. Suas pupilas, espelhos circulares, se enchem então de tantas estrelas e entidades quanto as que for capaz de deixar entrar. Assim, a viagem de Félix pelo mundo não tem fim, pois as maravilhas, inesgotáveis, eram para ele, assim como seriam mais tarde para o linguista Humboldt  , uma fonte infinita de beleza. Tudo o interessa e a tudo celebra, o vento, o trovão, o grão de mostarda, o leão, a pastora, a folha e a nuvem. Se lido com os olhos deste século, O Livro das Maravilhas pode lembrar tanto os livros das horas medievais como as vastas caligrafias persas em que o detalhe é apenas um sinal diacrítico de Allah. Está tudo escrito para o viajante, cuja bússola é o amor e cuja ocupação suprema é a leitura do maravilhoso, a descoberta de prodígios.

Os cabalistas hebreus chamam a visão suprema de aléfica, derivada do alef ( 1488 ), primeira letra do alfabeto hebraico. Diz-se que o alef ( 1488 ) é composto de dois yod ( 1497 ) e de um vav ( 1493 ), cuja soma dos valores numéricos equivale à do Tetragrama ou Nome Inefável de Deus. O Criador se encontra, assim, entre suas letras no livro e entre suas espécies na natureza; oculto, ou talvez dissimulado, à espera de um ressuscitador de maravilhas que, tal como o escritor de Mallorca, atue, per speculum, desvelando coisas e seres num tipo de hábito tomográfico instantâneo que permite entrever seus parentescos e homologias, até o acendimento da memória amorosa. Não é por acaso que a palavra alef é composta de três letras que, segundo a tradição, podem ser lidas também de trás para a frente, formando a palavra pele, cujo significado mais comum é "maravilha" ou "milagre". Assim, é maravilhoso tudo que remeta à Unidade Suprema. Mas, como El significa, além disso, Deus, e pe é a letra que simboliza a boca, temos então que todo milagre sai da boca vibratória de Deus para buscar refúgio na boca fonética do homem, sua imagem e semelhança.

O personagem Félix, de Llulio, tem a mesma candura dos cabalistas, uma fé inabalável nos poderes evocadores e sintéticos da linguagem. Félix parte da tristeza, tal como Dante   do Inferno ao Paraíso, e emprega a vontade, compreensão e memória — três dos valores supremos no esquema arbóreo de Llulio, mencionados no prólogo de seu livro — para tornar-se amante, servidor e louvador de Deus. Esta última função, a de louvador, procede do mundo dos trovadores, ao qual pertencera Llulio; porém, seguindo mais adiante, tropeçamos no salmo   final, que termina num Aleluia e que recomenda firmemente que "todo vivente louve ao Criador", como se o louvor proporcionasse a nós, criaturas, por reflexo, uma gradual elevação, através da vibração, à mais alta luz do espírito.

O maravilhoso possui a singular característica de nos incluir e nos transfigurar, como podemos, por vezes, verificar na literatura fantástica e infantil. Parece situar-se, para além do cinza de qualquer teoria, como dizia Goethe  , na "árvore verde e dourada da vida", ou seja, na zona do espectro em que a energia intangível da luz amarela de nosso sol fomenta e cria nos cloroplastos da folha o sublime enigma que é a feliz clorofila. "Pois quanto mais obscura a semelhança, tanto melhor entende o entendimento que aquela semelhança entende." Estas frases inspiraram, sem dúvida, Santa Teresa: "Possam verte meus olhos, pois és a luz deles."

Reduzindo-se ao mínimo as constantes simbólicas da obra de Llulio, deparamo-nos com círculos dentro de círculos, cujos raios e diâmetros são ocupados com letras e com a Árvore, a estrutura vegetal que abarca e sustenta tudo. O círculo ou ciclo é o modelo que move a vida da árvore no decorrer da dança eclíptica, e a árvore, por sua vez, situa o que lhe chega através da energia nos âmbitos biológico e genealógico, circular e fluidamente. A criação é contínua e infinita; somente o homem, "por cansar-se", escreve Llulio, se esgota ao transmutar um elemento em outro, mas nunca Deus, ou o Princípio Único, o Tao, ou Brahma. Ao buscar-se, entretanto, o maravilhoso cotidianamente, o mesmo cansaço vai sendo adiado.

Mas a apoteose do Livro das Maravilhas, cremos, encontra-se no final, com a história do Segundo Félix. Após a conversão do primeiro em monge, a pedido de um abade, o nômade torna-se sedentário durante o breve tempo em que as narrativas são escritas e anotadas. "Félix aceitou os pedidos (do abade) e foi convertido em monge, tendo sido incumbido da função de andar pelo mundo durante o resto de sua vida, à custa do monastério, para divulgar o Livro das Maravilhas, de forma a que, assim, as próprias maravilhas se multiplicassem." Após o registro, que prefigura o desfecho de um destino de pregação e errância sublime, o primeiro Félix adoece e morre pedindo a Deus que escolha alguém para substitui-lo. E neste momento que aparece o segundo Félix: "...um monge, um homem santo e de vida salutar, em cujo ânimo havia retido o desejo de Félix; que guardara em sua memória e entendimento os exemplos e as maravilhas que Félix lhe havia contado, aquele monge maravilhou-se sobre o porquê, no dia de sua morte, de pensarem na honraria, que desejam seja aceita quando de seu enterro. O monge percebeu que aquela maravilha não havia sido contada por Félix em seu livro, e que seria uma boa ideia incluí-la nele."

Por fim, seria este monge quem solicitaria o ofício de Félix, e também seu nome, cumprindo assim o que Riquer chama de cristianização do mito da Ave Fênix de nome tão semelhante a Félix. Tal sugestão é coerente com um velho arquétipo que, na época de Llulio, já havia sido associado à figura de Jesus, que também foi capaz de morrer e renascer, como a ave mítica. De qualquer maneira, o filósofo e santo de Mallorca esteve constantemente próximo a este símbolo em sua narração magistralmente singular e acessível sobre o maravilhoso. Apenas que, em vez da montanha dos aromas, da mirra, do incenso e do cinamomo com que a ave prepara sua tumba ardente, sua pira expiatória nada menos que em Heliópolis — Cidade do Sol — Félix a faria num monastério (não sabemos de que ordem, embora tudo indique que fosse a franciscana), desprendendo-se, antes de morrer, do tecido de milagres que foram suas aventuras pelo mundo.