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Pallis Mal

sexta-feira 29 de dezembro de 2023, por Cardoso de Castro

  

MARCO PALLIS   — LUZES BÚDICAS
HÁ UM PROBLEMA DO MAL?
Para responder adequadamente a questão «há um problema do mal?», sugiro começarmos pela demonstração dada nos primeiros capítulos do Gênesis, onde figura a história de Adão e Eva. Vemos aqui a Árvore de Vida, correspondendo ao eixo do universo, se levantar no meio do Jardim do Éden, onde Adão, homem primordial, reside em paz com os outros seres, animais e plantas do jardim. Estes participam por ele ao centro representado pela árvore. Enquanto sua atenção aí permanece concentrada, não de parte alguma nem desarmonia nem temor, e tanto quanto se pode dizer, tal situação deve se prolongar indefinidamente. Temos aqui uma imagem de participação perfeita em modo passivo.

Mas então vem a serpente que oferece a Adão uma experiência à qual ele jamais tinha saboreado, aquela da unidade fragmentada, das coisas independentemente de sua relação com o centro e estimadas por seu valor próprio, como se elas fossem entidades se bastando a elas mesmas. Tal foi e tal permanece ainda a armadilha característica da Árvore do Conhecimento do Bem e do Mal. Persuadido por Eva, ela mesma cedendo à solicitação da serpente, Adão saboreou do fruto e eis que em um instante sua pureza original de intenção está perdida; Eva e ele tomam subitamente consciência de tudo o que os separa deles mesmos, assim como um do outro, e por via de consequência, de cada uma das coisas os cercando. Desde este momento todos os dois se sentem enfermos no interior de sua própria consciência fragmentária, de seu ego empírico, fato que é posto em relevo pela vergonha de sua nudez que tentam cobrir por meio de uma personalidade artificial de sua invenção e figurada pelas folhas da figueira que se tornaram o protótipo de todo disfarce humano.

E a Árvore de Vida, que veio a ser? Pois, no que concerne Adão e Eva, não existe mais. Olhando aí onde eles esperam vê-la, não percebem senão a outra árvore, a Árvore do Conhecimento dobrando sob o peso de seus frutos claros e marcantes contendo as sementes do devir indefinido. Dizemos propositalmente «a outra árvore», porque, pela primeira vez, eles experimentam um sentimento agudo de alteridade, de eu e tu, e por aí mesmo eles se encontram cortados destas outras criaturas com as quais, anteriormente, eles comungavam em termos livres e despojados de temores.

O que deixaram de perceber no entanto é identidade verdadeira da árvore ela mesma e este ponto é vital no relato altamente simbólico. Só muito mais tarde como adulto que me dei conta que não havia duas árvores no jardim, mas apenas uma vista em dobro, na lente deformante da ignorância. Vista a partir de um ponto de vista da ignorância, a Árvore de Vida se torna a Árvore do Conhecimento; vista a partir do ponto de vista do verdadeiro conhecimento, a Árvore do Devir (também pode ser assim chamada) é a Árvore de Vida.

Expresso no relato bíblico estão os elementos essenciais de uma doutrina metafísica completa. E quão é apto à comunicação este simbolismo concreto relativo a uma árvore, ou árvores, comparado às abstrações caras à mentalidade filosófica!

Os apologistas que desejaram defender Deus (!) contra a acusação de ser «o autor do mal» — muitos sentiram a necessidade de O defender assim — passaram de lado um ponto essencial: o paraíso, tão feliz qunto foi, continha a serpente. Nada no relato dá conta deste fato chocante que intervém quase fortuitamente no momento que o evento fatal vai se produzir.

Se se quer considerar verdadeiramente de perto as premissas da criação, deve-se forçosamente tomar consciência desta verdade que um paraíso — todo paraíso — para ser tal deve conter a serpente. A perfeição de um paraíso sem a presença da serpente seria a perfeição, não do paraíso, mas aquela de Deus. Seria, para falar em termos sufis, o «paraíso da Essência». Eis porque, quando se diz de um paraíso (onde qualquer outra coisa) que tenha sido criada boa ou perfeita, isso pode significar somente que é boa ou perfeita na medida que um paraíso (ou qualquer outra coisa) tem a possibilidade de ser perfeita.

O princípio essencial que se deve apreender é que por toda parte onde se tem a ver a um perfeição relativa’, quer dizer compreendendo limites existenciais, admite-se implicitamente um grau de imperfeição devido à ausência de tudo o que está fora destes limites. Este caráter privativo do limite se manifesta, no interior de todo limite, por uma disposição à mudança e consequentemente ao sofrimento. (vide SÓ DEUS É BOM).

Assim nossa questão, «Há um problema do mal?» sofreu uma mudança de acentuação ao ser examinada de mais perto, depois que foi suficientemente demonstrado que o que se manifesta como «mal» em relação a nossa situação de homens tem suas raízes, do ponto de vista cósmico, bem mais atrás em uma imperfeição inseparável de toda manifestação enquanto tal, quer ela tome a forma de um mundo, de um ser individual ou mesmo de um paraíso.