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Fábula das Letras

segunda-feira 1º de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

  

ALFABETO HEBRAICO — A FÁBULA DAS LETRAS HEBRAICAS

Elias Lipiner: Excertos do livro de Elias Lipiner, "As letras do Alfabeto na criação do mundo"

O termo oth ("signo"), empregado na língua hebraica para designar cada letra do alfabeto, tem simultaneamente o significado de maravilha. Bem por isto as letras, na sua existência metafísica, são consideradas arquétipos celestes da criação material, entes incorpóreos mediadores na obra de transformar o caos morto em ordem cósmica animada. A invenção da escrita — diz a fábula do Zohar   que a seguir se translada — não deve ser atribuída ao homem, pois o alfabeto é anterior ao Universo e precedeu à criação do mundo:

"No tempo em que o Santo, bendito seja Ele, concebeu a ideia de criar o mundo, todas as letras do alfabeto existiam ocultas, porquanto dois mil anos antes da criação Ele já as contemplava e se deleitava com elas. E, assim que decidiu iniciar a criação, as letras puseram-se a desfilar perante Ele, em ordem inversa (começando pela última).

THAV; SHIN; REISCH; QOPH; TZADI; PE; SAMEKH; NUN; MEM; LAMED; KHAF; YOD; TETH; HETH; ZAYIN; VAV; HE; DALETH; BETH; ALEF

"E o Santo, bendito seja, Ele, criou as figuras das letras grandes celestes, às quais correspondiam as letras menores do mundo de baixo. É essa a razão por que está escrito (no início das Sagradas Escrituras): Bereshít Bará Elohím Et (com dois Bet e dois Álef), a fim de anunciar a criação das letras celestes e das letras terrenas, ainda que ambas emanem de uma só fonte, tanto as celestes como as terrenas."

Esta fábula, aqui traduzida diretamente do original aramaico, mantidas rigorosamente suas locuções idiomáticas particulares, constitui uma versão metafisicamente aprofundada de outras de semelhante conteúdo existentes em língua hebraica, de cunho simplesmente didático e moralista, espalhadas na literatura talmúdica e reunidas, principalmente, numa antiga compilação de comentários sobre as letras, denominada Alfabeto de Rabi Akiba.

Ao estabelecer que o Santo, Bendito seja Ele, contemplava as letras dois mil anos antes da criação, a fábula insinua não só a sua preexistência à criação, mas sobretudo a sua participação nela, em primeiro lugar, prefigurando-a antes mesmo de sua materialização. As letras teriam estado gravadas e desenhadas em traços sublimes e invisíveis, como que elementos antecipados do plano da criação, na mais íntima interioridade da Sabedoria Eterna. E, no momento oportuno e místico da antemanhã do mundo, emergiram subitamente de sua passividade inconsciente, prontas a intervir na marcha para a materialização daquele plano. Puseram-se todas a desfilar em procissão, diante do Criador, cada qual exaltando as próprias virtudes e disputando o seu lugar no grande fenômeno metafísico por ocorrer: a criação física do mundo que conhecemos, e que devia operar-se, em graus de intensidade crescente, a partir dos traços geometricamente espirituais das letras. Dessa forma, estas, segundo a fábula, passaram de sua fase de passividade para a de dinamismo que deu origem à criação.

O texto aramaico envolve diversas alusões filosóficas, bem como reminiscências moralistas. Assim, na parte conclusiva da fábula a respeito das duas categorias de letras, o autor alude a existência — sob a superfície das coisas reais — de estruturas ideais e perenes, entidades metafísicas, que supostamente lhes serviram de núcleo ou de modelo. As coisas terrenas, naturais e instáveis, estariam calcadas sobre coisas celestes que lhes serviram de arquétipos sobrenaturais. É a visão platônica do mundo. E quanto aos ensinamentos moralistas, cite-se aquele relativo à letra Álef, a qual, pelo fato de haver resistido à tentação, e por não ter desejado correr o risco de ser dispensada, numa prova de amor próprio e humildade simultâneos, foi compensada, como devera, com o primeiro lugar no alfabeto; como que a indicar, ademais, que em tempos remotos ela ocupava o último lugar na hierarquia alfabética, e não o primeiro, como na ordem convencional da atualidade.

A fábula apresenta uma série de outras particularidades características, sendo a mais notável aquela que se refere ao dualismo. Este princípio admite a coexistência compulsória, simetricamente harmoniosa, de dois polos opostos, ambos igualmente necessários para o equilíbrio do Universo, de acordo com os ensinamentos dos filósofos e gnósticos   da antiguidade. As letras cm procissão, cada qual invocando o seu lado bom para obter o benefício de tornar-se o instrumento da criação, mas repelidas sempre com a alegação de seu lado mau, dão relevo à ideia da existência da dualidade como regra necessária no Universo, ideia essa adotada como princípio fundamental no Livro do Esplendor.

Todavia, o princípio do dualismo necessário, a que o fabulista dá tamanho relevo para justificar a existência do mal sobre a Terra, fez nascer, por associação de ideias, o desejo de um sistema antidualista imune ao mal, em que predominasse exclusivamente o bem: a ambição de uma idade de ouro no fim dos dias. O relacionamento desse desejo utopístico com as letras do alfabeto é o tema principal do Livro da Imagem a que acima já se fez menção, e adiante será analisado. O autor dessa estranha obra medieval qualifica o nosso mundo como "um castelo erguido na imundície", significando que Deus criou o Universo de matéria falível, que devia ser substituída por outra melhor. Para a realização dessa tarefa utópica atrela as vinte e duas letras do alfabeto hebraico ao carro de sua imaginação.