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En-Soph

segunda-feira 1º de janeiro de 2024, por Cardoso de Castro

  

CABALA   — EN-SOPH

René de Tryon-Montalembert e Kurt Hruby

Aquilo que nós chamamos «o ser» constitui uma espécie de expressão «existencial» daquilo que escapa a todas as nossas categorias de pensamento e de existência, assim como a todos os nossos esforços de raciocínio lógico ou de etiquetagem determinada. É-nos preciso remontar para além do «nome» do pensamento, da existência e mesmo do «ser», não para tentar cercar ou apreender ou mesmo aperceber, mas somente para procurar às apalpadelas — e sabendo, à partida, que o objeto da busca é impossível de encontrar — o Mistério dos Mistérios, o En-Sof [1], infinito , visto que não pode ser «finito» de modo algum e que nós somos constrangidos a chamar «nada» em virtude da nossa impotência de nomear o que transcende o próprio ser. Porque En-Sof «não pode ser alvo de nenhum nome, de nenhum conhecimento, de nenhuma forma perceptível» (Zohar  , LI, 42b).

Resulta que, neste universo onde todas as nossas teorias racionalizadas se encontram reduzidas a tábua rasa, as próprias noções às quais podemos ser tentados a solicitar alguma segurança tornam-se espelhos de engano, participando, como por impalpáveis e imprevisíveis variações, nos mais desconcertantes universos.

Mas esta espécie de «teologia negativa» com a qual somos postos frente a frente irá revelar-se, em definitivo, como a mais positiva das ontologias: e quanto mais nos afundamos no nada do En-Sof, mais veremos brotar, de todo o lado, os esplendores do Ser e dos seres. Quando dizemos «En-Sof» é importante compreender que esta palavra composta esconde, em si mesma, um conflito: conflito entre não-ser e ser, entre nada e ser. «Esse além que ninguém pode meditar nem conhecer, visto que está envolto num pensamento oculto e numa ideia incomensuravelmente elevada por cima da percepção de um pensamento humano, não tendo nada a que este pensamento se possa ligar, não dando ocasião, nem à ignorância que questiona nem, principalmente, ao conhecimento que afirma — é o En-Sof» (Zohar, I, 21a). Qualquer negativa que, com efeito, se nos ofereça, devemos reconhecer que se trata duma negação do finito. Do mesmo modo, amiúde temos necessidade de recorrer a um termo mais enérgico, o de Ayin [2], que significa propriamente o «nada» e que, no contexto, evoca, sem contradizer, a noção muito mais forte de «nada do nada».

E é aí que surge o paradoxo: este «nada do nada», este ’Ayin vai-se transformar, tornar-se na plenitude de Ser do «Eu» divino, do Anokhi [3], do Ani. Este «milagre» será o ponto do encontro com o Homem, esse Homem que Deus originou da sua própria ausência de ser, como um parceiro inútil e precioso. «Deus toma a iniciativa de um encontro com o Homem: Ele criou o lugar, o tempo e o ser que deverão servir para este conhecimento. É deste modo que o ’Ayin, o Não, o Não-Espacial, o Não-Temporal, o Não-Pessoal, se transforma num «sim», capaz de responder àquele que pode interpelar, ao Homem (...). Contudo, Deus permanece o ’Ayin: não o Ausente, mas o Ser mais seguro, mais durável do que todos aqueles a quem emprestou a existência. Permanece o ’Ayin, que se mantém imperceptível para o entendimento mesmo que seja percebido como Ani, que se ofereça plenamente como Ani.» [4]

O En-Sof não nos arrasta portanto, como é o caso das místicas da índia, no turbilhão impessoal onde se afunda eternamente o diálogo do amor. Seria mais correto discernir nele «a raiz de todas as raízes», a raiz oculta que possui nela mesma o segredo do ser como do não-ser, do pensamento como do que escapa a toda a categoria racional, do criado como do incriado, da luz como do obscuro.

É por esta razão que o «homem da Cabala» se revela capaz, no universo da ciência, de investigações que possam ultrapassar infinitamente os limites da técnica e mesmo do conhecimento científico. A perspectiva é vista do outro lado: já não se trata de estudar os fenômenos em si mesmos, mas de os repor no grande abismo cósmico, do qual só a interpretação da Torá nos pode dar a chave. Não obstante, a modéstia continua a ser regra; e a fronteira do intransponível aparece sempre interdita como se se encontrasse na posse desses querunbins de gládio de fogo que foram colocados pelo Eterno diante da árvore da Vida (Gen., III, 24) [5].


[1«O que o pensamento não pode conceber», ou ainda «o nada do pensamento», isto é, uma realidade que se situa para além das possibilidades da inteligência. (Cf. En-Sof

[2Se bem que ’Ayin signifique «o nada» e que nesse sentido seja mais negativo que En-Sof, contém todavia virtualidades positivas. (Cf. Ayin

[3Do ponto de vista gramatical, anokhi é uma forma secundária de ani, «eu» (cf. Anokhi).

[4Safran: La Cabbale (Paris, Payot, 1960, pp. 288-289).

[5O midrash (Gen. R., XXI, 8, 9) estabelece uma analogia entre Gen. II, 24, a narrativa respeitante aos querubins e ao fogo do gládio fulgurante, que, após o pecado de Adão, guardam o caminho da árvore da Vida, por um lado, e, por outro, a Torá, que, pelo conjunto da tradição, é identificada a uma «Árvore da Vida» (Cf. Conhecimento de Adão).