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Caridade Profanada II

sexta-feira 29 de dezembro de 2023, por Cardoso de Castro

  

JEAN BORELLA   — CARIDADE PROFANADA

SEGUNDA PARTE — AS DETERMINAÇÕES NATURAIS DA CARIDADE
Uma vez estabelecida esta análise da caridade triunfalista e antes de abordar os fundamentos metafísicos da caridade cristã, conviria precisar o quadro cultural e antropológico que deve servir de base humana, de “matéria prima” para sua prática. Quais são as determinações naturais, ao mesmo tempo sociais e individuais, que tornam possíveis o exercício da caridade? Eis o objeto da segunda parte, agrupando duas séries de capítulos. Os capítulos IV, V, VI, definem as determinações culturais de uma humanidade normal: o que é a religião para o homem ordinário (capítulo IV), o que é uma civilização acordada ao sagrado (capítulo V), o que é a civilização moderna (capítulo VI)? O segundo grupo concerne o homem visto em sua natureza própria: segundo o método filosófico (capítulo VII), segundo o Novo Testamento   (capítulo VIII); segundo as tradições judaica, grega e cristã (capítulo IX).
Introdução
Como visto, o próprio das virtudes teologais é de conformar, segundo sua natureza respectiva, a existência humana à Essência divina. Toda virtude se enraíza portanto na existência humana. Somos então levados a nos demandar qual deve ser esta existência humana para que ela possa constituir o terreno natural adequado da caridade verdadeira. A caridade, com efeito, não possui suas determinações práticas nela mesma. Ela é poder de fazer mas o que deve ser feito o que dá um conteúdo a seu poder de ação, ela o recebe necessariamente da ambiência cultural na qual ela se desdobra. É esta ambiência cultural que fornece as evidências determinativas desta caridade, ou ainda o que podemos denominar as evidências naturais.

Se compreenderá que a questão que é agora abordada é de uma grande importância. A surpreendente crise que sacode a Igreja, e que, se ela não se resolve, levará à destruição de todo Ocidente, é uma crise das evidências naturais, ou ainda uma crise da alma cristã. Não entendemos somente por alma cristã, a alma de um homem tomado singularmente, enquanto ele é cristão. Falamos também de alma do cristianismo, da ambiência anímica própria à coletividade cristã. Certamente, esta alma não existe fora dos suportes individuais que são para ela cristão eles mesmos. Mas ela não define menos uma realidade subjetiva, enquanto alma do povo cristão. Ela constitui o meio onde a Revelação toma forma. Nela mesma com efeito, a Revelação é luz pura e informal. Ela transcende toda criação mesmo a criação angélica: “O Céu (o Mundo dos Anjos) e a terra passarão, mas minhas palavras não passarão”. A Verdade divina é imutável e eterna. Para se manifestar, ela exige um meio, uma ambiência que A receba e A realize. Esta relação entre a Revelação divina e o mundo humano que ela quer iluminar e salvar, deve ser compreendida sobre o modelo da criação do mundo, pois a aparição de uma religião é verdadeiramente a criação de um mundo. E assim como a origem, o Espírito de Deus cobria as Águas primordiais da Existência universal, assim como na Revelação do cristianismo, o Espírito divino cobre as águas anímicas da existência humana para aí se manifestar nos iluminando, senão a Palavra eterna permanece não manifestada, não há Revelação no sentido próprio deste termo. Poderia se ainda evocar aqui o modelo cosmológico do hilemorfismo aristotélico, a saber, que toda coisa criada é composta de uma forma e de uma “matéria”, a Verdade eterna constituindo a forma da Revelação e a substância humana constituindo a matéria. Enfim, o Mistério da Revelação encontra seu protótipo perfeito no mistério da Encarnação, o Verbo da Verdade, que é feito carne; eis porque pode-se dizer que o mistério da Revelação é realizado no mistério mesmo de seu Revelador. Ora, o mistério da Encarnação requer ao mesmo tempo a operação do Espírito Santo e a substância virginal de Maria: o Espírito Santo se preparou uma Esposa humana, protótipo da alma cristã acolhendo a Revelação.

Todavia o comando de amor se dirige igualmente ao homem visto em sua própria natureza, e não somente em sua alma cultural. Falar das determinações naturais, da caridade, é portanto falar de um duplo enraizamento natural: e em uma certa natureza social, e em uma certa natureza humana. Qualificar-se-á as primeiras determinações de culturais e de antropológicas as segundas.

  • RELIGIÃO E HOMEM
  • HOMEM E CIVILIZAÇÃO
  • A CONTRA-CIVILIZAÇÃO E O MAL
  • CONSTITUIÇÃO DO HOMEM SEGUNDO O MÉTODO FILOSÓFICO
  • CONSTITUIÇÃO DO HOMEM SEGUNDO O NOVO TESTAMENTO
  • DA ANTROPOLOGIA NAS TRADIÇÕES GREGA, JUDAICA E CRISTÃ