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Borella Eu Outro

sexta-feira 29 de dezembro de 2023, por Cardoso de Castro

  

JEAN BORELLA   — AS DETERMINAÇÕES NATURAIS DA CARIDADE

EU MESMO E EU OUTRO
Um contrassenso cerca a proposição de Sócrates, « Conhece-te a ti mesmo »: ver nesta injunção fundamental a máxima inaugural da introspecção psicológica. Nada é mais estranho a Sócrates, como a Platão, que uma interpretação como esta. «Se conhecer a si mesmo», para ambos, é partir em busca do si mesmo, em busca de seu ser verdadeiro. Esta busca é inseparável de uma verdadeira realização de si mesmo: conhecer o que se é, a fim de ser o que se conhece, eis a autêntica significação da máxima de Delfos.

Consideremos, no entanto, a interpretação psicologista da máxima para avançarmos na reflexão. Dentro desta perspectiva, o objeto primeiro do conhecimento de si, o mais evidente, é nosso corpo. Não se trata do corpo como realidade puramente «física», pois esta não existe — salvo se se considerar um cadáver como um corpo. A verdade é que só há corpo, enquanto corpo vivo (v. Carne). Um cadáver, como diz Bossuet, «não tem nome em nenhuma língua». Falamos então de uma realidade psicobiológica, e isso duplamente: «em si» e «para nós». «Em si», porque o corpo vivo é uma unidade hierarquizada e autônoma de atividades sintéticas, supervisionantes e mantenedoras, as quais é impossível se dar conta de maneira «materialista» quer dizer mecanista. «Para nós», porque o corpo vivo não é um corpo mas «meu» corpo, o que se chama o «corpo próprio». Ora o corpo próprio não é um objeto material, mas um sistema de sensações integradas, um esquema, uma «imagem». No entanto, mesmo assim definida, a realidade corporal não nos parece constitutiva de nosso ser mais profundo. Não vemos mais que uma dimensão periférica de nós mesmos. E pensamos que nosso ser verdadeiro se encontra ao nível do que é, em nós, puramente psíquico: um pensamento, um sentimento, uma emoção, uma lembrança.

Se atentamos à «melodia psíquica» ininterrupta de nossos estados de consciência: lembranças, desejos, movimentos de humor, lástimas, palavras interiores, temores, se movimentam, se combinam, se seguem, se colidem, se transformam, em um movimento sem fim, que parece tão contínuo quanto o fluxo temporal ele mesmo, e que dele é a princípio certamente inseparável. Esta constatação é naturalmente banal. Se aí nos conduz a introspecção, parece claramente que não se poderia dar a isto que se apresenta o título de «eu mesmo». Este fluxo psíquico, com efeito, é essencialmente caracterizado pela alteridade, portanto não é a denominação de «eu mesmo» que lhe convém, mas de «eu outro». Esta simples consideração basta para afastar definitivamente a interpretação psicológica. Pois, qualquer que seja a resposta mais profunda que se possa dar à injunção délfica, uma coisa é certa, é que ela é busca de minha identidade. É dito: conhece-te a ti mesmo, e não: conhece-te a teu outro. Assim se não há outro conhecimento de mim mesmo que a introspecção psicológica, este conhecimento é tolice.