Página inicial > Sophia Perennis > Jean Borella > Borella Guénon Cristianismo

Borella Guénon Cristianismo

quarta-feira 27 de dezembro de 2023, por Cardoso de Castro

  

Jean Borella   — Esoterismo guenoniano e Mistério cristão
Introdução geral: uma interpretação guenoniana do cristianismo é legítima?
A obra de Guénon é geralmente considerada como a expressão maior, no século XX, do esoterismo tradicional.

De tudo isso, não menos de seu ensinamento sobra a metafísica e o simbolismo, um cristão pode tirar o proveito mais substancial.

A exatidão destas colocações não poderia ser contestada. Mas se a atitude que caracterizamos exprime adequadamente a convicção profunda dos “cistãos guenonianos” então deve ser levantado o problema de sua legitimidade.

A primeira questão que se põe, deste ponto de vista, é aquela da relação entre hermenêutica e revelação, posto que a guenonização do cristianismo que se falou consiste justamente em erigir a doutrina guenoniana em hermenêutica suprema da revelação cristã.

Assim apresentado, o problema levantado é imenso.

Como se vê, longe de negar o papel da doutrina metafísica na inteligência da revelação, cremos que toda linguagem religiosa, considerada em sua apresentação direta, requer, para ser compreendida, para se tornar “espírito e vida” naqueles que a recebem e a falam, uma “hermenêutica especulativa”, uma “metalinguagem” de natureza intelectual, própria para dizer o sentido e tornar possível sua assimilação.

Objetar-se-á talvez que, tão necessária quanto seja uma hermenêutica especulativa — quer dizer uma metafísica constituída se exprimindo em um discurso ordenado — ela não é suficiente para sempre tornar inteligível o dado revelado (o revelatum) posto que ela pode ter necessidade ela mesma de ser explicada. Indo ainda mais longe, é possível se indagar se toda hermenêutica não requer sempre uma explicação segunda. De fato a interpretação pode ser indefinida, não somente extensivamente pois não esgota seu objeto e que sempre há o que mais dizer, mas também intensivamente pois pode ser além do mais explicitada. NO entanto tudo se dá dentro da mesma linguagem metafísica escolhida para hermenêutica especulativa: varia a explicação mas a linguagem é a mesma. O discurso especulativo de direito e em princípio, é para si mesmo sua própria metalinguagem, possui em si mesmo sua própria significação explícita e não requer outra linguagem.

Deve-se admitir que uma intelecção “fala sua própria língua”, que é semanticamente transparente a ela mesma e se conhece ao mesmo tempo que conhece. Eis aí o próprio da atividade intelectiva: a intelecção é inteligível.

A inteligência não se conhece a si mesma senão conhecendo, quer dizer pelo ato de intelecção que produz sob o efeito do objeto a conhecer: é a revelação do objeto que a revela a ela mesma.

A inteligência logo fala sua própria língua; o que significa que ninguém a pode lhe ensinar: em verdade, a inteligência ela mesma é língua e logos. Todavia quando lidamos não mais com a inteligência pura, mas com um discurso metafísico constituído de termos ordenados segundo relações determinadas, não é possível sustentar a perfeita naturalidade e logo a perfeita universalidade de tal hermenêutica especulativa.

Poderia se objetar que assim dizendo parece se situar este discurso em posição normativa em relação aos outros. Não há doutrina suprema explícita, o que implica que nenhuma formulação doutrinal não pode explicitamente garantir a justa compreensão de um ensinamento metafísico.

A transcendência do absolutamente Inefável libera de alguma maneira a pluralidade das tradições metafísicas.

Assim não havendo ponto de doutrina metafísica universal — seja do Vedanta — que fornecesse a chave especulativa de toda revelação possível, é necessário se pôr em estado de virgindade intelectiva, de se despir, tanto quanto possível, das linguagens aprendidas, a fim de deixar à Palavra divina todas as suas chances de se fazer entender, de ressoar semanticamente em nós segundo sua verdade e seu modo inteligível.

A proposta é submeter a um exame crítico as teses que Guénon sustentou a respeito do esoterismo cristão e da natureza, para ele exotérica, dos sacramentos. Pensamos que a obra de Guénon é muito útil no tocante à crítica do mundo moderno, a compreensão do simbolismo sagrado e a doutrina metafísica, oferecendo chaves que facilitam a entrada na verdadeira inteligência de Platão e Aristóteles. No entanto esta adoção da hermenêutica guenoniana só é legítima na condição de ser salva a doutrina da fé tal qual a formularam a Escritura e a Igreja, pois esta formulação é garantida pela autoridade divina e se identifica à revelação enquanto revelada: portanto primeira em relação a toda hermenêutica que toma por objeto.

Tratar o esoterismo cristão supõe que se tenha previamente respondido à questão que levanta a noção de esoterismo enquanto tal, que se tratará na primeira parte do livro. Na segunda parte se trata do exame crítico das teses que Guénon desenvolveu a respeito do cristianismo, resumindo-as e confrotando-as com a realidade dos fatos tais quais apresentados no Novo Testamento  , na literatura eclesiástica dos primeiros séculos, a ciência histórica e a teologia católica. A última parte da obra visa mostrar que um “espírito de esoterismo” está efetivamente presente na tradição da Igreja e que se resume e se realiza em que esta tradição se denomina o “mistério do Cristo”. Esta parte positiva do trabalho que como um todo poderia se denominar: “da perspectiva esotérica ao mistério cristão”.