Ferreira da Silva (2010:90-93) – a vida nos povos aurorais

Assim como a vida não se desenrola num cenário já dado, mas é, ela mesma, uma eclosão de cenas, assim também o processo teogônico não transcorre num mundo físiconatural prefixado, mas é também uma total configuração da realidade. Podemos, portanto, estabelecer relações entre essas duas ordens de eventos, isto é, entre a série das formas vitais e a sucessão das hierofanias. Evidentemente, o que tentaremos fundamentar através dessa redução não é o ente biológico percebido pela consciência atual, uma vez que esse só existe para o nosso conhecimento fragmentador e intelectualista. A filosofia [90] romântica tentou justamente destruir a versão estática e material do vital, mostrando que os tipos e espécies conclusos e fechados são momentos de detenção, configurações instantâneas de uma onda móvel e incircunscritível. O pensamento tentou marchar do produto acabado para o produzir infinito, que forma e organiza as expressões finitas da vida, contemplando nessa atividade original o centro de expansão da vida. Já afirmamos, entretanto, que essa sucessão criadora foi transcrita pelo pensamento filosófico, numa dimensão naturalística, compreendida a partir do simples estar-aí intramundano. Outro fato a ser assinalado é a determinação da força morfogenética da vida como princípio endereçado para o homem, nesse encontrando seu coroamento existencial, o que provocou o rebatimento da vida pré-humana a um mero plano preparatório e inconcluso.

A partir da afirmação do hominismo, o conjunto infinito da vida não pôde deixar de se manifestar como acontecer espaçotemporal neutro e como representação para uma consciência. A transcendência da consciência humana reduziu as manifestações da vida à situação da transcendência transcendida, seja quando foi compreendida como processo cinemático criador, seja quando foi transcrita como processo fisiológico ou mecânico. Acompanhando o destino da objetividade em seu conjunto, a vida, como o já transcendido pela consciência, manifestou-se a modo de um mero pensado pelo pensamento. É evidente que a vida não podia revelar os seus segredos enquanto pensada como simples transcendência transcendida, ou enquanto mero estar-aí intramundano.

Já nas filosofias da vida, uma produtividade criadora vinha sendo captada como realidade última das formas biológicas, sob a espécie de uma Vida indivisa, que tinha nos entes em que se fragmentava uma expressão transeunte e exterior. A versão do multiplice, oferecida pelo intelecto, devia ser superada quando tentássemos aceder à fonte geradora da existência biológica. Outro tanto devemos fazer para justificar filosoficamente a inclusão da vida entre as hierofanias do divino. A mente dos povos [91] aurorais assim compreendeu as expansões das formas de vida, vendo no modo de ser variável dos vegetais e animais qualquer coisa de sagrado e de oprimente. O homem não se havia ainda destacado e oposto ao mundo das expressões vegetais e animais, porque, como assinala Jensen, “outrora, nos tempos primitivos, os homens ainda eram animais e os animais ainda eram homens, podendo assumir reciprocamente as duas formas de manifestação”. Evidentemente, as ideias de animal e vegetal eram totalmente diversas do grupo de significados que unimos hoje em dia a essas palavras. A palavra planta e a palavra animal designam agora objetivação de uma realidade transcendida e negada. Devemos imaginar, para nos intimizarmos com o espírito que desfrutava de uma proximidade mais funda com a essência da vida, que a cena vegetal, por exemplo, constituía uma prodigiosa realidade imposta à mimese humana como uma revelação do sagrado. Não era a materialidade e a presença tangível das árvores que aqueles seres viviam nos bosques e nas florestas, mas sim o arrebatamento de um modo de ser excelso e numinoso. Viviam o impulso surdo e imponente daquele transbordamento vital e sentiam-se como expressão do mesmo princípio e da mesma imaginação concreta. A substância dos deuses ou do deus vegetal subjugava e incluía em si a forma fluida dos povos do passado, ditando-lhes o desenho de seu mundo. A planta não era, para eles, um objeto intramundano transcendido em sua ação, mas a própria essência da vida, o horizonte a partir do qual compreendiam-se a si mesmos. Os episódios da cena vegetal constituíam a melodia contínua do seu viver, sendo o próprio mundo de essência vegetal. Os homens-planta eram plantas antes de ser homens. A transcendência da vida vegetal enchia os espaços do mundo-planta, com suas ramificações infinitas de galhos, folhas, flores e frutos. Tudo estava em continuidade com esse ir além gerador e, na dimensão fítica, cumpria-se o rito supremo do real e o encontro com a substância última das coisas. O mesmo podemos dizer em relação ao poder encantatório-totêmico do animal sobre a consciência do passado. Qualquer livro de etnologia ou de história das religiões relata-nos acerca [92] da esmagadora ascendência do desempenho da dramática animal sobre o comportamento auroral da existência. Os homens-cangurus, os homens-répteis, os homens-araras são expressões dessa primitiva autocaptação da vida em outras fases do tempo. Para ser possível um tal monopólio da consciência por uma representação animal devemos admitir que a cena animal, como conjunto fantástico de desempenhos, precisaria possuir um extraordinário fascínio, a ponto de atrair o diverso da operação humana. Esse modo de propor o problema é arriscado, entretanto, pois supõe uma prévia separação entre o comportamento cênico animal e a autonomia da ação humana. O cativeiro da forma humana no plexo das possibilidades cênico-animais é anterior, como vimos, à autoconsciência do homem; o prévio é uma unidade indivisa, uma matriz numinosa como potência mítico-vital. No interior da essência ofídica ou felina da cena mundanal é que o agente humano em potência vislumbra o seu papel. As paixões animais abrem caminho para os impulsos que são consignados ao protagonista histórico a partir da peça (Schau-Schuck) teriomórfica. Essa peça é o próprio ser da animalidade quando pensada em seu mostrar-se primordial, em sua transcendência não transcendida. O ser do animal não se põe como uma sucessão de fenômenos no espaço natural fixo, mas como a instauração de um mundo e a abertura de uma cena fantástica. Se a vida, em suas aparências variadas e caprichosas, foi compreendida pela filosofia bergsoniana em analogia com o impulso criador subjacente na obra de arte, podemos – mediante um esclarecimento radical desta última – sondar mais profundamente o oceano das expressões vitais.

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