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Sartre (EH) – O homem é o futuro do homem
sexta-feira 13 de setembro de 2024, por
Disse um dia Ponge, num belíssimo artigo: «O homem é o futuro do homem.» É inteiramente exato. Todavia, se por tal se entende que esse futuro está inscrito no Céu, que Deus o vê, nesse caso é falso, porque então não seria sequer um futuro. Se entendermos que, seja qual for o homem, há um futuro a elaborar, um futuro virgem que o espera, então a expressão é justa. Mas nesse caso estamos abandonados.
Para vos dar um exemplo que permita compreender melhor o abandono, citarei o caso de um aluno meu que me procurou nas circunstâncias seguintes: o pai estava incompatibilizado com a mãe e pendia para o «colaboracionismo», seu irmão mais velho fora morto na ofensiva alemã de 1940 e o rapaz, animado de sentimentos um pouco primitivos mas generosos, pretendia vingá-lo. A mãe vivia sozinha com ele, afligida pela meia-traição do marido e a morte de seu filho mais velho, encontrando apenas consolação naquele que lhe restava. O rapaz devia escolher nesse momento entre partir para Inglaterra e alistar-se nas Forças Francesas Livres — isto é, abandonar a mãe, ou ficar junto dela e ajudá-la a viver. Bem se apercebia o rapaz de que a senhora apenas por ele vivia e que a desaparição dele — e talvez a sua morte — a mergulharia no desespero. Também se apercebia de que, no fundo, concretamente, cada ato que praticasse relativamente a sua mãe seria compensado, no sentido em que a ajudava a viver, ao passo que todo ato que fizesse para partir e combater era um ato ambíguo, que poderia perder-se no rada e para nada servir: por exemplo, ao partir para Inglaterra, poderia ficar indefinidamente num «campo» espanhol, ao passar por Espanha; poderia chegar a Inglaterra ou a Argel e ser colocado numa repartição a rabiscar papelada. Por conseguinte, achava-se ele perante duas espécies de ações muito diferentes: uma, concreta, imediata, que apenas se referia a um indivíduo; outra, a um conjunto infinitamente mais vasto, uma coletividade nacional, mas, por isso mesmo, ambígua e que poderia ser interrompida pelo caminho. E, ao mesmo tempo, hesitava entre duas espécies de moral. Por um lado, uma moral de simpatia, de dedicação individual; por outro, uma mais larga, mas de eficácia mais contestável. Tinha de escolher entre as duas. Quem o ajudaria a escolher? A doutrina cristã? Não. Diz a doutrina cristã: sede caritativos, amai o próximo, sacrificai-vos pelos outros, escolhei o caminho mais rude, etc. Mas qual é o caminho mais rude? Quem devemos amar como a um irmão, o combatente ou a mãe? Qual a utilidade maior, essa, vaga, de combater num conjunto, ou essa outra, determinada, de ajudar um ser preciso a viver? Quem pode decidi-lo a priori? Ninguém. Nenhuma moral o pode. Diz a moral kantiana: não trateis jamais os outros como meio, mas como fim. Muito bem; se fico perto da minha mãe, tratá-la-ei como fim, e não como meio, mas, por isso mesmo, arrisco-me a tratar como meio aqueles que combatem à minha volta; e, reciprocamente, se vou ter com os que combatem, tratá-los-ei como fim e, em consequência, corro o risco de tratar minha mãe como meio.
Se os valores são vagos, e sempre vastos em demasia relativamente ao caso preciso e concreto que consideramos, resta-nos apenas confiar no instinto2. Foi o que o rapaz tentou; quando me procurou, dizia ele: no fundo, o que conta é o sentimento; devo escolher o que me impele realmente em certa direção. Se sinto que amo bastante minha mãe para sacrificar a ela tudo o mais — o meu desejo de vingança, de ação, de aventura —, ficarei junto dela. Se, ao contrário, sinto que o amor por minha mãe não é bastante, partirei. Mas como determinar o valor de um sentimento? Que é que determinava o valor do seu sentimento pela mãe senão precisamente o fato de ficar por ela? Bem posso eu dizer: estimo bastante aquele amigo para lhe sacrificar certa importância em dinheiro; mas só tenho o direito de dizê-lo se o tiver realmente feito. Não posso determinar o valor dessa afeição senão precisamente por ter praticado um ato que a ratifica e a define. Ora, como peço a essa afeição que justifique o meu ato, acho-me enleado num círculo vicioso. [...]
O que há de comum entre a arte e a moral, é que criamos em ambos os casos. Não podemos decidir a priori o que há a fazer. Creio tê-lo mostrado de maneira suficiente quando vos falei do caso do aluno que me procurou e que podia dirigir-se a todas as morais, kantiana ou outras, sem encontrar nelas qualquer espécie de indicações; era obrigado a inventar ele mesmo a sua lei. Nunca diremos desse homem (que teria escolhido ficar junto de sua mãe tomando como base moral os sentimentos, a ação individual e a caridade concreta, ou que teria optado pela Inglaterra, preferindo o sacrifício) que fez uma escolha gratuita. O homem faz-se a si mesmo; de início está por fazer: faz-se escolhendo a sua moral, e a pressão das circunstâncias é tal que não pode deixar de escolher uma. Só definimos o homem relativamente a um empenhamento. É, portanto, absurdo censurarem-nos a gratuitidade da escolha.
Dizem-nos também que não podemos julgar os outros. É em certa medida verdadeiro e falso em outra. Verdadeiro, no sentido em que, cada vez que o homem escolhe o seu compromisso e o seu projeto com toda a sinceridade e lucidez, seja qual for aliás esse projeto, é impossível preferir outro; é verdadeiro no sentido em que não acreditamos no progresso; o progresso é uma melhoria; o homem é sempre o mesmo em face de uma situação que varia e a escolha é sempre uma escolha em uma situação. [...]
Todavia, pode entretanto formular-se um juízo, porque, como vo-lo disse, escolhemos perante os outros. Primeiro, podemos ajuizar (e talvez não seja um juízo de valor, mas um juízo lógico) que certas escolhas assentam no erro e outras na verdade. Podemos ajuizar de um homem dizendo que ele está de má fé. Se definirmos a situação de um homem como uma escolha livre, sem desculpas nem auxílios, todo homem que se refugia na desculpa das suas paixões, todo homem que inventa um determinismo, é um homem de má fé.
Ver online : Jean-Paul Sartre