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Orfeu Nascimento do Panteão Grego

segunda-feira 28 de março de 2022, por Cardoso de Castro

  

"Toda a voz do Oceano Infinito canta na cavidade singela de um molusco. Sua vida é participação, ainda que por instantes, de um beijo, de um abraço divino."

O "divino" Platão   e posteriormente a Escola de Alexandria sustentavam que existe na alma uma faculdade superior ao entendimento racional, passível de ser desenvolvida pelo entusiasmo. O entusiasmo, no seu verdadeiro sentido (en-theos, estar em Deus), desenvolve a inspiração divina produzindo o êxtase.

Nas escolas místicas da Índia, ensina-se que o êxtase se produz quando a alma abandona sua esfinge terrestre e submerge no oceano do espírito. O asceta perde consciência de sua própria individualidade e se converte no Todo, mergulhando no Ele coletivo. Este arrebatamento íntimo produz o "silêncio religioso" da mente finita tentando compreender o infinito, e permite ouvir, nas profundezas da alma, a voz do Universal, do impessoal, o que os gnósticos   chamavam o Abismo.

Nas escolas ortodoxas hindus, o êxtase é considerado um modo de reintegração quebrando a ilusão da separatividade. Em um primeiro estágio a alma penetra a essência da natureza eterna e esta lhe comunica, sem símbolos, a Verdade-Luz. Em um segundo estágio, o enlevo pasma a alma, que é arrebatada pelo Espírito até o mundo dos arquétipos celestes, divinos.

Estas experiências de êxtase místico são comuns a todas as profissões de fé, recebendo diferentes nomes segundo sua origem, como: samádi, satori, furor, delírio sagrado, ou hierogamia, e seria próprio da vida contemplativa, vida angélica ou, como dizia Plotino  , "vida sem corpo, no corpo".

Platão define o êxtase como a iluminação da alma pelos deuses ou gênios que doravante, sob a influência divina, engloba todas as coisas e prevê o futuro. Todavia, classificava o entusiasmo, o êxtase, em quatro tipos: em primeiro lugar, o êxtase musical; em segundo, o teléstico ou místico; em terceiro, o profético; enfim, o quarto, aquele que se refere ao amor.

Cornélio Agrippa  , no terceiro volume de sua Filosofia Oculta, faz um extenso comentário sobre esta classificação quaternária, afirmando que o primeiro êxtase procede das Musas, o segundo, de Dionisos, o terceiro, de Apolo, e o quarto, de Vênus.

O primeiro êxtase imanta a inteligência, tornando-a divina, capaz de atrair as influências superiores pela virtude das coisas naturais (plantas, perfumes, voz, música, harmonia, afeições da alma, imaginação impetuosa). As Musas são as almas das esferas celestes que dirigem as qualidades atraentes das coisas materiais, com relação ao que se encontra no alto. O êxtase musical deve ser entendido aqui como uma arte divina e não somente como arte. Música é o farfalhar das asas de anjos, meio de alcançar analogia, o desconhecido a partir do conhecido. O segundo êxtase se alcança pelas cerimônias e rituais, sacramentos, solenidades e pompas religiosas. Sublima a alma na região espiritual. O êxtase de Dionisos faz de nossa alma um templo purificado, digno de ser visitado pelos deuses e, quando eles aí vão habitar, há efusão de alegria divina, de sabedoria inefável. O terceiro êxtase, proveniente de Apolo, obtém-se pelos mistérios sagrados, as adorações, as invocações e por virtude dos objetos consagrados. E o espírito das profecias que desce sobre um mortal e o invade completamente. Purificada a alma pelo todo-poderoso amplexo de Deus, vaticina os oráculos de suprema sabedoria. O quarto êxtase, presença de Afrodite, identifica a alma humana à natureza divina, fusão temporária da alma humana transfigurada pela divindade transfigurante, que lhe infunde sabedoria em um abraço sublime, transpondo os limites do entendimento. É a razão pela qual Orfeu considerou o amor cego como superior ao entendimento humano.

Nestes quatro exemplos de fenomenologia espiritual reside o arcano da alma humana, obscurecida momentaneamente pelos sentidos, porém, através dos êxtases que, como aguilhão fulgurante de um pensar sem pensamentos, ou como a flama criadora da arte, ilumina espontaneamente e por intervalos a lugubridade do existir.

A lenda de Orfeu ou Arpha (de aur, luz; e rophae, curar) — "aquele que cura pela luz", três vezes coroado, nos infernos, na terra e no céu, filho de Apolo, gênio da Grécia sagrada — nos narra sua visão extática das Musas.

Imobilizado de estupor, escutou o canto das filhas de Zeus e Mnemósine, que vendo nele um eleito mensageiro da renovação religiosa assim falaram para sua alma:

— Eu sou Calíope, a Musa da palavra profunda e inspirada. Orfeu, não expliques os deuses que concebes, canta-os como um poeta, e teu canto os vestirá de bondade e beleza profunda.

— Eu sou Polímnia, a Musa dos hinos religiosos. Predica através de hinos mágicos a religião da beleza. Inspirarei em ti os poemas hexâmetros, que são os mais firmes, os mais melodiosos e solenes dos versos, gratos aos homens, gratos aos deuses.

— Eu sou Urânia, a Musa celeste. Não esqueças nunca que cada divindade do alto panteão que concebes tem seu espírito num astro. Invoca os deuses com os números, ângulos e medidas do universo. Ser-vir-te-ei de vínculo.

— Eu sou Euterpe, a Musa da música. Afina tua lira com os astros e que com ela vibrem as esferas celestes, pois com a música poderás transmutar a alma de todos os seres.

— Eu sou Erato, a Musa do grande amor. Acenderei teu coração de amor divino e humano para que sejas um mensageiro completo dos deuses na terra. Somente através de um grande amor consolidarás teu ideal entre os homens.

— Eu sou Clio, a Musa da história. Fixarei tua obra e tua vida na memória dos homens como exemplo de plenitude, de felicidade para as humanidades vindouras.

— Eu sou Terpsícore, a Musa da dança. Que tua prédica de mística beleza tenha um movimento: a dança que os astros em seus círculos estelares realizam no céu. Pela dança, corpos e almas se modelarão em beleza.

Talia e Melpômene, Musas da comédia e da tragédia, respectivamente, não aparecem nesta lenda por terem sido incorporadas posteriormente.

Em meio a músicas inefáveis a visão desvanecia-se. Orfeu emergia do encanto extático, arrebatado intimamente, porém antes que sua alma pudesse refletir sobre os acontecimentos que plasmavam seu entendimento, uma outra visão teofânica o invadiu: as Cárites, as Graças, as inseparáveis irmãs que acompanham Afrodite, manifestaram-se desejosas de outorgar-lhe seus dons.

Foi Sofrosina, a alegria, quem primeiro lhe disse: "A beleza sem graça seria apenas contemplativa. Lembra, Orfeu, que a alegria é a mais alta e a mais eficaz das orações informuladas".

Por sua vez, Talia, a graça propriamente dita, lhe aconselhou: "Adorna as almas como eu adorno   as plantas com flores. Transforma-as em jóias brilhantes. Aprende de mim que com o orvalho visto os prados da terra como reis e rainhas. Constrói para os homens uma divina e eterna primavera do espírito".

Por último, Aglaé, a resplandecente, a terceira das inseparáveis irmãs, falou-lhe: "Eu te concedo a graça da presença e da simpatia, o toque que capta, o magnetismo que seduz, a atitude que convence."

E, da mesma forma que as Musas, as Cárites desvaneceram-se.

Orfeu, recobrando-se de suas visões teofânicas, compreende, sem entender como, compreende os deuses, a ordem de como as coisas vieram a ser. Transfigurado, ordena o sagrado. O sentir confuso, o tempo mágico, por sua palavra é agora tempo sacro, religioso. Nasce o panteão grego.

"Na vida nos protegerá ZEUS, todo-poderoso, na morte, HADES, o invisível, como um pai bondoso. No mar, POSEIDON nos instruirá na perseverança, com os ritmos vitais das águas. Na terra, DEMÉTER, a grande mãe, nos ensinará a proteger os homens como ela faz com as frágeis sementes que com esperança sáo depositadas em seu seio. ARES nos dará valor para vencer nossos inimigos internos; e com AFRODITE, aprenderemos sobre o amor e a ternura. Com HÉSTIA, estreitaremos os vínculos familiares, e homens e mulheres estarão juntos para se honrarem mutuamente. HERMES, com sua luz maravilhosa, iluminará nossas sombras e as do mundo..."