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Deleuze (EFP:23-26) – A consciência é apenas um sonho de olhos abertos
segunda-feira 20 de abril de 2020, por
Daniel Lins & Fabien Pascal Lins
Espinosa propõe aos filósofos um novo modelo: o corpo. Propõe-lhe instituir o corpo como modelo: “Não sabemos o que pode o corpo...”. Esta declaração de ignorância é uma provocação: falamos da consciência e de seus decretos, da vontade e de seus efeitos, dos mil meios de mover o corpo, de dominar o corpo e as paixões — [24] mas nós nem sequer sabemos de que é capaz, um corpo. [1] Porque não o sabemos, tagarelamos. Como dirá Nietzsche , espantamo-nos diante da consciência, mas “o que surpreende é. acima de tudo, o corpo...”.
Todavia, uma das teses teóricas mais célebres de Espinosa é conhecida pelo nome de paralelismo: ela não consiste apenas cm negar qualquer ligação de causalidade real entre o espírito e o corpo, mas recusa toda eminência de um sobre outro. Se Espinosa recusa qualquer superioridade da alma sobre o corpo, não é para instaurar uma superioridade do corpo sobre a alma, a qual não seria mais inteligível. A significação prática do paralelismo aparece na inversão do princípio tradicional em que se fundava a Moral como empreendimento de dominação das paixões pela consciência: quando o corpo agia, a alma padecia, dizia-se, e a alma não atuava sem que o corpo padecesse por sua vez (regra da relação inversa, cf. Descartes . Tratado das paixões, artigos I e 2). Segundo a Ética, ao contrário, o que é ação na alma é também necessariamente ação no corpo, o que é paixão no corpo é por sua vez necessariamente paixão na alma. [2] Nenhuma preeminência, pois, de uma série sobre a outra. Que quer então dizer Espinosa quando nos convida a tomar o corpo como modelo?
Trata-se de mostrar que o corpo ultrapassa o conhecimento que dele temos, e o pensamento não ultrapassa menos a consciência que dele temos. Não há menos coisas no espírito que ultrapassam a nossa consciência que coisas no corpo que superam nosso conhecimento. É, pois, por um único e mesmo movimento que chegaremos, se for possível, a captar a potência do corpo para além das condições dadas do nosso conhecimento, e a captar a força do espírito, para além das condições dadas da nossa consciência. Procuramos adquirir um conhecimento das potências do corpo para descobrir paralelamente as potências do espírito que escapam à consciência, e poder compará-los. Em suma, o modelo do corpo, segundo Espinosa, não implica nenhuma desvalorização do pensamento em relação à extensão, porém, o que é muito mais [25] importante, uma desvalorização da consciência em relação ao pensamento: uma descoberta do inconsciente e de um inconsciente do pensamento, não menos profundo que o desconhecido do corpo.
E isso porque a consciência é naturalmente o lugar de uma ilusão. A sua natureza é tal que ela recolhe efeitos, mas ignora as causas. A ordem das causas define-se pelo seguinte: cada corpo na extensão, cada ideia ou cada espírito no pensamento são constituídos por relações características que subsumem as partes desse corpo, as partes dessa ideia. Quando um corpo “encontra” outro corpo, uma ideia, outra ideia, tanto acontece que as duas relações se compõem para formar um todo mais potente, quanto que um decompõe o outro e destrói a coesão das suas partes. Eis o que é prodigioso tanto no corpo como no espírito: esses conjuntos de partes vivas que se compõem e decompõem segundo leis complexas. [3]
A ordem das causas é então uma ordem de composição e de decomposição de relações que afeta infinitamente toda a natureza. Mas nós, como seres conscientes, recolhemos apenas os efeitos dessas composições e decomposições: sentimos alegria quando um corpo se encontra com o nosso e com ele se compõe, quando uma ideia se encontra com a nossa alma e com ela se compõe; inversamente, sentimos tristeza quando um corpo ou uma ideia ameaçam nossa própria coerência. Encontramo-nos numa tal situação que recolhemos apenas “o que acontece” ao nosso corpo, “o que acontece" à nossa alma, quer dizer, o efeito de um corpo sobre o nosso, o efeito de uma ideia sobre a nossa. Mas o que é o nosso corpo sob a sua própria relação, e nossa alma sob a sua própria relação, e os outros corpos e as outras almas ou ideias sob suas relações respectivas, e as regras segundo as quais todas essas relações se compõem e decompõem — nada sabemos disso tudo na ordem de nosso conhecimento e de nossa consciência. Em suma, as condições em que conhecemos as coisas e tomamos consciência de nós mesmos condenam-nos a ter apenas ideias inadequadas, confusas e mutiladas, efeitos distintos de suas próprias causas. [4] É [26] por isso que não podemos nem sequer pensar que as criancinhas sejam felizes, nem o primeiro homem seja perfeito: ignorantes das causas e das naturezas, reduzidos à consciência do acontecimento, condenados a sofrer efeitos cuja lei lhes escapa, eles são escravos de qualquer coisa, angustiados e infelizes, na medida de sua imperfeição. (Ninguém melhor que Espinosa se insurgiu contra a tradição teológica de um Adão perfeito e feliz.)
Como a consciência acalma a sua angústia? Como pode Adão imaginar-se feliz e perfeito? Por meio de uma tripla ilusão. Considerando que a consciência recolhe apenas efeitos, ela vai suprir a sua ignorância invertendo a ordem das coisas, tomando os efeitos pelas causas (ilusão das causas finais): o efeito de um corpo sobre o nosso, ela vai convertê-la em causa final da ação do corpo exterior; e fará da ideia desse efeito a causa final de suas próprias ações. Desde esse momento, tomar-se-á a si própria por causa primeira e invocará o seu poder sobre o corpo (ilusão dos decretos livres). Nos casos em que a consciência não pode mais imaginar-se causa primeira, nem organizadora dos fins, invoca um Deus dotado de entendimento e de vontade, operando por causas finais ou decretos livres, para preparar para o homem um mundo na medida de sua glória e dos seus castigos (ilusão teológica). [5] Não basta sequer dizer que a consciência gera ilusões: ela é inseparável da tripla ilusão que a constitui, ilusão da finalidade, ilusão da liberdade, ilusão teológica. A consciência é apenas um sonho de olhos abertos. “É assim que uma criancinha julga apetecer livremente o leite; um rapaz irritado, a vingança; e o medroso, a fuga. Um homem embriagado julga também que é por uma livre decisão da alma que conta aquilo que, mais tarde, em estado de sobriedade, preferia ter calado.” [6] (p. 23-26)
Robert Hurley
Spinoza offers philosophers a new model: the body. He proposes to establish the body as a model: “We do not know what the body can do ... ” This declaration of ignorance is a provocation. We speak of consciousness and its decrees, of the will and its effects, of the thousand ways of moving the body, of dominating the body and the passions—but we do not even know what a [18] body can do. [7] Lacking this knowledge, we engage in idle talk. As Nietzsche will say, we stand amazed before consciousness, but “the truly surprising thing is rather the body ...”
Yet, one of the most famous theoretical theses of Spinoza is known by the name of parallelism·, it does not consist merely in denying any real causality between the mind and the body, it disallows any primacy of the one over the other. If Spinoza rejects any superiority of the mind over the body, this is not in order to establish a superiority of the body over the mind, which would be no more intelligible than the converse. The practical significance of parallelism is manifested in the reversal of the traditional principle on which Morality was founded as an enterprise of domination of the passions by consciousness. It was said that when the body acted, the mind was acted upon, and the mind did not act without the body being acted upon in turn (the rule of the inverse relation, cf. Descartes, The Passions of the Soul, articles 1 and 2). According to the Ethics, on the contrary, what is an action in the mind is necessarily an action in the body as well, and what is a passion in the body is necessarily a passion in the mind. [8] There is no primacy of one series over the other.
What does Spinoza mean when he invites us to take the body as a model? It is a matter of showing that the body surpasses the knowledge that we have of it, and that thought likewise surpasses the consciousness that we have of it. There are no fewer things in the mind that exceed our consciousness than there are things in the body that exceed our knowledge. So it is by one and the same movement that we shall manage, if possible, to capture the power of the body beyond the given conditions of our knowledge, and to capture the power of the mind beyond the given conditions of our consciousness. One seeks to acquire a knowledge of the powers of the body in order to discover, in a parallel fashion, the powers of the mind that elude consciousness, and thus to be able to compare the powers. In short, the model of the body, according to Spinoza, does not imply any devaluation of thought in relation to extension, but, much more important, a [19] devaluation of consciousness in relation to thought: a discovery of the unconscious, of an unconscious of thought just as profound as the unknown of the body.
The fact is that consciousness is by nature the locus of an illusion. Its nature is such that it registers effects, but it knows nothing of causes. The order of causes is defined by this: each body in extension, each idea or each mind in thought are constituted by the characteristic relations that subsume the parts of that body, the parts of that idea. When a body “encounters” another body, or an idea another idea, it happens that the two relations sometimes combine to form a more powerful whole, and sometimes one decomposes the other, destroying the cohesion of its parts. And this is what is prodigious in the body and the mind alike, these sets of living parts that enter into composition with and decompose one another according to complex laws. [9] The order of causes is therefore an order of composition and decomposition of relations, which infinitely affects all of nature. But as conscious beings, we never apprehend anything but the effects of these compositions and decompositions: we experience joy when a body encounters ours and enters into composition with it, and sadness when, on the contrary, a body or an idea threaten our own coherence. We are in a condition such that we only take in “what happens” to our body, “what happens” to our mind, that is, the effect of a body on our body, the effect of an idea on our idea. But this is only our body in its own relation, and our mind in its own relation, and the other bodies and other minds or ideas in their respective relations, and the rules according to which all these relations compound with and decompose one another; we know nothing of all this in the given order of our knowledge and our consciousness. In short, the conditions under which we know things and are conscious of ourselves condemn us to have only inadequate ideas, ideas that are confused and mutilated, effects separated from their real causes. [10] That is why it is scarcely possible to think that little children are happy, or that the first man was perfect: ignorant of causes and natures, [20] reduced to the consciousness of events, condemned to undergo effects, they are slaves of everything, anxious and unhappy, in proportion to their imperfection. (No one has been more forceful than Spinoza in opposing the theological tradition of a perfect and happy Adam.)
How does consciousness calm its anguish? How can Adam imagine himself happy and perfect? Through the operation of a triple illusion. Since it only takes in effects, consciousness will satisfy its ignorance by reversing the order of things, by taking effects for causes (the illusion of final causes)’, it will construe the effect of a body on our body as the final cause of its own actions. In this way it will take itself for the first cause, and will invoke its power over the body (the illusion of free decrees). And where consciousness can no longer imagine itself to be the first cause, nor the organizer of ends, it invokes a God endowed with understanding and volition, operating by means of final causes or free decrees in order to prepare for man a world commensurate with His glory and His punishments (the theological illusion). [11] Nor does it suffice to say that consciousness deludes itself: consciousness is inseparable from the triple illusion that constitutes it, the illusion of finality, the illusion of freedom, and the theological illusion. Consciousness is only a dream with one’s eyes open: “The infant believes he freely wants the milk; the angry child that he freely wants vengeance; and the timid, flight. So the drunk believes that it is from a free decision of the mind that he speaks the things he later, when sober, wishes he had not said.” [12]
Original
Spinoza propose aux philosophes un nouveau modèle : le corps. Il leur propose d’instituer le corps en modèle : « On ne sait pas ce que peut le corps... > Cette déclaration d’ignorance est une provocation : nous parlons de la conscience et de ses décrets, de la volonté et de ses effets, des mille moyens de mouvoir le corps, de dominer le corps et les passions — mais nous ne savons même pas ce que peut un corps [13]. Nous bavardons, faute de savoir. Comme dira Nietzsche, on s’étonne devant la conscience, mais, « ce qui est surprenant, c’est bien plutôt le corps... »
Pourtant, une des thèses théoriques les plus célèbres de Spinoza est connue sous le nom de parallélisme : elle ne consiste pas seulement à nier tout rapport de causalité réelle entre l’esprit et le corps, mais interdit toute éminence de l’un sur l’autre. Si Spinoza refuse toute supériorité de l’âme sur le corps, ce n’est pas pour instaurer une supériorité du corps sur l’âme, qui ne serait pas davantage intelligible. La signification pratique du parallélisme apparaît dans le renversement du principe traditionnel sur lequel se fondait la Morale comme entreprise de domination des passions par la conscience : quand le corps agissait, l’âme pâtissait, disait-on, et l’âme n’agissait pas sans que le corps ne pâtisse à son tour (règle du rapport inverse, cf. Descartes, Traité des passions, articles 1 et 2). D’après l’Ethique, au contraire, ce qui est action dans l’âme est aussi nécessairement action dans le corps, ce qui est passion dans le corps est aussi nécessairement [28] passion dans l’âme [14]. Nulle éminence d’une série sur l’autre. Que veut donc dire Spinoza quand il nous invite à prendre le corps pour modèle ?
Il s’agit de montrer que le corps dépasse la connaissance qu’on en a, et que la pensée ne dépasse pas moins la conscience qu’on en a. Il n’y a pas moins de choses dans l’esprit qui dépassent notre conscience que de choses dans le corps qui dépassent notre connaissance. C’est donc par un seul et même mouvement que nous arriverons, si c’est possible, à saisir la puissance du corps au-delà des conditions données de notre connaissance, et à saisir la puissance de l’esprit au-delà des conditions données de notre conscience. On cherche à acquérir une connaissance des puissances du corps pour découvrir parallèlement les puissances de l’esprit qui échappent à la conscience, et pouvoir comparer les puissances. Bref, le modèle du corps, selon Spinoza, n’implique aucune dévalorisation de la pensée par rapport à l’étendue, mais, ce qui est beaucoup plus important, une dévalorisation de la conscience par rapport à la pensée : une découverte de l’inconscient, et d’un inconscient de la pensée, non moins profond que l’inconnu du corps.
C’est que la conscience est naturellement le lieu d’une illusion. Sa nature est telle qu’elle recueille des effets, mais elle ignore les causes. L’ordre des causes se définit par ceci : chaque corps dans l’étendue, chaque idée ou chaque esprit dans la pensée sont constitués par des rapports caractéristiques qui subsument les parties de ce corps, les parties de cette idée. Quand un corps « rencontre » un autre corps, une idée, une autre idée, il arrive tantôt que les deux rapports se composent pour former un tout [29] plus puissant, tantôt que l’un décompose l’autre et détruise la cohésion de ses parties. Et voilà ce qui est prodigieux dans le corps comme dans l’esprit : ces ensembles de parties vivantes qui se composent et se décomposent suivant des lois complexes [15]. L’ordre des causes est donc un ordre de composition et de décomposition de rapports, qui affecte à l’infini la nature entière. Mais nous, comme êtres conscients, nous ne recueillons jamais que les effets de ces compositions et décompositions : nous éprouvons de la joie lorsqu’un corps rencontre le nôtre et se compose avec lui, lorsqu’une idée rencontre notre âme et se compose avec elle, de la tristesse au contraire lorsqu’un corps ou une idée menacent notre propre cohérence. Nous sommes dans une telle situation que nous recueillons seulement « ce qui arrive » à notre corps, « ce qui arrive » à notre âme, c’est-à-dire l’effet d’un corps sur le nôtre, l’effet d’une idée sur la nôtre. Mais, ce qu’est notre corps sous son propre rapport, et notre âme sous son propre rapport, et les autres corps et les autres âmes ou idées sous leurs rapports respectifs, et les règles d’après lesquelles tous ces rapports se composent et se décomposent — tout cela, nous n’en savons rien dans l’ordre donné de notre connaissance et de notre conscience. Bref, les conditions dans lesquelles nous connaissons les choses et prenons conscience de nous-mêmes nous condamnent à n’avoir que des idées inadéquates, confuses et mutilées, effets séparés de leurs propres causes [16]. C’est pourquoi nous ne pouvons guère penser que les petits enfants soient heureux, ni le [30] premier homme, parfait : ignorants des causes et des natures, réduits à la conscience de l’événement, condamnés à subir des effets dont la loi leur échappe, ils sont esclaves de toute chose, angoissés et malheureux, à la mesure de leur imperfection. (Nul plus que Spinoza ne s’est élevé contre la tradition théologique d’un Adam parfait et heureux.) (p. 27-30)
Ver online : Deleuze
[1] Ética. III. 2. escólio.
[2] Ética. III. 2. esc. (e II. 13. esc.).
[3] Mesmo o espírito possui considerável número de partes: cf. Ética. II. 15.
[4] Ética. II. 28. 29.
[5] Ética, I. apêndice.
[6] Ética. III. 2. esc.
[7] Ethics, III, 2, scholium.
[8] Ethics, III, 2, schol. (and II, 13, schol.).
[9] Even the mind has a very large number of parts: cf. Ethics, II, 15.
[10] Ethics, II, 28, 29.
[11] Ethics, I, appendix.
[12] Ethics, III, 2, schol
[13] Ethique, III, 2, scolie.
[14] Ethique, III, 2, sc. (et II, 13, sc.).
[15] Même l’esprit a un très grand nombre de parties : cf. Ethique, II, 15.
[16] Ethique, II, 28, 29.