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Yvette Centeno (1987:115-126) – Fausto de Goethe

terça-feira 6 de junho de 2023, por Cardoso de Castro

  

»Doch dieser hat gelernt, Er wird uns lehren«. ["Mas este aprendeu, irá ensinar-nos."] Goethe  , Faust

A magia, como têm observado os seus estudiosos, constitui um universo coerente de ideias, uma representação global do homem e do mundo, semelhante, pela função, à das concepções religiosas, tradicionais e oficiais, embora se desenvolva à margem delas. É a angústia da consciência inquisidora das razões e dos mistérios do universo que se projecta na magia, enquanto forma útil de apreensão e domínio desse mesmo universo.

«A um mundo superior dominado pelas forças do bem opõe-se um mundo inferior dominado pelas forças do mal; o mundo terreno, intermédio, surge como palco de disputa dessas forças, impondo ao homem uma vida constantemente ameaçada, pois a sua natureza o inclina para o mal e para o castigo eterno; aos agentes divinos na Terra, ou sacerdotes, opõem-se os agentes dos demônios, ou seja, os mágicos, as feiticeiras e os adoradores de falsos deuses.» Esta citação, retirada de um estudo de F. Bethencourt, O Imaginário da Magia [1] aplica-se, não apenas à situação no século XVI, que é objecto do seu estudo, mas ainda à situação que se pode verificar no século XVIII, época em que Goethe escreve Fausto.

Aqui vemos, logo no «Prólogo no Céu», que se trata de uma aposta entre Deus e o Diabo, visando a conquista da alma do herói. Este viverá dilacerado entre dois polos, o do bem e o do mal, o do apagamento humilde, levando à transformação, e o da ambição desmedida, levando ao uso e ao abuso de um poder que lhe é dado para depois melhor lhe ser retirado.

Trata-se, no século XVI como no século XVIII, de manipular as forças da natureza, utilizando-as em proveito próprio ou alheio, graças à obtenção de poderes concedidos por um pacto com o demônio. No caso do Fausto de Goethe o pacto «superior» (a aposta entre Deus e o Diabo) encontra no plano «inferior» o seu eco, através do pacto de Fausto com Mefistófeles.

O pacto irá conferir-lhe poderes especiais quanto ao conhecimento (da natureza, do universo e de Deus) e quanto aos sentimentos (fazer-se amar por Gretchen ou Helena). Irá ainda abrir-lhe um vasto campo de intervenção social: domina a corte, conduz a guerra, conquista e modifica territórios.

Tanto a magia como a religião, escreve Malinowski [2], surgem em situações de crise emocional. É o que se verifica com o herói de Goethe. «Nacht», a cena em que Fausto aparece (e em que já simbolicamente se alude às trevas do seu espírito) descreve magistralmente o desencanto e o desespero em que o herói se encontra:

Fausto: Estudei, ai de mim, Filosofia, Direito e Medicina
E Teologia também, infelizmente
com grande aplicação
E eis-me agora, pobre tolo,
exactamente igual ao que era dantes;
Sou mestre, sou até Doutor,
E há já dez anos
Que enrolo os estudantes—
E vejo que nada podemos saber!
Por isso me dediquei à magia,
Talvez pela força e virtude do Espírito alguns mistérios me sejam revelados;
E eu reconheça o que o Mundo
No íntimo contém.
E possa contemplar as forças e as causas actuantes
Em vez de traficar com frases ocas.

Estudou as disciplinas tradicionais com afinco, só para concluir que afinal não sabe nada. E que a sua vida é um quadro de pura desolação. Justifica assim o ter-se dedicado à magia: para ver se, «por força e virtude do Espírito» chega a alcançar algum mistério. Pretende conhecer o mundo, na sua estrutura última, contemplar as forças em movimento, sem sem preocupar mais com discursos estéreis. Não busca a letra morta, mas o espírito vivo e actuante.

O signo do Macrocosmos, que contempla num livro de Nostradamus, extasia-o primeiro, pois nele descobre a infinita «cadeia dos seres» e a harmonia do uno e do todo, celebrada pelos alquimistas. Mas não é a contemplação, nem o êxtase, que ele ambiciona agora (ou por enquanto). Esses dizem respeito às mutações da alma. O que ele ambiciona agora é a mutação do mundo à sua volta, ou melhor da sua relação com o mundo à sua volta: que de passiva se tornará dominadora.

Igualmente frustrante é a experiência seguinte, com o Espírito da Terra, cuja visão não consegue suportar. Cai na tentação do suicídio, mas é salvo a tempo pelo Coro dos Anjos. O Salvador, o Mestre que os Anjos anunciam, não será Deus, neste primeiro momento, mas o Diabo, sob a forma de um cão preto [3]. Fausto vai passar à acção, com a ajuda de Mefistófeles, a força «que quer sempre o mal e faz sempre o bem». Ou ainda, na sua definição, «o Espírito que sempre nega» (v.1335;/1338). O Mal é o seu elemento. E é com este elemento que Fausto se vai defrontar. No entanto, a relação que se estabelece é muito ambígua: o herói não crê que Mefisto lhe possa apaziguar a alma e os seus obscuros anseios.

"Que podes tu, pobre diabo, dar-me?" Nunca o espírito humano foi abarcado nas suas aspirações por demônios ou afins. Estes oferecem iguarias que não saciam ninguém, ouro falso que foge por entre os dedos... Mostra-me, diz Fausto, "árvores que todos os dias reverdeçam".

E segue-se o desafio, e a aposta: se alguma vez ele parar repousando indolente, que caia morto logo; e se alguma vez com lisonjas se deixar iludir, pois o diabo que o leve.

Mefistófeles aceita a aposta, para a qual se encontrava mais do que preparado. E atingimos um dos pontos célebres da acção quando o nosso herói exclama:

"Se eu disser ao momento que passa:
Permanece! És tão belo!
Podes então prender-me com cadeias,
Sem discussão cairei derrotado..."

Fausto aposta com Mefistófeles que nada o fará parar, nem comprazer-se em si mesmo, entregando-se sem mais ao gozo do momento. O que pretende é fazer explodir os limites do eu, alargando-o até à dimensão da humanidade inteira. (Quer viver tudo, de todas as maneiras, como diriam os modernistas do século XX, pela boca de Fernando Pessoa  :)

"Quero sentir em mim mesmo
O que foi dado à Humanidade inteira
... alargar o que sou até aos seus limites."

O ponto alto é atingido em Hexenkuche, onde Fausto beberá um elixir de juventude e onde descobrirá, em reflexo num espelho, a imagem de Margarida. A descoberta da mulher, que equivale à descoberta da anima, marca a sua primeira grande mutação: não física apenas, mas igualmente (ou sobretudo) espiritual. Entre os dois modelos com que está a ser confrontado, o da velha bruxa e o da jovem Gretchen, é este que Fausto escolhe e é este que indirectamente o condiciona e conduz até ao final do drama.

Mefistófeles confessa que «não tem poder» sobre Margarida. Ela escapa à sua esfera de acção, inteiramente. Que é uma esfera reduzida, a da prática mágica; prende-se com a mutação do desejo, ou da vontade de poder, e a sua compensação, e não com os ideais de uma busca e de uma realização mais elevadas.

Apontaram-se deste modo duas esferas concomitantes de acção: aquela em que a magia é actuante, e aquela em que só uma arte superior, como a alquimia  , se pode vir a exercer, e dar bons frutos (os verdes frutos da Árvore da Vida). Em «Walpurgisnacht» desdobra-se o universo terreno, mas é do universo divino que o drama de Goethe efectivamente se irá ocupar. As bruxas, e o demônio com todos os seus truques de magia, representam a confusão dispersiva e destrutiva e não o verdadeiro movimento, de alma, que deve ser unitivo e criador.


Ver online : J. W. GOETHE


[1Francisco de Bethencourt, O Imaginário da Magia. Feiticeiras, Saludadores e Nigromantes no século XVI, Lisboa, 1986.

[2Bronislaw Malinowski, Magic, Science and Religion..., Souvenir Press, London 1974, p. 87 e segs.

[3Semelhante ao cão de Cornelius Agrippa von Nettesheim, segundo a tradição. Ver Auguste Prost, Les Sciences et les Arts Occultes au XVIe siècle. Corneille Agrippa, sa vie et ses oeuvres, Paris 1881-1882, 2 vols.