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Perry Reencarnação

sexta-feira 29 de dezembro de 2023, por Cardoso de Castro

  

Withall Perry — Reencarnação, fatos e fantasias
Nossa tradução parcial do resumo oferecido por CEAPT Symbole, em 30 de março de 2007

A reencarnação: uma impossibilidade metafísica

Este texto, do qual se publica os principais extratos, apareceu em 1966 na revista Études Traditionnelles   sob o título "A reencarnação, fatos e fantasias". O autor aí recorda, em uma parte introdutória, que a teoria da "reencarnação" emergiu de novo durante o século XIX seduzindo "certas almas, mais fortes de sentimento do que de teologia". Através da tradução de textos orientais — dos quais nem sempre se compreendeu o caráter simbólico de certas expressões -, acreditou-se ser esta teoria corroborada pelo Hinduísmo ou o Budismo. Ela permite a alguns encontrar "uma certeza reconfortante na perspectiva de vidas sucessivas sobre a terra", enquanto outros experimentam "uma satisfação histórica mais concreta na ’contemplação’ de suas existências anteriores enquanto Ashoka, Alexandre o Grande, Catarina de Médicis ou Jeremia Bentham  ...". Mas a reencarnação, sustenta W. N. Perry, testemunha antes de tudo de uma incompreensão das doutrinas da transmigração e da metempsicose — e permanece, como o afirmam todas as doutrinas autenticamente tradicionais, uma impossibilidade metafísica.

A pesagem das almas. Papiro de Ani.

"Um surpreendente número de pensadores distintos, em cada período da história, sustentaram, ou na ocasião consideraram favoravelmente, a idéia de existências repetidas sobre esta terra", diz o prefácio de uma obra recente e vastamente documentadas sobre o assunto (1). E um etnólogo, J.H. Hutton, escrevendo na Enciclopédia Britânica (XIVa edição), nos diz que a alma, nas tradições germânicas, se escapa pela boca sob a forma de uma serpente, de uma fuinha ou de um rato; e de um inseto, na Índia. Os Bakongs de Borneo pensariam que seus mortos reencarnam-se em gatos selvagens, enquanto que certas tribos do Assam pensam que as vespas e marimbondos são almas dos mortos, ou que os cantores podem se tornar cigarras, mas que o resto das pessoas devem se transformar em escaravelhos. A crer nesta autoridade, os Akikuyus da África Oriental imaginam que as almas dos defuntos vivem no ficus; enquanto os Nagas Konyaks do assam estão persuadidos que as almas podem se encontrar nas construções funerárias fálicas contendo crânios humanos. Quando o mesmo etnólogo nos conta que as almas de Tristão e Isolda se reencarnaram sob a forma de árvores enlaçadas acima de seus túmulos, assim como crê que Shakespeare   entendia que as estátuas de ouro construídas à memória de Romeo e Julieta deviam ser reencarnações dos célebres amantes. É sempre o mesmo erro clássico: confundir a realidade e o símbolo, ou melhor, é a completa ignorância da existência mesmo de uma linguagem dos símbolos baseada sobre correspondências que se encontram em todo universo. Um monge tibetano pode, de maneira justificável, identificar um belo peixe vermelho com um lama falecido naquele instante: o peixe pode efetivamente simbolizar uma qualidade do lama, ou indicar um estado paradisíaco que foi alcançado. E nenhum Nativo da América confundiria jamais um quadrupede, um pássaro ou uma planta, com seu "segredo", a saber a mensagem que é portador para aqueles que são capazes de ler a linguagem.

Confusões e incompreensões

Seria inoportuno recapitular em detalhe as questões tratadas a fundo por René Guénon no "Erro Espírita" e em outras obras. Como le explica, a longevidade, a materialização, a transmigração, a paligenesia, a metempsicose e outros fenômenos (aí compreendido o lado mais sinistro que se relaciona aos resíduos psíquicos e à possessão) foram confundidos por falta de definições adequadas e de compreensão, com aquilo que se denomina reencarnação. E para tratar séria e exaustivamente o assunto, deveria-se se apoiar sobre um estudo da natureza da alma ela mesma (2), natureza tão pouco conhecida do homem contemporâneo (3). Em resumo, a tese "reencarnacionista" surge de um incompreensão das doutrinas da transmigração (a passagem de um ser a outros estados da existência) e a metempsicose (a transferência de elementos psíquicos de um ser a outro), e ela está ela mesma fundamentada sobre um duplo erro: 1) que possa haver uma continuidade de um eu individual se este deixa a condição humana e transmigra através de estados sucessivos de existência; 2) que um ser (jivatma, bhutatma) possa repetir um estado determinado. Estas duas posições implicam em uma cisão na unidade da Natureza Divina, enquanto que a doutrina dos estados múltiplos do Ser pressupõe como corolário a unicidade do Princípio Supremo: "Deus é ao mesmo tempo Uno e todas as coisas", disse Hermes; "não que o Uno seja dois, mas que estes dois são um; pois o todo que é feito de todas as coisas é um". Enquanto que a multiplicidade dos nascimentos é o lote do si mesmo passível e iludido (bhutatma), que só é tal indivíduo em relação a uma única vida, o conhecimento dos nascimentos é unicamente atribuído ao Si mesmo: "Ele (Agni) conhece todos os nascimentos" (Rig Veda  ); — "O Arjuna, tu e eu passamos através muitos nascimentos. Eu os conheço todos, mas não os conhece, o Parantapa" (Bhagavad-Gita  ); — "O homem nasce uma vez, eu nasci muitas vezes" (São João); — "É sempre um único e mesmo nascimento, tanto quanto a alma nasça de novo para Deus, da mesma maneira que o Pai engendra seu Filho único" (Eckhart  ). é precisamente esta Pessoa engendrada uma única vez que pode ser "omni-progenitura", e por aí mesmo omnipresente, e assim necessariamente omniciente e capaz de se "relembrar" de seus nascimentos: "Se houvesse verdadeiramente "outros", ou alguma descontinuidade no interior da unidade, cada "outro" ou "parte" não será omnipresente ao resto, e o conceito de uma omniciência seria impossível" (Coomaraswamy, Do Uno e Único Transmigrante).

"O homem nasce uma vez, eu nasci muitas vezes" (Divani Shamsi Tabriz  )

"Não se pode pôr o pé duas vezes no mesmo curso d’água..."

Para compreender a impossibilidade metafísica para um ser (bhutatma) de passar duas vezes pelo mesmo estado, pode-se seguir a demonstração de René Guénon (no Erro Espírita, capítulos II e VI) e considerar os estados múltiplos do ser na sua simultaneidade como tantas modalidades do Si mesmo, para as quais a sucessão é lógica ou causal me lugar de "cronológica" (a condição "tempo" sendo, do mesmo modo que a condição "espaço", uma particularidade de nosso estado). O ser em questão aparece então "fragmentado" em um indefinidade de determinações, das quais cada uma compreende um conjunto de condições compondo essencialmente um só estado, quase da mesma maneira que um ser humano contém "embrionariamente" todas as possibilidade de sua vida terrestre e, por extensão, de seu estado, desde antes de seu nascimento. Pretender que o ser pode passar duas vezes pelo mesmo estado equivaleria a dizer que ele pode ser determinado duas vezes pela mesma determinação — o que é uma contradição manifesta. Nos próprios termos de Guénon: "Duas possibilidade idênticas só seriam uma única e mesma possibilidade; para que elas sejam verdadeiramente duas, é preciso que elas difiram por uma condição pelo menos, e então elas não são idênticas" (op. cit., p. 213) Quando ele falou de possibilidades idênticas, não é o "acidente" de um nascimento particular, em um momento particular, no interior de um certo mundo, que importa, mas são as condições essenciais determinando integralmente este mundo como tal em sua totalidade, que contam como formando um conjunto único. É somente no interior das porções finitas de todo estado ou conjunto que pode haver aquilo que denominamos "repetição", pois o Infinito (que está necessariamente no centro de todo estado em seu arquétipo incriado) exclui por definição toda repetição. Cada estado, com efeito, pode ser considerado como resumido em um arquétipo "estático" cujas possibilidades são esgotadas para o ser que nele se "torna", mesmo de um maneira periférica ou fragmentária. Assim é que Heráclito   o expressa: "Não se pode pôr duas vezes o pé no mesmo curso d’água, pois são outras águas que passam sem cessar". E um signo para nós, nesta vida mesma, é a absoluta irreversibilidade do tempo.

Mas deixemos de lado por um momento esta exposição metafísica e suponhamos que se admita a possibilidade de existências repetidas sobre a terra; isto nos confronta ainda com um ensinamento que se encontra em todas as tradições e que faz com que a questão da reencarnação pareça de fato acadêmica: é que todas as possibilidade de existência, sem exceção, que se manifestaram no curso do ciclo cósmico, devem ser recapituladas na consumação deste ciclo, em uma discriminação final, um acerto de contas, no dia do Juízo Final, ou a intenção e o destino últimos de caca coisa criada se encontram fixadas pela eternidade (4). Todos os seres humanos (pois é isto que nos interessa aqui) que alcançaram sua salvação, são aí liberados de toda implicação ulterior na "Corrente das Formas", e não há motivo para que um ser rejeite a ilimitação de um estado supra-formal pela aprisionamento em um estado de individuação (a questão dos Bodhisattvas e Avataras não entra neste contexto). Quem então "reencarnará"? Não as almas do Purgatório, pois sua salvação eventual esta assegurada, e toda provação, qualquer que seja, está terminada quando o juízo geral tem lugar. Não as almas do danados, pois as saídas do inferno estão celadas, quaisquer que sejam os termos de evolução da duração que tomemos como medida. Resta portanto a categoria das pessoas que não são nem bastante reais para serem "salvas", nem bastante más para serem "danadas", e pode-se considerar a possibilidade de um estado "limbário" no qual elas permaneçam até a culmincação do ciclo, quando então são liberadas ou melhor rejeitadas na sansara (5): "Porque tu és morno, e não quente, nem frio, te vomitarei de minha boca". de todo modo, não há para elas nenhuma possibilidade de obter um segundo nascimento no interior do mesmo ciclo, ou em outro estado de existência, antes que o ciclo corrente tenha terminado e que as contas fechadas na Balança, no equilíbrio final (6). O Corão é inflexível sobre este ponto: "quando a morte vem em direção de um dentre eles ele diz: ’Meu Senhor! Reenvie-me, para que eu possa fazer o bem naquilo que deixei para trás de mim!’ Mas não! é simplesmente um desejo que ele exprime; e há atrás deles uma barreira (barzakh) até o Dia em que ressuscitem". E quando o Dia das Contas chegue, tudo aquilo que toca à reencarnação terá perdido sua urgência, no mínimo: "Quando a trombeta soar, neste dia, não haverá mais parentesco entre eles que têm e não se indagarão mais uns sobre os outros" (Surata XXIII 99-101).

Posto que és morno, e nem quente, nem frio, te vomitarei de minha boca".

Crença popular

A teologia cristão é igualmente inexorável; pelo renascimento em outros corpos, passando "de lado" do Juízo, se expiará pelos pecados que não se tem conhecimento". "Por outro lado, não há razão para crer que uma nova provação deverá se seguir, depois da morte. Pois no caso do homem, que agora é incitado à virtude pela incerteza do momento da morte e a certeza da retribuição eterna, seria tentado pela perspectiva de uma nova provação de deixar levar por suas paixões na vida presente, e retardar sua conversão e o serviço a Deus atá a morte.. donde a exortação do Cristo de obrar enquanto se faz dia antes que a noite (da morte) venha, quando nenhum homem não pode trabalhar (7)" (W. Wilmers S.J.   : Manual da Religião Cristã, NY, 1891, Sect. 210).

Voltemos agora ao destino daqueles que foram "vomitados"na Sangsara (é bem o termo que convém; a perda do estado humano — logo do estado central — é aquilo que Guénon denomina "uma terrível possibilidade"); as tradições asiáticas ensinam que tais seres podem ser obrigados a passar através de éones de existências periféricas antes que a bendição de um nascimento central lhes seja concedido uma vez ainda (8). Mas se supomos, para servir nossa demonstração, que um nascimento central seja finalmente alcançado em algum ciclo subsequente da humanidade terrestre, algum manvantara futuro ou mesmo um kalpa ulterior antes do maha-pralaya — mesmo concedendo tudo isto, as chances parecem bem longínquas para que este nascimento coincida com este único e insignificante momento, em um ciclo inteiro, onde a questão da "reencarnação" possa ainda se pôr.

Deveria se insistir, para terminar, sobre o fato que, para um oriental, esta "crença popular" na reencarnação se tornou virtualmente inofensiva, haja visto a herança tradicional que conduz o oriental a apreender pela intuição o essencial sem se embaraçar nas definições. O ocidental no entanto, que se manteve ao abrigo destas perspectivas por sua formação monoteísta, se torna, quando aí se expõe, vulnerável e pronto — com suas faculdades críticas e sua imaginação passional -, a levá-las em direções desviadas que podem fazer aparecer como risíveis a teologia e as doutrinas tradicionais concernente aos estados póstumas do ser.

Não há essência particular que renasça", diz o Milinda Panha; e basta lembrar-se como é dito no Satapatha Brahmana  , que os mortos partiram "de uma vez por todas".

W. N. P.