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Guénon Ciencia Sagrada

quarta-feira 27 de dezembro de 2023, por Cardoso de Castro

  

René Guénon — A CRISE DO MUNDO MODERNO

Excertos de «CIÊNCIA SAGRADA E CIÊNCIA PROFANA», trad. António Carlos Carvalho

Acabamos de dizer que nas civilizações que possuem carácter tradicional a intuição intelectual está no princípio de tudo; por outras palavras, é a pura doutrina metafísica que constitui o essencial, e tudo o resto se liga a ela a título de consequências ou de aplicações nas diversas ordens, de realidades contingentes. Acontece, assim, nomeadamente, para as instituições sociais; e, por outro lado, o mesmo é verdadeiro também no que diz respeito às ciências, ou seja, aos conhecimentos que se referem ao domínio do relativo, e que, em tais civilizações, não podem ser vistas senão como simples dependências e, de certo modo, como prolongamentos ou reflexos do conhecimento absoluto e principal. Assim, a verdadeira hierarquia é por toda a parte sempre observada: o relativo não é de modo nenhum tido como inexistente, o que seria absurdo; é tomado em consideração na medida em que merece sê-lo; mas é colocado no seu devido lugar, que só pode ser um lugar secundário e subordinado; e mesmo neste relativo há graus muito diversos, segundo se trata de coisas mais ou menos afastadas do domínio dos princípios.

Existem, então, no que respeita às ciências, dois conceitos radicalmente diferentes e mesmo incompatíveis entre eles, que podemos chamar o conceito tradicional e o conceito moderno; tivemos muitas vezes ocasião de aludir a essas «ciências tradicionais» que existiram na Antiguidade e na Idade Média, que continuam a existir no Oriente, mas de que até a própria ideia é totalmente estranha para os ocidentais dos nossos dias. Deve-se acrescentar que cada civilização teve «ciências tradicionais» de um tipo particular, que lhe são próprias, porque aqui já não estamos na ordem dos princípios universais, à qual se refere apenas a Metafísica pura, mas sim na ordem das adaptações, em que, por se tratar de um domínio contingente, deve ser levado em conta o conjunto das condições, mentais e outras, que são as de um certo povo, e diremos mesmo deste período da existência desse povo, dado que vimos mais atrás que há épocas em que as readaptações se tornam necessárias. Estas «readaptações» não são senão mudanças de forma, que em nada atingem a própria essência da Tradição; para a doutrina metafísica, só a expressão pode ser modificada, de uma maneira que é (bastante comparável à tradução de uma língua para outra; quaisquer que sejam as formas de que se reveste para se exprimir, na medida em que isso é possível, só existe absolutamente uma Metafísica, como só há uma verdade. Mas quando se passa às aplicações o caso é naturalmente diferente: com as ciências, tal como com as instituições sociais, estamos no mundo da forma e da multiplicidade; é por isso que se pode dizer que outras formas constituem verdadeiramente outras ciências, mesmo se elas têm, pelo menos parcialmente, o mesmo objeto. Os logistas têm por hábito ver uma ciência como inteiramente definida pelo seu objecto, o que é inexato por excesso de simplificação; o ponto de vista segundo o qual este objecto é encarado deve também entrar em linha de conta na definição da ciência. Há uma multidão indefinida de ciências possíveis; pode acontecer que diversas ciências estudem as mesmas coisas, mas sob aspectos de tal modo diferentes, portanto, por métodos e com intenções também de tal modo diferentes, que não serão, por isso, ciências realmente menos distintas. Este caso pode, em particular, apresentar-se para as «ciências tradicionais» de civilizações diversas, que, embora comparáveis entre elas, não são, no entanto, sempre assimiláveis umas às outras, e muitas vezes não poderiam senão abusivamente ser designadas pelos mesmos nomes. A diferença é ainda muito mais considerável, é evidente, se, em lugar de estabelecer uma comparação entre «ciências tradicionais», que, pelo menos, têm todas o mesmo caráter fundamental, se quiser comparar estas ciências, de um modo geral, com as ciências tal como são concebidas pelos modernos; à primeira vista pode parecer, por vezes, que o objeto é o mesmo de um lado e de outro e, no entanto, o conhecimento que os dois tipos de ciência dão respectivamente desse objeto é de tal modo diferente que se hesita, após um exame mais amplo, em afirmar ainda a sua identidade, mesmo que seja apenas sob um certo aspecto.