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Goethe (1993:35-42) – Prefácio à "Doutrina das Cores"

terça-feira 6 de junho de 2023, por Cardoso de Castro

  

Quando se fala das cores, não se deve, em primeiro lugar, mencionar a luz? Pergunta bem natural, que responderemos de modo sucinto e direto, pois até agora se disse tanta coisa a respeito da luz, que nos parece inconveniente repetir o que já foi dito, ou acrescentar algo àquilo que muitas vezes se repetiu.

Expressar a essência de algo é propriamente um empreendimento inútil. Percebemos efeitos, e uma história completa destes bem poderia abranger a essência daquele. Em vão nos esforçamos por descrever o caráter de uma pessoa, mas basta reunir suas ações e feitos para que uma imagem de seu caráter nos seja revelada.

As cores são ações e paixões da luz. Nesse sentido, podemos esperar delas alguma indicação sobre a luz. Na verdade, luz e cores se relacionam perfeitamente, embora devamos pensá-las como pertencendo à natureza em seu todo: é ela inteira que Assim quer se revelar ao sentido da visão.

A totalidade da natureza também se mostra a outro sentido. Fechando os olhos, o ouvido se aguça: do mais leve sussurro ao mais selvagem ruído, do som mais simples à mais elevada harmonia, do grito mais veemente e apaixonado à palavra mais suave da razão, é somente a natureza que fala e revela sua presença, poder, vida e relações. Mesmo privado da visibilidade infinita, um cego pode, pela audição, perceber uma infinita vitalidade.

Assim fala a natureza ao incindir sobre outros sentidos conhecidos, não-reconhecidos ou ainda desconhecidos; assim fala consigo mesma e conosco através de milhares de fenômenos. Em parte alguma emudece ou morre para o observador atento. Mesmo ao rígido corpo terrestre ela dá um confidente, um metal, em cujas menores partes se pode perceber aquilo que ocorre com a massa inteira.

Por mais variada, confusa e incompreensível que essa linguagem nos possa parecer, seus elementos permanecem sempre os mesmos. A natureza oscila com um leve movimento pendular, cria um aqui e um ali, um alto e um baixo, um antes e um depois, aos quais estão condicionados todos os fenômenos, que se manifestam para nós no tempo e espaço.

Ainda que percebamos tais movimentos e determinações gerais das mais diversas maneiras, como simples atração e repulsão, luz que se acende e se apaga, vibração do ar, comoção dos corpos, oxidação e desoxidação, no entanto sempre os percebemos na medida em que se unificam ou se separam, animam a existência e promovem alguma forma de vida.

Quando se acreditou ter descoberto tais oscilações de efeitos diversos, procurou-se determinar essa relação: por toda parte se observou e se designou um mais e um menos, uma força e uma resistência, uma ação e uma paixão, um avançar e um retroceder, uma violência, uma moderação, um masculino, um feminino. Daí surgiu uma linguagem, um simbolismo possível de ser aplicado em casos semelhantes como alegoria, expressão análoga ou palavra apropriada e imediata.

Aplicar essas designações universais, essa linguagem natural à Doutrina das Cores, enriquecê-las e ampliá-las por meio desta, pela variedade dos fenômenos, facilitar a comunicação de intuições mais elevadas entre os amigos da natureza, tal foi o objetivo principal da presente obra.

O trabalho se divide propriamente em três partes. A primeira contém o esboço de uma Doutrina das Cores. Nela, as diversas manifestações são reduzidas a certos fenômenos principais, apresentados numa ordem justificada na Introdução. Deve-se, entretanto, notar que, embora a experiência sempre seja fundamental, o enfoque teórico não pode deixar de ser enunciado, já que motiva tal exposição e ordenação.

Que experiências sejam apresentadas sem nenhum ‘Vínculo teórico e que se deixe o leitor ou estudante tirar como quiser suas conclusões, eis uma exigência estranha, que jamais ser cumprida mesmo por aqueles que a fazem. Pois apenas olhar para as coisas não pode ser um estímulo para nós. Cada olhar envolve uma observação, cada observação uma reflexão, cada reflexão uma síntese: ao olharmos atentamente para o mundo já estamos teorizando. Devemos, porém, teorizar e proceder com consciência, autoconhecimento, liberdade e se for preciso usar uma palavra audaciosa com ironia: tal destreza é indispensável para que a abstração, que receamos, não seja prejudicial, e o resultado empírico, que desejamos, nos seja útil e vital.

Na segunda parte, procuramos desvendar a teoria newtoniana, que, com autoridade e força, tem-se oposto à livre investigação dos fenômenos cromáticos. Combatemos essa hipótese, igue, apesar de ter-se tomado inoperante, desfruta de tradicional prestígio entre os homens. Para que a Doutrina das Cores não se atrase em relação a outras disciplinas da doutrina da natureza, seus vínculos devem ser esclarecidos e os velhos erros, eliminados.

Uma vez que o conteúdo da segunda parte do trabalho pode parecer por demais árido, e sua execução viva e apaixonada, pedimos que nos seja concedida aqui uma alegoria jovial, enquanto nos preparamos para matéria mais grave, desculpando-nos de algum modo pelo procedimento veemente.

A teoria das cores de Newton pode ser comparada a una cidadela, erguida com precipitação juvenil pelo construtor, que a ampliou e ocupou progressivamente segundo as vicissitudes e circunstâncias da época, fortificando-a e guarnecendo-a a cada nova hostilidade e conflito.

Seus herdeiros e seguidores foram tentados a fazer o mesmo: quando se precisou ampliar a edificação, devido ao aumento das necessidades internas, à pressão dos inimigos e a uma série de incidentes, construíram um anexo aqui, um segundo ali e um terceiro mais adiante.

Todas essas partes e anexos estranhos tiveram de ser por sua vez interligados através das mais singulares galerias, corredores e passagens. Todos os danos causados, pela mão do inimigo ou pelo poder do tempo, também tiveram de ser rapidamente reparados. À medida que se tomava necessário, muralhas eram erguidas, o fosso aprofundado, e não faltavam torres, balcões e canhoneiras. Todo esse esforço e cuidado resultou numa ideia preconcebida acerca do grande valor da fortaleza, embora a técnica de construir e fortificar tivesse avançado com o tempo e já se tivesse aprendido a fazer, noutros casos, habitações e defesas muito mais eficazes. Entretanto, tal qual uma virgem, a velha cidadela mantinha primorosamente sua honra, pois jamais foi conquistada, desfez vários assaltos, frustrou muitos combates. Seu renome e reputação perduram até hoje, não ocorrendo a ninguém pensar que a velha construção já se tornou inabitável. Ainda se fala da notável resistência, da excelência da obra. Peregrinos para lá se dirigem, rápidos esboços dela são exibidos em todas escolas, incentivando a juventude receptiva a venerá-la. Enquanto isso, a construção permanece vazia, guarnecida apenas por inválidos, que acreditam seriamente estar armados.

Não se trata aqui de um cerco demorado ou de uma luta incerta. Ao contrário, já encontramos essa oitava maravilha do mundo como uma relíquia abandonada, prestes a desabar. Sem cerimônia começamos a retirar o telhado e a cumeeira, para que o sol enfim ilumine o velho ninho de ratos e corujas, mostrando ao peregrino admirado o estilo labiríntico e incongruente, a precariedade, o acúmulo circunstancial, o artifício e os reparos malfeitos da construção. Isso só será percebido quando as cúpulas e muralhas forem, umas após as outras, demolidas e o escombro, tanto quanto possível, removido.

Realizar essa empreitada, nivelando o terreno onde for possível, reutilizar o material aproveitável na construção de um novo edifício: tal é a difícil tarefa que nos propomos para a segunda parte. Se, empregando toda força e habilidade, tivermos êxito em derrubar essa Bastilha, conquistando um terreno livre, de forma alguma construiremos sobre ela um novo edifício. Desejamos ao contrário utilizar esse espaço para apresentar um belo cortejo de figuras as mais variadas.

A terceira parte é dedicada a investigações históricas e trabalhos preliminares. Se afirmamos acima que o homem é caracterizado por sua história, da mesma forma podemos afirmar aqui ; que a história da ciência é a própria ciência. Não se pode ter um Conhecimento claro daquilo que se possui sem saber reconhecer o que outros adquiriram antes de nós. Tampouco se podem aproveitar verdadeira e dignamente as vantagens de uma época sem entender e valorizar as vantagens do passado. No entanto, não era possível escrever ou preparar uma História da Doutrina das Cores enquanto perdurasse a doutrina de Newton. Pois, em sua presunção aristocrática e insuportável arrogância, a escola newtoniana Mo se dignava a olhar para aqueles que não pertenciam à corporação: depreciava tanto aquilo que havia sido anteriormente realizado, quanto o que era feito em sua época. Com contrariedade e desgosto, observamos que em sua História da Ótica Priestley, assim como tantos outros antes e depois dele, considerava que o progresso no mundo das cores datava da época em que o raio de luz havia sido decomposto. E, além disso, desdenhava os antigos e medievais, que percorreram serenamente o caminho certo e nos legaram, em observações e pensamentos isolados, aquilo que não podemos nem fazer nem conceber melhor.

Temos o direito de exigir, daquele que se propõe a transmitir a história de qualquer ciência, que nos informe como os fenômenos foram sendo pouco a pouco conhecidos, imaginados, supostos, concebidos e pensados. Expor todo esse conjunto é uma tarefa árdua, pois escrever uma história é sempre algo incerto, onde, apesar de toda a sinceridade do propósito, se corre o risco de ser injusto. Quem se propuser a fazer tal apresentação deverá, antes de mais nada, esclarecer que algumas coisas serão trazidas à luz, e outras deixadas na sombra.

Há muito tempo o autor tem se alegrado com esse trabalho. Porém, dado que apenas o propósito se apresenta como um todo em nossa mente, mas a execução normalmente só se cumpre pouco a pouco, temos, ao invés da história, apenas os materiais para ela: um conjunto de traduções, resumos, juízos próprios e alheios, sugestões e indicações que, mesmo não correspondendo a todas as exigências, não pode deixar de ser louvado pelo fato de ter sido feito com seriedade e amor. Esses materiais, inacabados mas não toscos, podem ser tanto mais agradáveis ao leitor que reflete, quanto mais este tenha ocasião de formar, a seu modo, um todo a partir deles.

Essa terceira parte histórica não esgota a matéria: resta uma quarta parte suplementar, que contém a revisão, justamente em vista da qual os parágrafos são numerados. Ao redigir um trabalho como este, pode-se esquecer de muitas coisas ou ser necessário omiti-las para evitar a dispersão, ou ainda posteriormente ser necessário verificá-las e corrigi-las: suplementos, notas e emendas são, portanto, indispensáveis, possibilitando que citações sejam aduzidas. Este volume contém também alguns ensaios isolados (por exemplo, sobre as cores atmosféricas), que, embora apareçam de maneira dispersa no esboço, são entretanto ali reunidos e apresentados de uma só vez à imaginação.

Se este último estudo leva o leitor a experiências ao ar livre, um outro estimulará o saber técnico através de uma descrição pormenorizada do aparato necessário a uma futura Doutrina das Cores.

Resta por fim falar das ilustrações que acompanham o conjunto. Aqui somos sem dúvida levados a lembrar a imperfeição e incompletude que nosso trabalho tem em comum com todas as obras do gênero.

Pois, assim como mal se pode pôr no papel metade de uma boa peça de teatro, a maior parte dela cabendo ao esplendor do palco, à personalidade, à força da voz, à propriedade dos gestos do ator, e ao espírito e bom humor do público, o mesmo sucede, se bem que em maior escala, com um livro, ao tratar de fenômenos naturais. Para que seja aproveitada e desfrutada, a natureza deve se apresentar realmente ou por meio de viva fantasia ao leitor. Na verdade, o escritor deve falar e apresentar os fenômenos aos ouvintes como num texto em que uma parte deles vem até nós sem que os busquemos, enquanto a outra parte pode ser vista mediante dispositivos deliberadamente construídos para esse fim; só então comentários, interpretações e esclarecimentos produzirão um vivo efeito.

As ilustrações que costumam acompanhar textos como este não substituem adequadamente os fenômenos. Um fenômeno físico livre, ao produzir efeitos por toda parte, não pode ser apreendido linearmente ou indicado por um simples corte. Não ocorre a ninguém elucidar experiências químicas através de figuras. Já em experiências físicas semelhantes isso é comum, pois se pode alcançar uma coisa mediante a outra. Tais figuras, no entanto, com frequência apenas exibem conceitos, são mediações simbólicas, meios hieroglíficos de comunicação, que pouco a pouco ocupam o lugar dos fenômenos e da natureza e, ao invés de proporcionar um conhecimento verdadeiro, criam obstáculos para ele. Mas as ilustrações tampouco podem ser dispensadas; procuramos, no entanto, organizá-las de forma que possam ser seguramente empregadas para uso didático e polêmico, assim como enquanto parte do aparato necessário.

Só nos resta, desse modo, remeter ao próprio trabalho, repetindo antes, contudo, um pedido que tantos autores já fizeram sem êxito, e que o leitor alemão contemporâneo, em especial, raramente considera:

Si quid novisti rectius istis,
Candidus imperti; si non, his utere mecum. [1]

Ver online : J. W. GOETHE


[1"Se conhece algo melhor, perdoa minha candura; se não, desfruta comigo." Segundo Speiser (op. cit., p. 957), a passagem é de Horácio, Epístola I, 6.