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Fragmentos de Filolau

segunda-feira 28 de março de 2022, por Cardoso de Castro

  

Excertos de "Pitágoras e o Tema do Número" de Mario Ferreira dos Santos   - Mário Ferreira dos Santos
FRAGMENTOS DE FILOLAU

Fr. 1 — a. O ser que pertence ao mundo (kosmos) é um composto harmônico de elementos ilimitados e de elementos limitados: é assim tanto do mundo (kosmos) em seu todo, como de todas as coisas que ele encerra.

b. Todos os seres são necessariamente limitados ou ilimitados, ou ao mesmo tempo limitados e ilimitados; mas não poderiam ser todos apenas ilimitados... (Este corresponde ao fr. 2 de Diels).

Distinguem-se estas teses:

1) Há um ser que pertence ao mundo (kosmos). Consequentemente, deve haver outro ser que não pertence ao mundo.

2) O primeiro é um ser composto; portanto, deve haver outro que não é composto.

3) A composição do primeiro é constituída da harmonia de elementos opostos, ilimitados uns (apeiron) e limitados (perainonton) outros.

4) Compostos são, pois, o kosmos como um todo, e também as partes que o compõem.

5) Todos os seres (eonta) são necessariamente (ananka) limitados ou ilimitados: ou, simultaneamente, limitados e ilimitados.

Não podem, porém, ser todos ilimitados.

O fragmento continua:

Ora, já que é claro que os seres não podem ser formados nem de elementos que sejam todos limitados, nem de elementos que sejam todos ilimitados, é evidente que o mundo, em seu todo, e os seres, que estão nele, são um composto harmonioso de elementos limitados e de elementos ilimitados. É o que se observa nas obras de arte, (as realizadas pelo homem). Destas, as que são feitas de elementos limitados, são elas limitadas; as que são feitas de elementos limitados e ilimitados são, ao mesmo tempo, limitadas e ilimitadas, e as que são feitas de elementos ilimitados, parecem ilimitadas.

Podemos deduzir as seguintes teses:

6) que os seres deste mundo (kosmos) não podem ser formados de elementos apenas limitados. Neste caso onde o atomismo dos pitagóricos, que alguns afirmam?

7) Nem tampouco pode ser o kosmos um composto de seres ilimitados.

8) O kosmos é um conjunto harmonioso dos seres limitados e ilimitados. E estes são constituídos, harmonicamente, de elementos limitados e ilimitados; são "ex" (desde de), pois, em grego não é expresso o verbo, mas apenas a preposição que dá o sentido do que é feito "de", a matéria de alguma coisa.

9) Há distinção, assim, entre o mundo (kosmos) e a cultura, as coisas feitas pelo homem, (tais ergois), ou seja, a distinção entre a Natura e a Cultura. Naquela, as coisas são como acima dissemos. Mas, nesta, podem ser criadas de apenas elementos ilimitados, ou de apenas limitados e ilimitados, ou de apenas ilimitados, segundo parecem (phaneontai).

10) Verificar-se-á oportunamente que, para Piátgoras, o número é a combinação harmônica do par e do ímpar, do limitado e do ilimitado, cujo sentido apofântico teremos a oportunidade de clarear mais adiante.

Continuam os fragmentos:

"E todas as coisas, as que pelo menos são conhecidas, têm número; pois não é possível que uma coisa qualquer seja ou pensada ou co nhecida sem o número. O número possui duas formas próprias: o ímpar e o par, e uma terceira, proveniente da combinação das duas outras, o par-ímpar. Cada uma dessas formas é susceptível de "formas" muito numerosas, que cada uma individualmente manifesta".

11) É atribuído a Filolau, por Nicômaco de Gerasa, que "a harmonia é universalmente o resultado de contrários: que ela é a unidade do múltiplo, o acordo dos discordantes". Se essa passagem pode ser posta em dúvida como de autoria de Filolau, não se pode duvidar ser este o conceito de harmonia, aceito pelos pitagóricos, como ainda veremos. O número é uma combinação harmônica do par e do ímpar. O par e ímpar antecedem ao número, como se verá. E, segundo o texto, o que se depreende é o que segue:

As coisas conhecidas o são por que são limitadas-ilimitadas. Noutro fragmento, citado por Iamblichus   (Iamblichus), Filolau afirma que "de antemão (a priori), um objeto de conhecimento não pode ser conhecido se for ele apenas ilimitado"; isto é, se revelar apenas imparidade, ausência de paridade, de algo que se coloque de par a outro, que se assemelha a outro, para o qual se tenham esquemas que permitam uma assimilação.

Para que algo seja portanto cognoscível (gignoskomenon), exige-se o número, ou, seja, que tenha um número (paridade e imparidade). O número possuí duas formas próprias (ideai, eide): paridade e imparidade.

Cada uma dessas formas (eide - eidos) é susceptível de "formas" (morphai) muito numerosas, que cada uma, individualmente, aponta (manifesta). Morphe corresponde melhor ao termo alemão Gestalt. Seriam Gestalten, formas constitutivas, estruturais, da coisa.

Prossegue Filolau:

"Eis o que há quanto à natureza e à harmonia: a essência das coisas é uma essência eterna; é uma natureza única e divina, cujo conhecimento não pertence ao homem; contudo, não seria possível que nenhuma das coisas que são, e por nós são conhecidas, chegassem ao nosso conhecimento, se essa essência não fosse o fundamento interno dos princípios de que o mundo foi formado; ou seja, dos elementos limitados e dos elementos ilimitados. Ora, já que esses princípios não são semelhantes entre si, nem de natureza semelhante, seria impossível que a ardem do mundo fosse formada por eles, se a harmonia não tivesse intervindo, seja de que modo essa intervenção tenha sido produzida. Com efeito, as coisas semelhantes e de natureza semelhante não tiveram necessidade da harmonia; mas as coisas dissemelhantes, que não tem nem uma natureza semelhante, nem uma função igual, para poderem ser colocadas no conjunto ligado do mundo, devem estar encadeadas pela harmonia".

12) Traduz-se em geral o termo esto por essência, como o faz também Diels por Wesen, essência. Contudo, pode-se observar que, em Arquitas, em Stobeu, e em outros pitagóricos, esse termo é usado em oposição a morphe (forma estrutural, figurativa, exterior), e indica propriamente a substância, como ousia. Tomada essência neste sentido, a tradução está certa. Portanto, ela é eterna. Na natureza, a sua essência (o seu último sustentáculo) é eterna, única e divina. Eterna no sentido do que dura sempre (eviterna), e o conhecimento exaustivo dessa essência não pertence ao homem. Mas, sem essa essência, nada chegaria ao nosso conhecimento, porque nada teria um fundamento, pois ela é o fundamento interno dos princípios de que o mundo foi formado. Ela é o fundamento dos elementos limitados e dos elementos ilimitados, que constituem o mundo (natura, kosmos).

12) Não poderia constituir-se a ordem do mundo se não houvesse uma harmonia entre elementos tão dissemelhantes para encadeá-los numa totalidade (holos).

Mas os dissemelhantes, os que não têm uma natureza semelhante, os seres heterogêneos, para se harmonizarem e formarem uma unidade (holos), têm de ter entre si algo que os analogue. Quem diz semelhança diz o mesmo e o desigual, como quem diz dissemelhança, diz que difere e o que se repete. Se entre os seres houvesse uma separação absoluta seria impossível a harmonia. Essa a razão por que, para haver harmonia, afirmam os pitagóricos, impõe-se uma analogia, um logos analogante, que analogue as partes heterogêneas. O pitagorismo não é pluralista de nenhum modo.

E o que analoga, em última instância, todas as coisas é o Um, e este não é número.

"O Um (Unidade, monas) é o princípio de todas as coisas", diz Filolau.

Veremos, mais adiante, que o Um, aqui, é Monas e não Hen. É mais a unidade que, propriamente, o Um, que é o Ser Supremo do pitagorismo.

Prossegue Filolau, neste fragmento, examinando um ponto de magna importância para as futuras análises, que empreenderemos:

"Não se deve crer que os filósofos (os pitagóricos) comecem por princípios por assim dizer opostos: eles conhecem o princípio que está colocado acima desses dois elementos..., pois é Deus que hipostatiza o limitado e o ilimitado". Mostra Filolau que "é pelo limite que toda série coordenada das coisas se aproxima bastante do Um, e que é pela infinidade, que se produz a série inferior. Assim, acima desses dois princípios, eles (os filósofos) colocavam a causa única e separada, distinta de tudo pela excelência (valor). É essa causa que Arquenetas chamava a causa antes da causa: e é ela que afirma com força ser o princípio de tudo, e da qual Brontinos diz que ela ultrapassa em potência e em dignidade toda razão e toda essência". (Vide os fragmentos de Arquitas).

14) O Um é o Ser Supremo, Deus. Este está acima dos contrários, acima do limitado e do ilimitado. O limite aproxima as coisas ao Um, mas não o atinge, e é pela ilimitação que se produz a série inferior. Deus é a causa das causas, a causa primeira de todas as coisas, e ultrapassa em dignidade a todas elas.

"Aquele que comanda e governa tudo é um Deus um, eternamente existente, imutável, imóvel, idêntico a si mesmo, diferente de todas as coisas".

"Deus mantém todas as coisas como em cativeiro, e revela que e um e superior à matéria".

Manter em cativeiro é ser senhor de todas as coisas. É tê-las, ou seja: nada há fora dele, porque é ele o princípio e sustentáculo de todas as coisas.

Referindo-se ao mundo (kosmos), que sempre existiu, através de suas mutações, diz Filolau: "... já que o motor age de toda eternidade" (ab aeterno, pois é governado por um princípio, cuja natureza é semelhante á do mundo, mas cuja força é todo poderosa e soberana), "e continua eternamente a sua ação, e que o móvel recebe sua maneira de ser do motor que age sobre ele, resulta, necessariamente, daí que uma das partes do mundo imprime sempre o movimento, que a outra recebe, sempre passiva. Uma é inteiramente o domínio da razão e da alma; a outra, da geração e da mutação; uma é anterior em potência e superior, a outra posterior e subordinada. O composto dessas duas coisas, do divino eternamente em movimento, e da geração sempre mutável, é o Mundo. Eis por que há razão em dizer-se que ele é a energia eterna de Deus e do devir, que obedece às leis da natureza que muda. O Um permanece eternamente no mesmo estado e idêntico a si mesmo; o resto constitui o domínio da pluralidade, que nasce e que perece. Contudo, as próprias coisas, que perecem, salvam sua essência e sua forma, graças à geração, que reproduz a forma idêntica à do pai que as engendrou e as modelou".

Estas passagens de Filolau demonstram de modo categórico que jamais consideraram que o número (arithmos) fosse a última essência e a razão de ser de tudo quanto há, mas apenas a razão próxima das coisas, e não a última.

E é a razão (mas a que é desenvolvida pelo estudo das matemáticas), que é a verdadeira faculdade de discernir e de julgar. Mas, para Filolau, como também para os pitagóricos, não é a tomada em geral, mas a Razão desenvolvida pelo estudo das matemáticas, essa que é capaz de compreender a natureza de tudo, e que tem alguma afinidade de essência com aquela, pois "é da natureza das coisas que o semelhante seja compreendido pelo semelhante", afirmava ele.