Página inicial > Antiguidade > Eudoro de Sousa (HC:93-95) – Parmênides - doxa e aletheia

Eudoro de Sousa (HC:93-95) – Parmênides - doxa e aletheia

sexta-feira 7 de outubro de 2022, por Cardoso de Castro

  

Opinião dos Mortais

51. A «Doxa» é a parte mais fragmentária do poema de Parmênides  , o que parece dar razão aos intérpretes que formularam a hipótese de que essa última parte não passaria de um arranjo, mais ou menos hábil, das «opiniões físicas» dos antecessores do filósofo-poeta. Mas depois de Reinhardt (1916, 1959) e sob sua direta ou indireta influência, grande número de estudiosos bem viram quanto seria absurdo supor que a deusa do proêmio prometesse revelar opiniões mortais, do ponto de vista dos mortais, pois, sendo o próprio Parmênides um mortal, estava perfeitamente capacitado de saber tudo quanto os mortais pensavam. Portanto, se a revelação alcança a «Doxa», para além da «Verdade», essa revelação só pode ser de algo que os mortais ignoram acerca de suas próprias opiniões. Relativamente a esta inflexão da nova exegese (Riezler, Verdenius, Calogero, Gigon, Von Fritz, Frankel, Deichgräber, Untersteiner, Loenen, Schwabl, Mansfeld e outros) da posição de Tarán, a quem devemos a melhor edição do texto de Parmênides, uma sóbria tradução e pormenorizado comentário, o menos que se possa dizer é que ela se nos afigura extemporânea: do dilema «é» ou «não é», conclui que, para a «Doxa», não pode haver um tertium quid — como o seu objeto não é o Ser, a «Doxa» é um total equívoco e, não havendo graus de uma absoluta falácia, a via da opinião só pode ser falsa. Tratar-se-ia, em suma, de um «artifício dialéctico» (Tarán, 14-15); sendo inteiramente falsa, na medida em que admite dois princípios, em lugar de um só, demonstraria, por contraste, a única verdade do Ser único. Propondo o artifício literário do «Proêmio» e o artifício dialéctico da «Doxa», de Parmênides só resta a «Via da Verdade» e, portanto, mais uma vez se restabeleceria a posição clássica, naquele sentido de se dispensarem a primeira e a terceira partes do poema, como acessórias e supérfluas. A posição é sustentável até certo ponto, e o ponto certo é este: a «Doxa» não só vem depois da «Verdade», como também depende dela; não é simplesmente a opinião dos mortais, mas, sobretudo, a opinião sobre o mundo, de um mortal a quem o Ser já foi revelado e, portanto, a única que jamais será ultrapassada (frg. 8, 60-61) por opiniões de homens que não gozam dos benefícios da mesma revelação. Que assim é, provam-no, como provar se pode, os ecos da «Via da Verdade» na «Opinião dos Mortais», cujas intenções temos de reconhecer e pagar por seu justo valor. Um, resulta de comparar o v. 24 do frg. 8, onde se diz que na verdade do Ser «tudo está cheio do que é» (pân... émpleon estin eóntos), com o v. 3 do frg. 9, em que do mundo se afirma que «todo (ele) está cheio conjuntamente de Luz e Noite obscura» (pân pléon estín homoü pháeos kai nyktòs aphántou), e muito a propósito vem o comentário de Hölscher (p. 108): a totalidade e a continuidade do Ser fora provada para refutar o Não-Ser, nomeadamente, a imergência do Nada; a totalidade de Luz e Noite propõe-se agora na intenção de mostrar que o que quer que existe, ou é Luz ou é Noite (ou a mistura de Luz e Noite), «ambas iguais, posto que nem uma nem outra tem parte em Não-Ser» (frg. 9, 4); e assim, valem as predicações do Ser, também para este Totum do mundo sensível, que é a verdade acerca da aparência: não há geração de dentro do nada, nem corrupção para dentro do nada, não há vazio, nem um mais ou menos pleno, aqui ou ali; é um continuum, nos firmes limites de uma esfera. Estas últimas palavras, «nos firmes limites de uma esfera», trazem consigo o segundo e o terceiro dos «ecos» a que acima nos referíamos. A esfericidade do Ser parmenídeo vem diretamente expressa no v. 43 do frg. 8 — «semelhante à massa de bem arredondada esfera» (enkyklon sphaírõs enalínkon onkõí) —, e indiretamente, a do universo sensível, no frg. 12 (cf. 28 a 37, Diels-Kranz), com a sua doutrina cosmológica das «coroas» (stephanai) esféricas, alternadamente constituídas de Luz e de Noite, ou da mistura de ambas. Quanto aos «firmes limites» da Necessidade, é interessante notar que a Ananke intervém na «Via da Verdade» (8, 30-31), onde se diz que ela «mantém o que é nos liames do limite que o encerra por todos os lados», e na «Opinião dos Mortais» (10, 5-7): «e saberás também do céu circundante: donde nasceu e como, dirigindo, Ananke o força a manter o limite dos astros». Três coincidências, duas das quais se formulam quase pelas mesmas palavras, não se podem atribuir à mera casualidade.

Via da Verdade

52. A terceira parte do poema de Parmênides   não é, pois, artifício dialéctico, como a primeira não é artifício literário. A «Opinião dos Mortais» está intimamente ligada à «Via da Verdade» pela ideia de que o Ser só pode aparecer (ou «parecer a») com um mínimo de diferenciação. A correlação entre perceptibilidade, do lado do sujeito, e a diferença, do lado do objeto, não vem diretamente expressa em Parmênides, mas as primeiras linhas da Metafísica de Aristóteles, dir-se-ia que só foram escritas para evidenciá-la bem claramente: «Por natureza, todos os homens desejam conhecer; sinal disso, é o amor dos sentidos; pois, utilidade à parte, são estimados por si mesmos, e, mais do que todos, o da vista. Com efeito, não só para agir, mas também quando nada pensamos fazer, preferimos o sentido da vista, por assim dizer, a todos os demais. Causa é que, dos sentidos, é este o que mais nos faz conhecer, e nos revela mais diferenças.» Em contrapartida, a «Via da Verdade» é a argumentação lógica de que o Ser é pensável, enquanto indiferenciado: pensar e ser não é o mesmo (frgs. 3 e 8, 34), senão enquanto o Mesmo aí está para ser pensado e para ser, e só porque ser é ser o Mesmo e pensar é pensar o Mesmo, é que o mesmo é ser e pensar. Aqui podemos concordar plenamente com Tarán (193-194): «resta uma questão: se do Ser nada pode ser predicado, porque diz o próprio Parmênides que o Ser é imutável, único, etc., ou, porque é que o Ser tem sêmata (’sinais’) ou predicados? A resposta é que os sêmata do Ser são predicados puramente negativos, quer dizer, só negam diferença e são apenas a consequência da identidade do Ser consigo mesmo». Por cima de todas as notáveis divergências no pensar de Anaximandro   e Parmênides, convenha-se, pelo menos, em que tão notável é a convergência na mesma inclinação que mostram, para situar um Indiferenciado no horizonte extremo de toda a perceptibilidade. E aqui não vemos como evitar a qualificação «sem limites internos», para o ápeiron do filósofo de Mileto (cf. § 37): Tales e Anaxímenes   formam uma «escola» com Anaximandro, porque, sem dúvida, a «água» do primeiro era uma feliz imagem do Indiferenciado: quanto mais pura e cristalina, tanto mais se prestava, qualquer massa de água, para figurar «o que não tem limites internos». E com isto, abria-se a porta por onde havia de entrar o «ar» de Anaxímenes. Aliás, na codificação mítica, entidades como o Oceano, o Caos, ou mesmo a Noite, suportam até certo ponto a comparação com o Indiferenciado; o ponto certo é a homogeneidade que, no limite da perfeição, toca as fronteiras da imperceptibilidade: a Noite, segundo o poeta, «apaga todas as diferenças que ao longe vemos»; o Oceano, que circunda o ecúmeno, é uma corrente em que a nascente e a foz se confundem de modo a não se distinguir nem sequer o ponto em que ela começa e acaba; o Caos, se fosse o escancarado Abismo, de que se abstraíram os íngremes pendores (Gigon, 1945, cap. i), reduzir-se-ia ao espaço vazio. De Tales a Parmênides, pode dizer-se que a codificação filosófica do «fascinante mistério do horizonte» coincide com a sua codificação mítica, acentuando, ambas, a nota de indiferença e, sobretudo, a de imperceptibilidade.


Ver online : Parmênides