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Caeiro (EN:15-17) – felicidade

sábado 5 de fevereiro de 2022, por Cardoso de Castro

  

O Humano está assim lançado para a felicidade. Motivado por ela. Para Aristóteles estar lançado para a felicidade caracteriza essencialmente a existência humana. É por termos um conhecimento deste projeto que nos está dado em mãos que percebemos também estarmos afastados dele ou termos já desistido de ir no seu encalço. Se «ser feliz» é o projeto fundamental da vida humana é também uma possibilidade sua. Jamais poderá esquecer-se de que tem essa possibilidade. Nesse sentido, a felicidade é o fim, télos. O fim enquanto télos não quer dizer a derradeira coisa a acontecer. Télos significa o que é perfeito, isto é, aquilo ao qual nada falta para ser. O Humano existe, assim, por se cumprir enquanto não for feliz. Ser no encaminhamento da felicidade é ser na tensão para o preenchimento dessa expectativa.

Logo no princípio da Ética a Nicómaco [EN], no livro I, a felicidade é definida como «uma certa atividade da alma humana de acordo com a excelência completa». Apenas o livro X esclarece esta definição aparentemente enigmática. A felicidade é identificada com o prazer que resulta da atividade contemplativa. Se no livro I a felicidade é apresentada como o resultado da constituição de uma disposição completa no domínio do ético, sendo a excelência uma disposição ética, ela há-de resultar da formação do caráter. Feliz será o corajoso e o temperado, o generoso e o justo, enfim, o homem de excelência. A felicidade resulta assim do esforço da ação humana, da atuação de acordo com o sentido orientador, oculto na maior parte das situações que se formam concretamente na vida de cada um.

No livro X, contudo, a felicidade é compreendida como o resultado de uma atividade, e na verdade, da atividade por excelência da alma humana, a contemplativa. O olhar puro contemplativo abre para o sublime. E esse olhar constitui a possibilidade radical do Humano. Este encontro, esta dispensação de sentido, de contemplação, dá um prazer puro. É atividade pura. Ser por ser. Neste sentido, a felicidade parece resultar de uma situação aparentemente avessa à situação prática definida ao longo de todo o texto da Ética a Nicómaco. Mas só aparentemente. Também a θεωρία, a contemplação, o olhar puro, é uma atividade, ενέργεια. O trabalho, ἐργον, específico do Humano depende de uma invocação do poder de compreensão que há em si, aquele poder de compreensão intuitiva que não apenas lhe permite olhar o que lhe é dado ver, mas que abre para, e constitui, o sublime. Essa possibilidade é na sua forma uma atividade, o produto extremo do Humano enquanto divino.

O projeto fundamental do Humano é, assim, a constituição daquele poder de compreensão que inunda tudo no seu todo com o seu olhar, tudo sublima. Esconjurar o poder de compreensão no Humano é a sua tentativa para se libertar da lei da morte, existir o mais possível na dimensão divina que pode alcançar. Essa possibilidade dificilmente é mantida na vida de modo permanente. Não é possível permanecer na contemplação pura para sempre. Mas o esforço de criar e recriar a situação teórica é simultaneamente o esforço de ida ao encontro com o fundamento disposicional que nos permite estar em casa, a demanda por um sítio onde se possa ser, o projeto da saudade de um lugar para si, naquela atmosfera rarefeita em que o Humano existe pura e simplesmente assim só por existir.